Domingo
ela acordava mais cedo para ficar mais tempo sem fazer nada.
O
pior momento de sua vida era nesse dia ao fim da tarde: caía em
meditação inquieta, o vazio do seco domingo. Suspirava. Tinha
saudade de quando era pequena – farofa seca – e pensava que fora
feliz. Na verdade por pior a infância é sempre encantada, que
susto. Nunca se queixava de nada, sabia que as coisas são assim
mesmo e – quem organizou a terra dos homens? Na certa mereceria um
dia o céu dos oblíquos onde só entra quem é torto. Aliás não é
entrar no céu, é oblíquo na terra mesmo. Juro que nada posso fazer
por ela. Afianço-vos que se eu pudesse melhoraria as coisas. Eu bem
sei que dizer que a datilógrafa tem o corpo cariado é um dizer de
brutalidade pior que qualquer palavrão.
(Quanto
a escrever, mas vale um cachorro vivo).
Devo
registrar aqui uma alegria. É que a moça num aflitivo domingo sem
farofa teve uma inesperada felicidade que era inexplicável: no cais
do porto viu um arco-íris. Experimentando o leve êxtase, ambicionou
logo outro: queria ver, como uma vez em Maceió, espocarem mudos
fogos de artifício. Ela quis mais porque uma verdade que quando se
dá a mão, essa gentinha quer todo o resto, o zé-povinho sonha com
fome de tudo. E quer mas sem direito algum, pois não é? Não havia
meio – pelo menos eu não posso – de obter os multiplicantes
brilhos em chuva chuvisco dos fogos de artifício. Devo dizer que ela
era doida por soldado? Pois era. Quando via um, pensava com
estremecimento de prazer: será que ele vai me matar?
Se
a moça soubesse que minha alegria também vem de minha mais profundo
tristeza e que tristeza era uma alegria falhada. Sim, ela era
alegrezinha dentro de sua neurose. Neurose de guerra. E tinha um
luxo, além de uma vez por mês ir ao cinema: pintava de vermelho
grosseiramente escarlate as unhas das mãos. Mas como as roía quase
até o sabugo, o vermelho berrante era logo desgastado e via-se o
sujo preto por baixo.
E
quando acordava? Quando acordava não sabia mais quem era. Só depois
é que pensava com satisfação: sou datilógrafa e virgem, e gosto
de coca-cola. Só então vestia-se de si mesma, passava o resto do
dia representando com obediência o papel de ser. Será que eu
enriqueceria este relato se usasse alguns difíceis termos técnicos?
Mas aí que está: esta história não tem nenhuma técnica, nem
estilo, ela é ao deus-dará. Eu que também não marcharia por nada
deste mundo com palavras brilhantes e falsas uma vida parca como a da
datilógrafa. Durante o dia eu faço, como todos, gestos
despercebidos por mim mesmo. Pois um dos gestos mais despercebidos é
esta história de que não tenho culpa e que sai como sair. A
datilógrafa vivia numa espécie de atordoado nimbo, entre céu e
inferno. Nunca pensara em “eu sou eu”. Acho que julgava não ter
direito, ela era um acaso. Um feto jogado na lata de lixo embrulhado
em um jornal. Há milhares como ela? Sim, e que são apenas um acaso.
Pensando bem: quem não é um acaso na vida?
Quanto
a mim, só me livro de ser apenas um acaso porque escrevo, o que é
um ato que é um fato. É quando entro em contato forças interiores
minhas, encontro através de mim o vosso Deus. Para que escrevo? E eu
sei? Sei não. Sim, é verdade, às vezes também penso que eu não
sou eu, pareço pertencer a uma galáxia longínqua de tão estranho
que sou de mim. Sou eu? Espanto-me com o meu encontro. A nordestina
não acreditava na morte, como eu já disse, pensava que não –
pois não é que estava viva? Esquecera os nomes da mãe e do pai,
nunca mencionados pela tia. (Com excesso de desenvoltura estou usando
a palavra escrita e isso estremece em mim que fico com medo de me
afastar da Ordem e cair no abismo povoado de gritos: o Inferno da
liberdade. Mas continuarei.) Continuando.
Todas
as madrugadas ligava o rádio emprestado por uma colega de moradia,
Maria da Penha, ligava bem baixinho para não acordar as outras,
ligava invariavelmente para a Rádio Relógio, que dava “hora certa
e cultura”, e nenhuma música, só pingava em som gotas que caem –
cada gota de minuto que passava. E sobretudo esse canal de rádio
aproveitava intervalos entre as tais gotas de minuto para das
anúncios comerciais – ela adorava anúncios. Era rádio perfeita
pois também entre os pingos do tempo dava curtos ensinamentos dos
quais talvez algum dia viesse a precisar saber. Foi assim que
aprendeu que o Imperador Carlos Magno era na terra dele chamado
Carolus. Verdade que nunca achara modo de aplicar essa informação.
Mas nunca se sabe, quem espera sempre alcança. Ouvira também a
informação de que o único animal que não cruza com filho era o
cavalo.
— Isso,
moço, é indecência, disse ela para a rádio. Outra vez ouvira:
“Arrepende-te em Cristo e Ele te dará felicidade”. Então ela se
arrependera. Como não sabia bem de quê, arrependia-se toda e de
tudo. O pastor também falava que vingança é coisa infernal. Então
ela não se vingava.
Sim,
quem espera sempre alcança. É?
Tinha
o que se chama de vida interior e não sabia que tinha. Vivia de si
mesma como se comesse as próprias entranhas. Quando ia ao trabalho
parecia uma doida mansa porque ao correr do ônibus devaneava em
altos e deslumbrantes sonhos. Estes sonhos, de tanta interioridade,
eram vazios porque lhe faltava o núcleo essencial de uma prévia
experiência de – de êxtase, digamos. A maior parte do tempo tinha
sem o saber o vazio que enche a alma dos santos. Ela era santa? Ao
que parece. Não sabia que meditava pois não sabia o que queria
dizer a palavra. Mas parece-me que sua vida era uma longa meditação
sobre o nada. Só que precisava dos outros para crer em si mesma,
senão se perderia nos sucessivos e redondos vácuos que havia nela.
Meditava enquanto batia à máquina e por isso errava ainda mais.
Mas
tinha prazeres. Nas frígidas noites, ela, toda estremecente sob o
lençol de brim, costumava ler à luz de vela os anúncios que
recortava de jornais velhos do escritório. Colava-os no álbum.
Havia um anúncio, o mais precioso, que mostrava em cores o pote
aberto de um creme para pele de mulheres que simplesmente não eram
ela. Executando o fatal cacoete que pegara de piscar os olhos, ficava
só imaginando com delícia: o creme era tão apetitoso que se
tivesse dinheiro para comprá-lo não seria boba. Que pele, que nada,
ela o comeria, isso sim, à colheradas no pote mesmo. É que lhe
faltava gordura e seu organismo estava seco que nem saco meio vazio
de torrada esfarelada. Tornara-se com o tempo apenas matéria vivente
em sua fonte primária. Talvez fosse assim para se defender da grande
tentação de ser infeliz de uma vez e ter pena de si. (Quando penso
que eu podia ter nascido ela – e por que não? – estremeço. E
parece-me covarde fuga de eu não ser, sinto culpa como disse num dos
títulos.)
Em
todo caso o futuro parecia via a ser muito melhor. Pelos menos o
futuro tinha a vantagem de não ser o presente. Sempre há um melhor
para o ruim. Mas não havia nela miséria humana. É que tinha em si
mesma uma certa flor fresca. Pois, por estranho que pareça, ela
acreditava. Era apenas fina matéria orgânica. Existia. Só isto. E
eu? De mim só se sabe o que respiro.
Clarice
Lispector, in A hora da estrela
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