domingo, 29 de setembro de 2019

Um estado de cavalos. Os cavaleiros


Hoje é que reconheço a forma do que meu padrinho muito fez por mim, ele que criara amparado amor ao seu dinheiro, e que tanto avarava. Pois, várias viagens, ele veio ao Curralinho, me ver ― na verdade, também, ele aproveitava para tratar de vender bois e mais outros negócios ― e trazia para mim caixetas de doce de burití ou de araticúm, requeijão e marmeladas. Cada mês de novembro, mandava me buscar. Nunca ralhou comigo, e me dava de tudo. Mas eu nunca pedi coisa nenhuma a ele. Dez vezes mais me desse, e não se valia. Eu não gostava dele, nem desgostava. Mais certo era que com ele eu não soubesse me acostumar. Acabei, por razão outra, fugindo do São Gregório, o senhor vai ver. Nunca mais vi meu padrinho. Mas por isso ele não me desejou mal; nem entendo. Decerto, ficou entusiasmado, quando teve notícias de que eu era o jagunço. E me deixou por herdeiro, em folha de testamento: das três fazendas, duas peguei. Só o São Gregório foi que ele testou para uma mulata, com que no fim de sua velhice se ajuntou. Disso não fiz conta. Mesmo o que recebi eu menos merecia. Agora, derradeiramente, destaco: quando velho, ele penou remorso por mim; eu, velho, a curtir arrependimento por ele. Acho que nós dois éramos mesmo pertencentes.
Depois pouco que voltei do Curralinho, definitivo, grande fato se deu, que ao senhor não escondo. Certa madrugada, os cachorros todos latiram, no São Gregório, alguém estava batendo. Era mês de maio, em má lua, o frio fiava. E, quando tão moço, eu custava muito para me levantar; não por fraca saúde, mas por preguiça mal corrigida. Assim que saí da cama e fui ver se era de se abrir, meu padrinho Selorico Mendes, com a lamparina na mão, já estava pondo para dentro da sala uns homens, que eram seis, todos de chapéu-grande e trajados de capotes e capas, arrastavam esporas. Ali entraram com uma aragem que me deu susto de possível reboldosa. Admirei: tantas armas. Mas eles não eram caçadores. Ao que farejei: pé de guerra.
Meu padrinho mandou eu ir lá dentro, chamar alguma das mulheres, que coasse café quente. Quando voltei, um dos homens ― Alarico Totõe ― estava expondo, explicando. Todos continuavam sem tomar assentos. Alarico Totõe sendo um fazendeiro do Grão-Mogol, conhecido de meu padrinho. Ele, com seu irmão Aluiz Totõe, pessoas finas, gente de bem. Tinham encomendado o auxílio amigo dos jagunços, por uma questão política, logo entendi. Meu padrinho escutava, aprovando com a cabeça. Mas para quem ele sempre estava olhando, com uma admiração toda perturbosa, era para o chefe dos jagunços, o principal. E o senhor sabe quem era esse? Joca Ramiro! Só de ouvir o nome, eu parei, na maior suspensão.
Drede Joca Ramiro estava de braços cruzados, o chapéu dele se desabava muito largo. Dele, até a sombra, que a lamparina arriava na parede, se trespunha diversa, na imponência, pojava volume. E vi que era um homem bonito, caprichado em tudo. Vi que era homem gentil. Dos lados, ombreavam com ele dois jagunções; depois eu soube ― que seus segundos. Um, se chamava Ricardão: corpulento e quieto, com um modo simpático de sorriso; compunha o ar de um fazendeiro abastado. O outro ― Hermógenes ― homem sem anjo-da-guarda. Na hora, não notei de uma vez. Pouco, pouco, fui receando. O Hermógenes: ele estava de costas, mas umas costas desconformes, a cacunda amontoava, com o chapéu raso em cima, mas chapéu redondo de couro, que se que uma cabaça na cabeça. Aquele homem se arrepanhava de não ter pescoço. As calças dele como que se enrugavam demais da conta, enfolipavam em dobrados. As pernas, muito abertas; mas, quando ele caminhou uns passos, se arrastava ― me pareceu ― que nem queria levantar os pés do chão. Reproduzo isto, e fico pensando! será que a vida socorre à gente certos avisos? Sempre me lembro dele, me lembro mal, mas atrás de muitas fumaças. Naquela hora, eu estava querendo que ele não virasse a cara. Virou. A sombra do chapéu dava até em quase na boca, enegrecendo.
No terminar, Alarico Totõe pediu que precisavam de um recanto oculto, onde a tropa dos homens passasse o dia que vinha, pois que viajavam de noite, dando surpresa e desmanchando rastro. ― Tem ótimo reconditório... ― meu padrinho consentiu. E mandou que eu fosse guiar aquela gente, até aonde o pôço do Cambaubal, num fechado, mato caàpuão. Primeiro, tomou-se café. Assim Joca Ramiro corria pronto os olhos, em tudo ali, sorrindo franco, a cara muito galharda, e pôs as mãos nos bolsos. Ricardão ria grosso. E aquele Hermógenes veio para sair comigo, mais o outro homem ― um cabeça-chata alvaço, com muita viveza no olhar; desse gostei, Alaripe se chamava, até hoje se chama. Em que, eles dois a cavalo, eu a pé, viemos até onde estavam esperando os outros, dois passos, no baixo da estrada.
Aí mês de maio, falei, com a estrela-dalva. O orvalho pripingando, baciadas. E os grilos no chirilim. De repente, de certa distância, enchia espaço aquela massa forte, antes de poder ver eu já pressentia. Um estado de cavalos. Os cavaleiros. Nenhum não tinha desapeado. E deviam de ser perto duns cem. Respirei! a gente sorvia o bafejo ― o cheiro de crinas e rabos sacudidos, o pêlo deles, de suor velho, semeado das poeiras do sertão. Adonde o movimento esbarrado que se sussurra duma tropa assim ― feito de uma porção de barulhinhos pequenos, que nem o dum grande rio, do a-flôr. A bem dizer, aquela gente estava toda calada. Mas uma sela range de seu, tine um arreaz, estribo, e estribeira, ou o coscós, quando o animal lambe o freio e mastiga. Couro raspa em couro, os cavalos dão de orêlha ou batem com o pé. Daqui, dali, um sopro, um meio-arquêjo. E um cavaleiro ou outro tocava manso sua montada, avançando naquele bolo, mudando de lugar, bridava. Eu não sentia os homens, sabia só dos cavalos. Mas os cavalos mantidos, montados. E diferente. Grandeúdo. E, aos poucos, divulgava os vultos muitos, feito árvores crescidas lado a lado. E os chapéus rebuçados, as pontas dos rifles subindo das costas. Porque eles não falavam ― e restavam esperando assim ― a gente tinha medo. Ali deviam de estar alguns dos homens mais terríveis sertanejos, em cima dos cavalos teúdos, parados contrapassantes. Soubesse sonhasse eu?
Decerto de guarda, apartado dos mais, se via um cavaleiro, inteiro.Veio vindo para cá, o cavalo dele era escuro; era um alazão de bom pisar.
Capixúm, é eu, mais o siô Hermógenes... ― o cabeça-chata falou aviso.
A bom, Alaripe! ― o de lá respondeu.
A gente se encostava no frio, escutava o orvalho, o mato cheio de cheiroso, estalinho de estrelas, o deduzir dos grilos e a cavalhada a peso. Dava o raiar, entreluz da aurora, quando o céu branquece. Ao o ar indo ficando cinzento, o formar daqueles cavaleiros, escorrido, se divisava. E o senhor me desculpe, de estar retrasando em tantas minudências. Mas até hoje eu represento em meus olhos aquela hora, tudo tão bom; e, o que é, é saudade.
De junto com o Capixúm, se aproximou outro um, também, de soto-chefe, que o Hermógenes tratou de sié-Marques. O Hermógenes tinha voz que não era fanhosa nem rouca, mas assim desgovernada desigual, voz que se safava. Assim ― fantasia de dizer ― o ser de uma irara, com seu cheiro fedorento. ― Aoh, uê, alguém, irmão? ― aquele sié-Marques perguntou, tratando de minha pessoa. ― De paz, mano velho. Amigo que veio mostrar à gente o arrancho... ― o Hermógenes contestou. Deu ainda um barulho de boca e goela, qual um rosno. Sem mais delongas nenhumas, saí, caminhando ao lado do cavalo do Hermógenes, puxando todos para o Cambaubal. Atrás de nós, eu ouvia os passos postos da grande cavalaria, o regular, esse empurro continuado. Eu não queria virar e espiar, achassem que eu era abelhudo. Mas, agora, eles conversavam, alguns riam, diziam graças. Presumi que estavam muito contentes de ganhar o repouso de horas, pois tinham navegado na sela a noite toda. Um falou mais alto, aquilo era bonito e sem tino! ― Siruiz, cadê a moça virgem? Largamos a estrada, no capim molhado meus pés se lavavam. Algum, aquele Siruiz, cantou, palavras diversas, para mim a toada toda estranha!

Urubú é vila alta,
mais idosa do sertão padroeira, minha vida ―
vim de lá, volto mais não...
Vim de lá, volto mais não?...
Corro os dias nesses verdes,
meu boi mocho baetão buriti ― água azulada,
carnaúba ― sal do chão...
Remanso de rio largo,
viola da solidão.
Qando vou pra dar batalha,
convido meu coração...

Vinham quebrando as barras. Dia de maio, com orvalho, eu disse. Lembrança da gente é assim.
Me emprestaram um cavalo, e eu fui, com o Alaripe, esperar a chegada da tropa de burros, adiante, na boca da ponte. Não tardava já vinham aparecendo. Um lote de dez mulas, com os cargueiros. Mas vinham com os cincerros tapados, tafulhados com rama de algodão: afora o geme-geme das cangalhas, não faziam nenhum rumor. Guiamos os tropeiros também para o Cambaubal. Mas, aí, meu padrinho chegou, com Joca Ramiro, Ricardão, e os Totões. Meu padrinho insistiu, me trouxe outra vez para casa. O dia já estava clareando completo. Meu coração restava cheio de coisas movimentadas.
Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas

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