Chu
En-lai não devia ser um bom garfo. Primeiro, porque os
revolucionários são geralmente pessoas ascéticas que preferem ir
direto ao núcleo das coisas e têm pouca paciência com temperos,
molhos e outros prazeres do supérfluo. É difícil saborear o mundo
quando se está tentando transformá-lo. Segundo, porque tinha que
dar um exemplo de frugalidade às massas chinesas, renunciando à
fartura, às receitas exóticas e à massa chinesa. E terceiro,
porque na China ninguém usa garfo, é só pauzinho. E não ficaria
bem chamar o primeiro-ministro de “um bom palito”. Mas desconfio
que, enquanto Mao não enganava ninguém no seu entusiasmo pela mesa
sortida, Chu preferia dissimular um secreto gosto pelo rigorismo
clássico da melhor cozinha chinesa. Em particular, discretamente,
naqueles momentos em que o homem se recolhe com dois ou três
fantasmas e os seus hábitos mais íntimos, Chu devia ser um bom e
seletivo palito.
Pois,
se a grande cozinha da França é o resultado de um nobre compromisso
histórico entre o francês e o seu próprio fígado, a cozinha
italiana um pretexto para reunir a família e falar com a boca cheia,
a alemã uma permanente precaução contra os rigores do inverno e
outras exigências de calorias e vitalidade e a suíça uma
indefinível combinação de tudo isto, a cozinha chinesa é a única
que fala ao cérebro antes de fazer qualquer outro apelo. A notória
falta de substância da comida chinesa (tradicionalmente, você está
com fome de novo depois do maior banquete chinês) é uma prova de
que é feita para os sentidos — a visão, o olfato, o paladar — e
não para os instintos. Depois de ingerida, é como se nunca tivesse
existido. Diante de uma coleção de pratos chineses você não está
a ponto de se alimentar, você está “às vésperas de experimentar
alguns dos milhares de possibilidades de percepção humana do mundo
vegetal e animal”, e bota molho de soja nisso. E se no fim tudo
vira bolo fecal mesmo, a culpa é de como nós somos feitos, não é
dos chineses.
A
variedade é a característica mais atraente da cozinha chinesa —
ou das cozinhas clássicas chinesas, pois elas também variam de
região para região. Os extremos do acre e do doce no mesmo prato, a
combinação de opostos para que a antítese seja descoberta em cima
da língua... A dialética chinesa precedeu em alguns séculos a dos
filósofos alemães. E a prática de fritar com uma imersão rápida,
de segundos, no óleo fervendo, que os minceurs franceses estão
recém-descobrindo, já era história antiga na China quando na
França ainda catavam raízes.
Era
só olhar para a cara do velho Chu para saber que ele não apenas
apreciava a boa cozinha do seu país como até tinha aprendido com
ela. Era uma cara inteligente.
Luís
Fernando Veríssimo, in A mesa voadora
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