segunda-feira, 30 de setembro de 2019

O sertão

O sertão não conhece o mar. O mar não conhece o sertão. Não se tocam. Não se veem. Não se buscam. Mas há em ambos a mesma grandeza, a mesma imponência, a mesma inescrutabilidade. Sobre um e outro se estende esse mesmo enigma das majestades indecifráveis. De um e outro ressalta a mesma expressão de energia, força e poder a que se não resiste. Um e outro se nos antolham, do mesmo modo, como dois reservatórios insondáveis e inesgotáveis de vida.
Ante um e outro nos sentimos nulos, em todo o acanhamento do nosso nada, e temos a visão da imensidade, a sensação do infinito, a impregnação do eterno. É a comoção religiosa, que vibrava entre os primeiros navegadores, quando, ao avistarem a ourela das praias, onde se franja o pélago azulado, lhes saía d’alma todo um hino em um só grito: “O mar!”, “o mar largo!”. Assim me rebentava, há pouco, do seio, ao dar com os olhos na primeira orladura da região das matas e das serras este clamor íntimo de alvoroço: “O sertão! o sertão livre!”.
Não será livre o sertão? É, senhores, como se fizéssemos estoutra pergunta: “Não é livre o mar?”.
A questão, quanto ao mar, não existe, embora a vejamos estabelecida, a outra luz, em termos, que lhe tornem duvidosa a resposta. As potências navais contendem pelo domínio das suas armas nas estradas marítimas. Mas não há tratados, que logrem subjugar o indômito elemento das vagas. Juntasse embora o orgulho humano todos os seus monstros de guerra; e todos eles juntos não conseguiriam abaixar o dorso das águas eternas. Fundisse embora a indústria humana todo o metal, que se acumula nas entranhas da terra; e todo o ferro do planeta, minerado e forjado, não daria cadeias bastantes, para acorrentar a fúria de um maremoto. Cobrissem embora todas as frotas do mundo com o enxame dos seus navios a superfície inteira das ondas; e um movimento destas as poderia sepultar nas profundezas do abismo. Só Deus possui o jugo, a que se curva o oceano.
Mas se o Criador o mandasse calar; se lhe ordenasse às correntes que parassem, e, esfriando-lhe as entranhas, lhe comprimisse debaixo da mão onipotente as ondas remansadas, a vasta massa guardaria na sua imobilidade a imagem do movimento subitamente paralisado, o aspecto de uma grandeza adormecida à espera de outro milagre do céu, que a volvesse ao calor e inconstância de sua existência agitada.
Rui Barbosa, in Antologia

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