Em
janeiro choveu a potes na cidade, mas onde choveu dez vezes mais do
que em outro lugar qualquer foi na Rocinha. Isso me garantiu Biguá,
uma semana depois da enchente trágica. Apareceu arrasado, no
escritório. Seu barraco não rolou no abismo porque Deus não quis,
ou porque, a certa altura, achou que era exagero ferir assim um
humilde. Mas o quartinho das crianças ficou sem telhado, os móveis
fugiram na correnteza, e se vier outro toró…
— Coragem,
Biguá. Pelo menos, não morreu ninguém em casa.
— Não
morreu, porque pobre não morre, senão acabava a pobreza na Terra.
Os
colegas ajudaram Biguá como foi possível, com roupas e um
dinheirinho; não era o único atingido pela calamidade. As precisões
mais urgentes foram atendidas. Restava reconstruir o barraco, e a
Caixa Econômica veio em auxílio dos flagelados, seiscentos mil
cruzeiros de empréstimo a cada um.
— Para
mim ela não vem, que eu não tenho pistolão. Já morei na jogada.
— De
qualquer jeito, taca o pedido, Biguá.
— Vou
tacar, mas sei que é bobagem. Vê lá se eles dão pelota a um
joão-ninguém como eu.
Dias
depois, com o sorriso amargo e triunfante do pessimista, comentava:
— Eu
não falei? Os engenheiros estiveram lá, viram uma porção de
barracos, nem pararam na minha porta.
Mais
uma semana, duas, os engenheiros pararam, assuntaram, tomaram
apontamento, mas Biguá mantinha-se cético:
— Qual.
Seiscentos contos, que é bom, eles não me dão.
E
os meninos — sete — dormindo na casa arruinada, à luz das
estrelas, quando havia estrelas. Se chovia, era um corre-corre
assustado, para tirar os colchões, defender os pobrezinhos. E o
vento, mosquitos, todos os males e perigos da noite, cercando a
família de Biguá.
— Como
é? Já chegou o tutu?
— Não
chegou nem chega nunca. Eu sabia que era só pra uns, os folgados.
Isso não endireita não.
Os
acontecimentos passam mais depressa do que o tempo, e o tempo vai na
chispada. Quem se lembra hoje do terrível janeiro? Vaga recordação,
se tanto, daqueles dias e noites de pesadelo. Os que sofreram e
escaparam não se queixam mais. Até Biguá, o ácido, o inconformado
e descrente, silenciou — ou são os colegas que já não lhe dão
ouvidos à plangência.
Até
que afinal, em dia de pouco serviço ou pouca novidade, à hora do
cafezinho, alguém bole naquelas horas medonhas que o Rio passou,
desabamentos, mortes, a comoção geral, o impacto.
— Ah,
é verdade, Biguá, e aquele empréstimo da Caixa Econômica, hem?
Você recebeu?
— Custou
muito, mas recebi. Mixaria.
— Quer
dizer que teu barraco foi consertado, e você nem contou pra gente.
— Não
deu pra consertar nada.
— Espera
aí, rapaz, seiscentos contos! Ou você queria trocar por um duplex?
— Vocês
estão debochando, porque não conhecem meu barraco. Não adiantava
botar telhado novo. Quem chegava lá e via a pobreza, nem olhava pra
cima: baixava a cabeça. Eu tinha tristeza quando as colegas de
minhas garotas iam estudar ou bater papo. Pobreza é apelido.
— E
que é que você fez com o dinheiro?
— Que
que eu fiz? Que que eu podia fazer? Me ofereceram uma televisão e
uma geladeira de segunda mão, negócio bacana, todo mundo lá na
Rocinha tem esses troços, só eu não tinha, dei quinhentos e
oitenta contos pelos dois, foi isso que eu fiz. O telhado não tem
jeito não, eu sei que não dou sorte, fico só pensando noutra
enchente!
Carlos
Drummond de Andrade, in 70 historinhas
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