Um
dos meus momentos mais antigos é o seguinte: estou sentado, de
braços estendidos, frente à minha mãe que vai enrolando um novelo
de lã a partir de uma meada suspensa nos meus pulsos. Eu era menino,
mas aquela tarefa era mais que uma incumbência: eu estava dando
corpo a um ritual antiquíssimo, como se houvesse antes de mim uma
outra criança em cujos braços se enrolava o mesmo infinito fio de
lã. Esta persistente lembrança, que eu saboreio como uma sombra
eterna, é quase uma metáfora do trabalho da memória: um fio tênue,
juntando-se a outros fios que se enroscam num redondo ventre.
Revisito
este momento como uma primeira pedra deste texto. Este é um encontro
sobre memórias e eu começo com uma lembrança que me inaugura a
mim, enquanto produtor de memórias e outras falsidades. Regressarei,
mais tarde, ao novelo de lã e ao infinito sossego da minha casa de
infância.
Fomos
aqui chamados para falar de história e de memórias, de paz e de
guerras. Como se, enquanto escritores, tivéssemos uma competência
particular nestes domínios.
Num
romance que estou escrevendo há uma personagem a quem perguntam: “E
onde irás ser sepultado?”. E ela responde: “A minha sepultura
maior não mora no futuro. A minha cova é o meu passado”.
De
fato, cada um de nós corre o risco de ficar sepultado no seu próprio
passado. Todos temos de resistir para não ficarmos aprisionados numa
memória simplificada que é o retrato que outros fizeram de nós.
Todos trazemos escrito um livro e esse texto quer-se impor como nossa
nascente e como nosso destino. Se existe uma guerra em cada um de nós
é a de nos opormos a esse fado de estarmos condenados a uma única e
previsível narrativa.
Falar
de guerras é um assunto nada pacífico. Falar de memórias é um
assunto cheio de esquecimento. É estranho olhar-se o escritor que
cuida do passado como um guardião do cais, alguém que fiscaliza as
amarras dos barcos. De fato, o escritor é alguém que solta o barco
e convida para a errância da viagem. Sempre que invoca o passado, o
escritor está construindo uma mentira, está inventando um tempo que
está fora do Tempo. Este estatuto de mentirosos que mentem para
serem acreditados deve ser ressalvado num debate como este. Caros
amigos e colegas, verdadeiros colegas do ofício da mentira:
No
primeiro dia deste congresso, o José Luis Cabaço perguntou por que
é que os nossos escritores não usam a luta armada de libertação
nacional como sua fonte de inspiração.
Felizmente
ele levantou essa questão numa mesa anterior, em que o tema era
outro e a resposta ficou adiada. Se tivesse de responder, nessa
altura, eu diria: porque é muito próximo no tempo e porque é muito
próximo do sonho. Responderia que essa luta foi sentida como uma
ficção, foi vivida como uma narrativa épica. Estamos perante um
desses casos em que a personagem engole o narrador, o herói devora o
autor.
Mas
a pergunta foi feita há dois dias e, em casa, eu pensei que poderiam
existir outros motivos. E creio que, na realidade, existem. Um destes
motivos é que, sendo próxima no tempo, a luta armada de libertação
se afastou da sua anterior proximidade afetiva. A narrativa deste
processo histórico foi sendo apropriada por um discurso de exaltação
e ganhou demasiada solenidade. A epopeia perdeu sedução e passou a
ser figurada apenas por heróis que têm nomes nas ruas e praças,
mas que não têm rosto nem voz. Herdamos uma história heroica de
heróis sem história. Personagens sobre-humanas destronaram as
pessoas comuns, essa gente humilde que teve medo, que hesitou, que
namorou, que se tornou semelhante a todos nós.
Na
verdade, a pergunta do meu amigo Cabaço pode estender-se a várias
outras guerras e outros episódios épicos do nosso país. Onde estão
as histórias dessa História com H maiúsculo? Não existem. Ou
talvez existam em confins secretos, mas é preciso atravessar
desertos para as descobrir.
De
fato, nós não esquecemos apenas a luta de libertação nacional.
Nós esquecemos a recentíssima guerra de desestabilização, cujo
drama ainda ecoa no nosso quotidiano. Nós esquecemos as guerras de
resistência colonial, esquecemos as guerras contra ocupações
regionais (como a desencadeada contra os invasores ngunis),
esquecemos as guerras dos prazeiros contra as autoridades coloniais.
E esquecemos com comprovada eficácia a guerra secular contra a
escravatura. Este desmemorial é longo e comprova que somos peritos
na arte do esquecimento.
Por
que tanta competência no olvido, por que este sistemático apagar de
pegadas do tempo? A resposta mais simples está na ausência da
escrita. Em termos de registo temporal, nós estamos no território
de ninguém: os testemunhos da oralidade ou ainda não se fizeram ou
já se perderam. Esta é, certamente, a grande justificação. Mas a
ausência da escrita não pode explicar tudo. Não pode explicar, por
exemplo, a espantosa amnésia colectiva que apagou os sinais
exteriores e interiores da recente guerra civil.
Eu
creio que é preciso procurar outras respostas. Não é apenas a
hegemonia da oralidade que nos impede de fixar os acontecimentos que
nos fizeram desacontecer e voltar a acontecer. É preciso uma outra
hipótese que explique esta estranha necessidade de excluirmos o
passado da nossa mitologia caseira. À boa maneira africana, nós não
sabemos fazer do passado um nosso antepassado.
Acredito
que essa hipótese alternativa possa ser resumida da seguinte
maneira: esquecemos as nossas guerras porque, em todos esses
conflitos, não estivemos todos do mesmo lado. Esquecemos esses
conflitos porque em todos eles nos distribuímos entre vencidos e
vencedores. Esquecemos porque não éramos ainda esta entidade que
somos hoje (moçambicanos, habitantes da mesma casa existencial que é
a nação moçambicana). Esses outros que já fomos têm dificuldade
em transitar para a categoria daqueles que “somos” no presente.
Fomos “eles” e mantemo-nos na terceira pessoa para continuarmos a
ser “nós”, esta entidade colectiva que nasceu de guerras que se
esquecem de si mesmas. Não sabemos sepultar dentro de nós aquilo
que de nós foi falecendo. Não temos na nossa alma lugar para esses
cemitérios vivos que são as memórias socialmente credenciadas.
Comecemos
pela luta de libertação nacional. Quando a Frelimo desencadeou a
insurreição geral armada foi difundido um apelo de mobilização
que dizia, a certo passo: Operários e camponeses, trabalhadores,
intelectuais, funcionários, estudantes, soldados moçambicanos no
exército português, homens, mulheres…
Esta
menção particular aos soldados moçambicanos nas fileiras
portuguesas merece explicação. No exército colonial português
chegou a haver 60 mil soldados. Destes, mais de metade eram
moçambicanos. Estou certo de que, na totalidade dos dez anos que
durou a luta de libertação, havia mais moçambicanos lutando nas
fileiras do exército colonial do que nas fileiras nacionalistas.
Durante este mesmo período, dezenas de milhares de moçambicanos
integraram não apenas o exército regular colonial, como deram corpo
a forças paramilitares como os Flechas, os Grupos Especiais, a OPVDC
e os Grupos Especiais de Pára-quedistas. Para não falar dos que
integraram a Pide. Numa palavra, e sem mais contas: estivemos dos
dois lados da guerra, fomos vítimas e culpados, anjos e demônios.
Mas
essa distribuição pelo paraíso e pelo inferno não ocorreu apenas
na luta de libertação nacional. Aconteceu nas lutas de resistência
em que frequentes vezes, naquilo que viria a ser o território
moçambicano, nações inteiras se aliavam aos portugueses para
resistir contra ameaças internas e externas. Entre os séculos XVII
e XIX as tropas coloniais sempre foram compostas por uma maioria de
soldados negros. O herói da resistência anticolonial Gungunhana
(tão bem retratado em Ualalapi) foi, ao mesmo tempo, coronel
do exército português. No seu quartel-general esteve hasteada a
bandeira lusitana. Muitos dos outros candidatos a heróis da
resistência (como Farelay de Angoche) não podem ser cantados sob
risco de despertarem fantasmas dos que foram escravizados por essas
mesmas personagens.
A
mesma dificuldade isentou de registo narrativo o longo e dramático
período da escravatura. Por que não temos memória dessa tragédia?
A resposta pode ser: é que nós fomos, ao mesmo tempo, escravos e
esclavagistas.
Em
suma, em toda a nossa história vencidos e vencedores se imiscuíram
e agora nenhum deles quer desenterrar tempos carregados de culpa e de
ressentimento. Há nesta reserva uma economia de paz, uma mediação
de silêncios, cuja inteligência não pode ser minimizada.
O
passado é sagrado porque é moradia dos mortos. Para se ter acesso a
esse respeitoso átrio é necessário um mito fundador partilhado em
consenso. Falta-nos esse password comum que nos devolva o
tempo e, ao mesmo tempo, nos liberte do remorso e da necessidade de
perdoarmos e sermos perdoados. A nossa comissão da verdade trabalha
por ausência e na pressa de começar um novo texto usa apenas a
tecla do delete.
Poder-se-ia
pensar que o nascimento da nação (este que ainda vivemos) fosse o
momento mais apropriado para recolher e reinventar o nosso comum
patrimônio de lembranças. Mas acontece exatamente o contrário.
Este é o período mais frágil, onde sabemos possível a emboscada
do julgamento passadista. Em todos os países do mundo sucedeu o
mesmo: o início da narrativa da nação nasceu daquilo que alguns
chamaram de “sintaxe do esquecimento”. Os processos de
aglutinação homogênea sugerem que diferentes comunidades se
esqueçam de si mesmas, e os diversos grupos abdiquem das suas
singularidades. Somos uma mesma nação porque esquecemos as mesmas
coisas da mesma maneira.
É
preciso vazar de lembranças o território simbólico da nação para
o poder povoar de novo, preenchendo o imaginário de formas novas,
num espelho que mostra não tanto o que somos, mas o que poderemos
ser. Na pressa de termos futuro, atiramos fora os degraus do caminho
percorrido. Todos experimentamos isso recentemente. Com o processo da
Independência esquecemos que tínhamos raça, tribo,
individualidade. Mesmo que fosse uma falsa amnésia, o facto é que
ela foi vivida com a intensidade de uma verdade.
Regresso
ao primeiro episódio da minha fala, essa lembrança do modo como eu
enovelava fios de lã nas mãos da minha mãe. Para agora, já em
final de fala, confessar o seguinte: esse momento tão cheio de
sossego tem uma outra versão. Se perguntarem à minha mãe ela dirá
que aquilo era um inferno. É assim que ela me responde ainda hoje:
“Tu não paravas quieto, queixavas-te que aquilo não era tarefa
para um rapaz e eu tinha que te dar umas sapatadas para não
ensarilharmos o novelo”.
Esta
é a lição: aprendi que se eu quero celebrar a casa, essa que
depois de tantas casas é a minha única casa, eu não posso sentar
todas as lembranças junto de minha velha mãe. Um de nós tem de
esquecer. E acabamos esquecendo os dois, para que a antiga casa possa
renascer na penumbra do tempo. Para não ensarilharmos o novelo da
memória.
Mia
Couto, in E se Obama fosse africano?
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