Hoje
é que reconheço a forma do que meu padrinho muito fez por mim, ele
que criara amparado amor ao seu dinheiro, e que tanto avarava. Pois,
várias viagens, ele veio ao Curralinho, me ver ― na verdade,
também, ele aproveitava para tratar de vender bois e mais outros
negócios ― e trazia para mim caixetas de doce de burití ou de
araticúm, requeijão e marmeladas. Cada mês de novembro, mandava me
buscar. Nunca ralhou comigo, e me dava de tudo. Mas eu nunca pedi
coisa nenhuma a ele. Dez vezes mais me desse, e não se valia. Eu não
gostava dele, nem desgostava. Mais certo era que com ele eu não
soubesse me acostumar. Acabei, por razão outra, fugindo do São
Gregório, o senhor vai ver. Nunca mais vi meu padrinho. Mas por isso
ele não me desejou mal; nem entendo. Decerto, ficou entusiasmado,
quando teve notícias de que eu era o jagunço. E me deixou por
herdeiro, em folha de testamento: das três fazendas, duas peguei. Só
o São Gregório foi que ele testou para uma mulata, com que no fim
de sua velhice se ajuntou. Disso não fiz conta. Mesmo o que recebi
eu menos merecia. Agora, derradeiramente, destaco: quando velho, ele
penou remorso por mim; eu, velho, a curtir arrependimento por ele.
Acho que nós dois éramos mesmo pertencentes.
Depois
pouco que voltei do Curralinho, definitivo, grande fato se deu, que
ao senhor não escondo. Certa madrugada, os cachorros todos latiram,
no São Gregório, alguém estava batendo. Era mês de maio, em má
lua, o frio fiava. E, quando tão moço, eu custava muito para me
levantar; não por fraca saúde, mas por preguiça mal corrigida.
Assim que saí da cama e fui ver se era de se abrir, meu padrinho
Selorico Mendes, com a lamparina na mão, já estava pondo para
dentro da sala uns homens, que eram seis, todos de chapéu-grande e
trajados de capotes e capas, arrastavam esporas. Ali entraram com uma
aragem que me deu susto de possível reboldosa. Admirei: tantas
armas. Mas eles não eram caçadores. Ao que farejei: pé de guerra.
Meu
padrinho mandou eu ir lá dentro, chamar alguma das mulheres, que
coasse café quente. Quando voltei, um dos homens ― Alarico Totõe
― estava expondo, explicando. Todos continuavam sem tomar assentos.
Alarico Totõe sendo um fazendeiro do Grão-Mogol, conhecido de meu
padrinho. Ele, com seu irmão Aluiz Totõe, pessoas finas, gente de
bem. Tinham encomendado o auxílio amigo dos jagunços, por uma
questão política, logo entendi. Meu padrinho escutava, aprovando
com a cabeça. Mas para quem ele sempre estava olhando, com uma
admiração toda perturbosa, era para o chefe dos jagunços, o
principal. E o senhor sabe quem era esse? Joca Ramiro! Só de ouvir o
nome, eu parei, na maior suspensão.
Drede
Joca Ramiro estava de braços cruzados, o chapéu dele se desabava
muito largo. Dele, até a sombra, que a lamparina arriava na parede,
se trespunha diversa, na imponência, pojava volume. E vi que era um
homem bonito, caprichado em tudo. Vi que era homem gentil. Dos lados,
ombreavam com ele dois jagunções; depois eu soube ― que seus
segundos. Um, se chamava Ricardão: corpulento e quieto, com um modo
simpático de sorriso; compunha o ar de um fazendeiro abastado. O
outro ― Hermógenes ― homem sem anjo-da-guarda. Na hora, não
notei de uma vez. Pouco, pouco, fui receando. O Hermógenes: ele
estava de costas, mas umas costas desconformes, a cacunda amontoava,
com o chapéu raso em cima, mas chapéu redondo de couro, que se que
uma cabaça na cabeça. Aquele homem se arrepanhava de não ter
pescoço. As calças dele como que se enrugavam demais da conta,
enfolipavam em dobrados. As pernas, muito abertas; mas, quando ele
caminhou uns passos, se arrastava ― me pareceu ― que nem queria
levantar os pés do chão. Reproduzo isto, e fico pensando! será que
a vida socorre à gente certos avisos? Sempre me lembro dele, me
lembro mal, mas atrás de muitas fumaças. Naquela hora, eu estava
querendo que ele não virasse a cara. Virou. A sombra do chapéu dava
até em quase na boca, enegrecendo.
No
terminar, Alarico Totõe pediu que precisavam de um recanto oculto,
onde a tropa dos homens passasse o dia que vinha, pois que viajavam
de noite, dando surpresa e desmanchando rastro. ― Tem ótimo
reconditório... ― meu padrinho consentiu. E mandou que eu fosse
guiar aquela gente, até aonde o pôço do Cambaubal, num fechado,
mato caàpuão. Primeiro, tomou-se café. Assim Joca Ramiro corria
pronto os olhos, em tudo ali, sorrindo franco, a cara muito galharda,
e pôs as mãos nos bolsos. Ricardão ria grosso. E aquele Hermógenes
veio para sair comigo, mais o outro homem ― um cabeça-chata
alvaço, com muita viveza no olhar; desse gostei, Alaripe se chamava,
até hoje se chama. Em que, eles dois a cavalo, eu a pé, viemos até
onde estavam esperando os outros, dois passos, no baixo da estrada.
Aí
mês de maio, falei, com a estrela-dalva. O orvalho pripingando,
baciadas. E os grilos no chirilim. De repente, de certa distância,
enchia espaço aquela massa forte, antes de poder ver eu já
pressentia. Um estado de cavalos. Os cavaleiros. Nenhum não tinha
desapeado. E deviam de ser perto duns cem. Respirei! a gente sorvia o
bafejo ― o cheiro de crinas e rabos sacudidos, o pêlo deles, de
suor velho, semeado das poeiras do sertão. Adonde o movimento
esbarrado que se sussurra duma tropa assim ― feito de uma porção
de barulhinhos pequenos, que nem o dum grande rio, do a-flôr. A bem
dizer, aquela gente estava toda calada. Mas uma sela range de seu,
tine um arreaz, estribo, e estribeira, ou o coscós, quando o animal
lambe o freio e mastiga. Couro raspa em couro, os cavalos dão de
orêlha ou batem com o pé. Daqui, dali, um sopro, um meio-arquêjo.
E um cavaleiro ou outro tocava manso sua montada, avançando naquele
bolo, mudando de lugar, bridava. Eu não sentia os homens, sabia só
dos cavalos. Mas os cavalos mantidos, montados. E diferente.
Grandeúdo. E, aos poucos, divulgava os vultos muitos, feito árvores
crescidas lado a lado. E os chapéus rebuçados, as pontas dos rifles
subindo das costas. Porque eles não falavam ― e restavam esperando
assim ― a gente tinha medo. Ali deviam de estar alguns dos homens
mais terríveis sertanejos, em cima dos cavalos teúdos, parados
contrapassantes. Soubesse sonhasse eu?
Decerto
de guarda, apartado dos mais, se via um cavaleiro, inteiro.Veio vindo
para cá, o cavalo dele era escuro; era um alazão de bom pisar.
― Capixúm,
é eu, mais o siô Hermógenes... ― o cabeça-chata falou aviso.
― A
bom, Alaripe! ― o de lá respondeu.
A
gente se encostava no frio, escutava o orvalho, o mato cheio de
cheiroso, estalinho de estrelas, o deduzir dos grilos e a cavalhada a
peso. Dava o raiar, entreluz da aurora, quando o céu branquece. Ao o
ar indo ficando cinzento, o formar daqueles cavaleiros, escorrido, se
divisava. E o senhor me desculpe, de estar retrasando em tantas
minudências. Mas até hoje eu represento em meus olhos aquela hora,
tudo tão bom; e, o que é, é saudade.
De
junto com o Capixúm, se aproximou outro um, também, de soto-chefe,
que o Hermógenes tratou de sié-Marques. O Hermógenes tinha voz que
não era fanhosa nem rouca, mas assim desgovernada desigual, voz que
se safava. Assim ― fantasia de dizer ― o ser de uma irara, com
seu cheiro fedorento. ― Aoh, uê, alguém, irmão? ― aquele
sié-Marques perguntou, tratando de minha pessoa. ― De paz, mano
velho. Amigo que veio mostrar à gente o arrancho... ― o Hermógenes
contestou. Deu ainda um barulho de boca e goela, qual um rosno. Sem
mais delongas nenhumas, saí, caminhando ao lado do cavalo do
Hermógenes, puxando todos para o Cambaubal. Atrás de nós, eu ouvia
os passos postos da grande cavalaria, o regular, esse empurro
continuado. Eu não queria virar e espiar, achassem que eu era
abelhudo. Mas, agora, eles conversavam, alguns riam, diziam graças.
Presumi que estavam muito contentes de ganhar o repouso de horas,
pois tinham navegado na sela a noite toda. Um falou mais alto, aquilo
era bonito e sem tino! ― Siruiz, cadê a moça virgem?
Largamos a estrada, no capim molhado meus pés se lavavam. Algum,
aquele Siruiz, cantou, palavras diversas, para mim a toada toda
estranha!
Urubú
é vila alta,
mais
idosa do sertão padroeira, minha vida ―
vim
de lá, volto mais não...
Vim
de lá, volto mais não?...
Corro
os dias nesses verdes,
meu
boi mocho baetão buriti ― água azulada,
carnaúba
― sal do chão...
Remanso
de rio largo,
viola
da solidão.
Qando
vou pra dar batalha,
convido
meu coração...
Vinham
quebrando as barras. Dia de maio, com orvalho, eu disse. Lembrança
da gente é assim.
Me
emprestaram um cavalo, e eu fui, com o Alaripe, esperar a chegada da
tropa de burros, adiante, na boca da ponte. Não tardava já vinham
aparecendo. Um lote de dez mulas, com os cargueiros. Mas vinham com
os cincerros tapados, tafulhados com rama de algodão: afora o
geme-geme das cangalhas, não faziam nenhum rumor. Guiamos os
tropeiros também para o Cambaubal. Mas, aí, meu padrinho chegou,
com Joca Ramiro, Ricardão, e os Totões. Meu padrinho insistiu, me
trouxe outra vez para casa. O dia já estava clareando completo. Meu
coração restava cheio de coisas movimentadas.
Guimarães
Rosa, in Grande sertão: veredas
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