Sonhei
que estava sentado numa sala de espera já fora de moda. A princípio
sabia apenas que tinha uma entrevista marcada com alguma pessoa
importante. Logo percebi que era o Sr. von Goethe quem iria
receber-me. Infelizmente eu não estava ali em caráter pessoal, mas
como correspondente jornalístico, o que muito me desagradava e não
podia compreender por que demônios me tinham metido naquela enrascada. Além disso, estava preocupado com um escorpião que
aparecia de vez em quando e tentava subir-me pela perna. É certo que
saberia defender-me contra o negro rastejante, mas não sabia agora
onde se escondera e não me atrevia a procurá-lo. Ademais, não
estava muito certo se, por engano, me haviam anunciado a Matthinson,
em vez de Goethe, a quem confundi de novo em sonhos com Bürger, pois
lhe atribuía os poemas de Molly. Por outra parte, eu teria apreciado
muito um encontro com Molly, pois a imaginava maravilhosa, delicada,
musical. Se pelo menos não estivesse ali a mando daquele maldito
jornal! Meu mau humor foi aumentando, aumentando, e pouco a pouco se
concentrava sobre Goethe, a quem já intentava fazer várias
reprovações. A entrevista talvez não se encaminhasse a bom termo.
O escorpião, apesar perigoso e escondido bem próximo de mim, talvez
não fosse tão mau assim; pareceu-me que podia significar também
algo amistoso pareceu-me provável que tivesse algo a ver com Molly
ser uma espécie de enviado seu, ou uma fera heráldina, belo e
perigoso animal da feminilidade e do pecado. Não poderia chamar-se
por acaso Vúlpius? Mas neste momento um criado abriu a porta,
levantei-me e entrei. Lá estava o velho Goethe, baixo e muito ereto,
trazendo no jeito clássico a enorme condecoração de alguma Ordem.
Dava a impressão de que ainda governava, de que estava concedendo
audiências, de que ainda controlava o mundo sentado em seu museu de
Weimar. Pois mal olhou para mim, com um movimento de cabeça que
lembrava um velho corvo, começou a falar pomposamente:
— Com
que então, vós, os jovens, não tendes grande apreço por nós e
pelos nossos esforços?
— Exatamente
— disse eu, gelado pelo seu frio olhar ministerial. — Nós, os
jovens, não estamos muito de acordo com Vossa Excelência. Sois
demasiado solene para nós, demasiado vaidoso, demasiado
auto-suficiente e pouco sincero Sem dúvida, este é o ponto capital:
pouco sincero.
O
homenzinho lançou a severa testa para a frente e enquanto sua boca
dura e enrugada se distendia num leve sorriso e se tornava
encantadoramente viva, o coração bateu-me com força, pois recordei
a poesia “Desceu a tarde...” e que fora daquela boca e daquele
homem que haviam brotado as palavras daquela poesia. Fiquei tão
desarmado e vencido naquele instante que, sem dúvida, teria
preferido ajoelhar-me diante dele. Mas me mantive de pé e ouvi-o
dizer com um sorriso:
— Então
o senhor me acusa de insinceridade? Isso é coisa que se diga! Tenha
a bondade de fazer-se mais explícito!
Eu
estava contente em poder fazê-lo.
— Como
todos os grandes espíritos, Exmo. Sr. Goethe, o senhor claramente
reconheceu e sentiu a dúvida e a desesperança da vida humana, com
seus momentos de transcendência que vão afundar-se de novo na
miséria, a impossibilidade de atingir-se a altura ideal dos
sentimentos senão à custa de muitos anos de escravidão à labuta
cotidiana; o ardente as pirar pelo reino do espírito em eterna luta
mortal com o amor à perdida inocência da natureza, igualmente
ardente e sagrado; todo este temeroso oscilar no vazio e na incerteza
essa condenação ao transitório, incompleto, ao eternamente
empírico e diletante; em suma, toda a falta de escopo a que o ser
humano está condenado... para seu desespero devorador O senhor
reconheceu tudo isso e houve tempo em que também o confessou, e no
entanto consagrou toda sua vida a pregar o contrário, manifestando
fé e otimismo e espalhando diante de si e dos demais a ilusão de
que nosso esforço espiritual tinha algum significado e continuidade.
O senhor fez ouvidos surdos àqueles que sondavam as profundezas e
reprimiu as vozes dos que diziam a desesperada verdade, o que se
aplica a Kleist e a Beethoven. Ano após ano, o senhor viveu em
Weimar a acumular conhecimentos e a colecionar objetos de arte, a
escrever cartas e a coletá-las, como se tivesse em sua idade
provecta encontrado o verdadeiro caminho para eternizar o instante,
embora só pudesse mumificá-lo, e a tentar espiritualizar a
natureza, embora só conseguisse ocultá-la sob uma bela máscara.
Esta é a insinceridade que nós lhe reprovamos.
O
velho conselheiro olhou-me, pensativo, nos olhos, enquanto sua boca
continuava a sorrir.
Logo
perguntou, enchendo-me de admiração:
— O
senhor deve ter uma profunda objeção contra a Flauta Mágica de
Mozart, não? E antes que eu pudesse responder, continuou:
— A
Flauta Mágica apresenta-nos a vida como se fora um canto prodigioso,
celebra nossos sentimentos, ainda que transitórios como são, como
algo divino e eterno, não estando pois de acordo nem com o Sr.
Kleist nem com o Sr. Beethoven, já que predica a fé e o otimismo. —
Já sei, já sei — gritei furioso. — Deus sabe que a Flauta
Mágica que o senhor menciona é o que mais venero neste mundo! Mas
Mozart não chegou aos oitenta e dois anos de idade, nem teve essas
pretensões de continuidade, de ordem de rígida dignidade que o
senhor teve. Não se deu tanta importância! Compôs suas divinas
melodias e morreu; morreu cedo, pobre e desconhecido... O hálito me
faltava. Quisera dizer mil coisas em dez palavras. Minha testa
começou a suar. Goethe, no entanto, disse, muito amável:
— Pode
parecer imperdoável que eu tenha chegado aos oitenta e dois anos.
Minha satisfação relativamente a esse fato é, entretanto, muito
menor do que o senhor imagina. Tem razão quando afirma que sempre
tive um grande anseio de perdurar; sempre vivi em luta contra a
morte, temendo-a sempre. Creio que a luta contra a morte, a
obstinação absoluta de querer continuar vivo, seja a força
motivadora que jaz sobre as vidas e atividades de todos os homens
representativos. Com meus oitenta e dois anos, meu jovem amigo,
consegui provar apenas que o homem tem de morrer afinal, da mesma
forma como teria morrido quando era um escolar. Se acaso servir de
justificativa, queria dizer também que havia muito de infantilidade
em minha natureza de curioso e muito desejo de matar o tempo em
brincadeiras. E custei muito a dar-me conta de que o jogo haveria de
acabar, afinal.
Ao
dizer isso, sorria com muita sutileza, quase pilheriando. Sua figura
tornara-se maior, desaparecera a rígida postura e a forçada
dignidade de sua face. O ambiente que nos rodeava estava agora cheio
de sonoras melodias, e harmoniosos lieder de Goethe; ouvi
distintamente a Veilchen (Violetas), de Mozart e a Füllest wieder
Busch und Tal (De Novo Enches o Bosque e o Vale), de Schubert. O
rosto de Goethe estava agora cotado e jovem e sorria; parecia-se
agora com Mozart, logo com Schubert, ou como se fora um seu irmão, e
a roseta que havia em seu peito estava composta inteiramente de
flores silvestres, com uma primavera amarela abrindo-se alegre e
louçã no meio delas.
Não
me agradou de todo que o ancião estivesse fugindo as minhas
perguntas e reprovações daquela maneira tão irônica, e olhei para
ele com olhar de censura. A isso, inclinou-se e aproximando de mim a
boca que se havia tornado inteiramente infantil, sussurrou ao meu
ouvido:
— Meu
amigo, levas o velho Goethe muito a sério. Não se devem tomar as
pessoas idosas que já estão mortas demasiadamente a sério, pois
seria cometer uma injustiça contra elas. Nós, os imortais, não
gostamos de coisas que devem ser levadas a sério, preferimos
gracejar. A seriedade, meu jovem é uma consequência do tempo;
consiste, permito-me confiar-lhe, numa superestimação do tempo. Eu
também, em minha época, dei valor demais ao tempo, por isso queria
viver cem anos. Mas, na eternidade, como vês, não há tempo; a
eternidade não é mais que um momento, cuja duração não vai além
de um gracejo.
E,
em verdade, já não se podia continuar falando a sério com o homem:
dava pulos de contentamento, ágil e flexível, e logo deixou a
primavera saltar de sua condecoração como se fosse um foguete para,
em seguida, fazê-la encolher-se e desaparecer. Enquanto se exibia de
um lado para outro com seus passos de dança e suas visagens, tive de
admitir pelo menos que aquele homem não se havia esquecido de
aprender a dançar. Fazia-o maravilhosamente. Então lembrei-me do
escorpião, ou antes de Molly, e perguntei a Goethe:
— Diga-me:
Molly está aí?
Goethe
riu sonoramente. Caminhou para a escrivaninha e abriu uma gaveta;
tirou de dentro uma caixa de couro ou de veludo, abriu-a e colocou-a
diante dos meus olhos. Dentro havia uma diminuta perna de mulher,
perfeita e brilhante, repousando sobre o escuro fundo da caixa, uma
perna encantadora, um pouco inclinada no joelho, estirando o pé para
baixo e com os delicados dedos em ponta. Estendi a mão e quis
apanhar a pequenina perna, que tanto me havia encantado, mas quando
quis tomá-la entre os dedos me pareceu que o brinquedinho se movia
com imperceptível movimento, e de súbito assaltou-me a suspeita de
que podia ser o escorpião. Goethe pareceu compreendê-lo; parecia
mesmo que o tivesse feito de propósito, com o fito de provocar
aquela febril dissensão entre o desejo e o temor. Estendeu o
provocante escorpião muito próximo do meu rosto, me viu desejá-lo,
me viu retroceder horrorizado, e isto parecia causar-lhe grande
prazer. Enquanto me provocava com o objeto encantador e perigoso,
voltara a tornar-se novamente velho, convertera-se num ancião de mil
anos, com os cabelos brancos como a neve; e o rosto enrugado de
ancião sorria sereno e silencioso, um riso que lhe comovia as
entranhas com o insondável humorismo dos velhos.
Quando
despertei, havia esquecido o sonho, do qual só me recordei mais
tarde. Dormira mais de uma hora, em meio à música e à algazarra,
na mesa de um salão, como jamais julgara possível.
Hermann
Hesse, in O Lobo da Estepe