quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Liberdade e justiça

A revolução do século XX separou arbitrariamente, para fins desmesurados de conquista, duas noções inseparáveis. A liberdade absoluta mete a justiça a ridículo. A justiça absoluta nega a liberdade. Para serem fecundas, as duas noções devem descobrir os seus limites uma dentro da outra. Nenhum homem considera livre a sua condição se ela não for ao mesmo tempo justa, nem justa se não for livre. Precisamente, não pode conceber-se a liberdade sem o poder de clarificar o justo e o injusto, de reivindicar todo o ser em nome de uma parcela de ser que se recusa a extinguir-se. Finalmente, tem de haver uma justiça, embora bem diferente, para se restaurar a liberdade, único valor imperecível da história. Os homens só morrem bem quando o fizeram pela liberdade: pois, nessa altura, não acreditavam que morressem por completo.
Albert Camus, in O mito de Sísifo

De fraque


Ao ser convidado para padrinho de casamento, ia ponderar que há muito perdera a fé, não lhe ficava bem participar de ato religioso. O noivo cortou-lhe a objeção:
Estou convidando você para padrinho do civil.
Quer dizer: testemunha.
É a mesma coisa.
Não era. Testemunha ele podia ser, sem nuvem na consciência. Padrinho, ao pé do altar, diante do padre e de Deus, era coisa mais grave, para a qual não se sentia credenciado.
É em casa ou na Pretoria?
É na sacristia, meia hora antes do religioso. O juiz agora vai à igreja, você sabia?
Não sabia; nunca soube nada antes dos outros, ou se sabe esquece logo.
Se o juiz vai à igreja eu também vou, para casar você. É uma alegria para mim.
Para mim, então!
Uma honra.
Deixa disso, a honra é toda minha.
Bondade de você.
De você.
Vamos aos fatos. Você se casa simples ou solene, com aquele cerimonial todo?
A coisa mais simples do mundo.
Não vai ter fraque?
Que fraque nem mané-fraque!
Porque — vou ser franco —, se tiver fraque, eu…
Era o que faltava, botar você de fraque na sacristia!
Deu uma olhada no terno escuro, mandou passá-lo na lavanderia, e estava inocente da vida, na noite de véspera do casamento, quando o noivo telefona:
Queria dizer a você que o casamento civil não vai ser mais na sacristia. Agora é mais simples.
Onde é então?
No altar-mor.
Complicou.
Pelo contrário. O civil e o religioso são celebrados ao mesmo tempo.
Não entendi. O padre e o juiz juntos, no altar?!
Só o padre, mas ele casa pelos dois, para simplificar. Lavra dois termos, e um deles vai para o Registro Civil.
Cada dia uma novidade.
É mesmo. Sendo assim, você vai ficar com os outros padrinhos, ao lado do altar-mor.
Bem, eu…
Já sei, não é religioso. Mas também não vai me dizer que é ateu. Quem vai à sacristia não custa chegar até o altar. E depois, você é do civil.
Está certo.
Outra coisa. Os padrinhos de minha noiva chegaram de São Paulo e trouxeram fraques. Acham que assim fica melhor, mais distinto. Não estava nos meus planos, mas fico sem jeito de contrariá-los. Não digo que você também vista fraque, pode ir inteiramente a seu gosto, mas se quiser…
Querer o quê, a uma hora dessas? Eu não tenho, nunca tive esse balandrau.
Por isso não, que eu arranjei emprestados dois de seu corpo. São de amigos meus, pessoas magras, você experimenta, pode até combinar calça de um com fraque de outro, se der mais certo.
Isso não. Para que incomodar pessoas que não conheço?
Então vá como pretendia ir. Não tem problema. Apenas avisei porque se você preferisse ir como os paulistas…
Os paulistas! Passou a noite infeliz, pensando nos paulistas, ele mineiro fazendo feio ao lado dos paulistas, sempre os paulistas. Na manhã seguinte, cedinho, bateu para a Casa Rolas, salvação dos insuficientemente roupidos, e pediu um fraque.
De colete branco ou de colete preto?
Qual que acha melhor?
O senhor é quem resolve.
Resolva por mim.
Uns preferem preto, outros branco.
E então?
Tanto faz ir com branco ou com preto.
Vamos tirar a sorte com os dedos. Par é branco, ímpar é preto. Deu ímpar.
Eu se fosse o senhor ia com branco. Usa mais.
(Os consultores são assim, só em último caso atendem à consulta.)
Pela primeira vez viu-se metido num fraque. As abas não estariam demasiado compridas? O colete, folgado em excesso? E o comprimento da calça? As listras não lhe davam um ar de zebra de dois rabos? Ó angústia indumental, ramo impressentido da velha angústia existencial que acompanha o homem do berço aos sete palmos! O empregado reanimou-o:
Uma luva. Nem que fosse feito para o senhor.
A angústia recolheu-se, para reaparecer à tarde, ao aproximar-se a hora da entrega a domicílio do fraque alugado. Se não chegasse a tempo? E os paulistas, com seus negros fraques espetaculares? Ah, mundo cão! O portador explicou o atraso: tanta encomenda naquele dia, só num hotel em Copacabana entregara três fraques.
Entrou na igreja fazendo força por deixar patente que nascera de fraque e o usara a vida inteira, mas não estaria ainda mais patente a falsidade da pose? Era como se ostentasse à lapela a etiqueta com o nome da casa, o número da peça…
Fotografado, televisionado, alvo de olhares perscrutadores, não viu bem o casamento, não reparou na beleza da noiva nem no aplomb dos paulistas. Como se ele é que estivesse casando, e de certo modo estava: com o fraque.
Você está bacanérrimo, está bárbaro de fraque! — disse-lhe o irmão do noivo, empolgado, à hora do champanha. — Nem se compara com os outros padrinhos, que vieram diretamente do Rolas para o casamento.
Carlos Drummond de Andrade, in 70 historinhas

Democracia?

O grande problema do nosso sistema democrático é que ele permite fazer coisas nada democráticas democraticamente.
Constatamos que o poder real não está nos palácios dos governos: encontra-se, sim, nos conselhos de administração das multinacionais que decidem a nossa vida. Todos sabemos isso, mas, em nome da nossa tranquilidade e consciência cívica, esforçamo-nos por acreditar que a democracia é apenas isto. Se se restringir ao que vemos no dia a dia, chamaremos-lhe outra coisa qualquer — “poder subalterno a outro poder”, por exemplo —, mas democracia não. Vivemos numa plutocracia, pois são os ricos que governam e vivem.
José Saramago, in As palavras de Saramago

Djavan - Cedo ou Tarde

Como Bertrand Russell foi impedido de lecionar na Faculdade Municipal de Nova York

III
Se os zelotes eram poderosos na política local, os partidários do ensino independente também eram poderosos em todas as principais faculdades e universidades do país. Em defesa de Russell, acorreram diversos reitores de faculdades, incluindo Gideonse, de Brooklyn; Hutchins, de Chicago (onde Russell lecionara no ano anterior); Graham, da Carolina do Norte, que posteriormente veio a ser senador dos EUA; Neilson, da Smith University; Alexander, de Antioch; e Sproule, da Universidade da Califórnia, onde Russell estava, na época, “doutrinando os alunos em suas regras libertárias relativas à vida licenciosa em questões de sexo e amor promíscuo”. Em defesa de Russell também acorreram presidentes e ex-presidentes sociedades letradas – Nicholson, da Phi Beta Kappa; Curry, da Associação Matemática Norte-Americana; Hankies, da Associação Sociológica Norte-Americana; Beard, da Associação Histórica Norte-Americana; Ducasse, da Associação Filosófica Norte-Americana; Himstead, da Associação Norte-Americana de Professores Universitários, e vários outros. Dezessete dos mais destacados eruditos do país (incluindo Becker, de Cornell; Lovejoy, da Johns Hopkins; e Cannon, Kemble, Perry e Schlesinger, de Harvard) enviaram uma carta ao prefeito LaGuardia protestando contra o “ataque organizado à nomeação do filósofo mundialmente renomado Bertrand Russell (...)”. Se tal ataque se comprovasse bem-sucedido, prosseguia a carta, “nenhuma faculdade ou universidade norte-americana estaria a salvo do controle inquisitório por parte dos inimigos do pensamento livre (...). Receber instrução de um homem do calibre intelectual de Bertrand Russell é um raro privilégio para estudantes de qualquer lugar (...). Seus críticos deveriam enfrentá-lo no campo aberto e justo da discussão intelectual e da análise científica. Eles não têm o direito de silenciá-lo impedindo-o de lecionar (...). A questão é tão fundamental que não pode ser resolvida sem ameaçar toda a estrutura da liberdade intelectual sobre a qual a vida universitária norte-americana repousa”. Whitehead, Dewey, Shapley, Kasner, Einstein – todos os principais filósofos e cientistas defenderam abertamente a nomeação de Russell. “Grandes espíritos”, Einstein observou, “sempre encontraram forte oposição por parte das mediocridades. Estas não conseguem entender quando um homem conscientemente não se submete a preconceitos hereditários, mas usa sua inteligência de maneira honesta e corajosa.”
O apoio a Russell não se limitou, de maneira alguma, à comunidade acadêmica. A nomeação de Russell e a independência da autoridade que fez a indicação foram, é claro, endossadas pela União de Liberdades Civis dos Estados Unidos e pelo Comitê de Liberdade Cultural, cujo presidente, na época, era Sidney Hook. Também tomaram o partido de Russell todos os porta-vozes dos grupos religiosos mais liberais, incluindo o rabino Jonah B. Wise; o professor J.S. Bixler, da Faculdade de Teologia de Harvard; o professor E.S. Brightman, diretor do Conselho Nacional de Religião e Educação; o reverendo Robert G. Andrus, conselheiro dos alunos protestantes da Universidade de Columbia; o reverendo Jonh Haynes Holmes e o reverendo Guy Emery Shipley, que questionaram o direito de o bispo Manning falar em nome da Igreja Episcopal. Nove editores de destaque – incluindo Bennet Cerf, da Random House; Cass Canfield, da Harper’s; Alfred A. Knopf e Donald Brace, da Harcourt Brace – publicaram uma declaração exaltando a escolha de Russell como “algo que apenas reflete o mais alto crédito do Conselho de Educação Superior”. Falando a respeito das “brilhantes conquistas em filosofia” de Russell e de suas “grandes qualidades como educador”, os editores declararam que seria “uma pena para os alunos da cidade de Nova York não se beneficiarem dessa nomeação”. Como editores, prosseguiam, “não concordamos necessariamente, de maneira pessoal, com todas as opiniões expressas pelos autores dos livros que publicamos, mas acolhemos grandes pensadores em nossas listas, especialmente neste momento, em que a força bruta e a ignorância ganharam tanta ascendência sobre a razão e o intelecto em tantas partes do mundo. Pensamos ser mais importante do que nunca honrar a superioridade intelectual sempre que essa oportunidade se apresenta”. Sentimentos similares foram expressos pelos jornais Publishers’ Weekly e New York Herald Tribune, tanto em seus editoriais como por Dorothy Thompson, em sua coluna “On the Record”. “Lorde Russell não é imoral”, ela escreveu. “Qualquer pessoa que o conheça tem ciência de que é um homem da mais distinta integridade intelectual e pessoal.”
Na própria Faculdade Municipal havia muito ressentimento, igualmente entre estudantes e professores, em relação à da interferência eclesiástica e política nos assuntos internos da faculdade. Em um encontro geral realizado no grande salão, o professor Morris Raphael Cohen comparou a situação de Russell à de Sócrates. Se a nomeação de Russell fosse revogada, ele disse, “o bom nome de nossa cidade sofrerá, assim como sofreu Atenas ao condenar Sócrates como corruptor da juventude, ou Tennessee, ao considerar Scopes culpado por ensinar a teoria da evolução”. No mesmo encontro, o professor Herman Randall Jr., distinto historiador da filosofia e ele próprio um homem religioso, denunciou a oposição dos homens da Igreja à nomeação de Russell como uma “afronta pura” e uma “impertinência grotesca”. Trezentos membros da Faculdade Municipal assinaram uma carta felicitando o Conselho de Educação Superior pela esplêndida nomeação. Os pais dos alunos da Faculdade Municipal também não se alarmaram ante a perspectiva de que seus filhos fossem expostos à influência corrosiva da “mente superior por trás do amor livre”. Apesar de a maior parte dos opositores de Russell desfilar como porta-voz dos “pais ofendidos”, a Associação de Pais da Faculdade Municipal votou unanimemente a favor da ação do Conselho.
Paul Edwards, in Apêndice de Por que não sou cristão, de Bertrand Russell

A letra A


Era o ano de 341 a.C. quando Epicuro partiu de Samos para Téos, e, após ter se frustrado com o filósofo Pânfilo, ouviu notícias sobre o pensamento atomista. Depois de muitos estudos, Epicuro concluiu que a inclinação de um átomo por outro pode ocorrer não somente por necessidade, como pensava Demócrito, mas por atração e desejo. Foi por essa época, também, e em função da constatação sobre o desejo que os átomos sentiam uns pelos outros, que Epicuro desenvolveu a letra A. Os átomos já existiam desde toda a eternidade e o infinito dos infinitos, desde o momento causador do caos, mas ainda não havia uma letra para designá-los. Por esse motivo, o desejo de um átomo por outro, o apelo de um átomo pelo outro, não tinha como expressar-se. Não havia uma letra para fazê-lo. E o problema não era só dos átomos propriamente. As pessoas, movidas internamente pela força atômica, também se encontravam carentes de aproximação daqueles por quem se sentiam atraídas. Quando alguém como Demóstrata de Kyos se sentia perdidamente seduzida pelos átomos de Ípsion de Elera, que, por sua vez, não se dava conta do desejo que o visava, não havia forma de expressar tal desejo, pois, quando Demóstrata procurou Ípsion para declarar sua inclinação atomística, faltava uma letra para dizê-lo. Epicuro, observando a imensa lacuna que se desenhava entre as manifestações de desejo dos átomos — no espaço ou nos homens — e sua realização, determinou-se a criar a letra que preencheria todos esses vácuos amorosos. Em primeiro lugar, cuidou de definir, pela observação dos movimentos atômicos, qual seria a figura geométrica que mais se adequaria à representação de seu deslocamento pelo espaço e pelas células. Decidiu-se pela reta inclinada, que, aliás, também coincide com a definição que vinha configurando, de que os átomos sentem inclinação uns pelos outros. Permaneceu, por alguns meses, com a reta inclinada num ângulo de 45 graus, mas não se satisfazia com ela. Considerava-a insuficiente para dar conta de todo o circuito que os átomos perfaziam. Foi quando, depois de uma noite com Arícia de Páros, lembrou-se de outra reta inclinada, no mesmo ângulo mas em direção oposta, que, em seu vértice, se encontrasse com a anterior. Isso simbolizaria quase perfeitamente a força magnética que um átomo exercia sobre outro, embora não a importância igualmente relevante da casualidade, que, como seu mestre Demócrito afirmara, compunha necessariamente a atração entre os átomos. As duas retas inclinadas, encontrando-se no vértice, transpareciam somente atração necessária, e não casual. Mas rapidamente Epicuro se deu conta de que o vazio que havia na base entre as duas retas, sem que o triângulo se fechasse, estava ali justamente para representar o acaso, que, casualmente, já viera integrar-se ao desenho da letra sem que Epicuro percebesse. E ele então se satisfez com o triângulo aberto na base. Mas eis que o mestre, contra sua própria filosofia — a de que o prazer é a ausência de dor —, apaixonou-se por Arícia, e isso o afligia. Convidou-a a frequentar seu jardim e refletiu sobre o mal que aquela paixão lhe provocava. Como Arícia correspondia aos sentimentos de Epicuro e concordou em participar do jardim, a teoria do prazer como ausência de sofrimento podia ser efetivada sem prejuízo teórico. Foi durante essa experiência que Epicuro se lembrou de instalar uma pequena reta unindo as duas retas anteriormente inclinadas, para reforçar a ideia de aliança no bem-estar. Desde então, a letra A tem servido para todas as teorias atomistas subsequentes, como também para designar os aviões, um dos desenvolvimentos da teoria atomista, as aves e a cor azul, que não passa de um encontro feliz de átomos pacíficos.
Noemi Jaffe, in A verdadeira história do alfabeto

terça-feira, 30 de outubro de 2018

Dentro do homem está Deus

Dentro do homem existe um Deus desconhecido: não sei qual, mas existe - dizia Sócrates soletrando com os olhos da razão, à luz serena do céu da Grécia, o problema do destino humano. E Cristo com os olhos da fé lia no horizonte anuveado das visões do profeta esta outra palavra de consolação - dentro do homem está o reino dos céus. Profundo, altíssimo, acordo de dois gênios tão distantes pela pátria, pela raça, pela tradição, por todos os abismos que uma fatalidade misteriosa cavou entre os irmãos infelizes, violentamente separados, duma mesma família! Dos dois pólos extremos da história antiga, através dos mares insondáveis, através dos tempos tenebrosos, o gênio luminoso e humano das raças índicas e o gênio sombrio, mas profundo, dos povos semíticos se enviam, como primeiro mas firme penhor da futura unidade, esta saudação fraternal, palavra de vida que o mundo esperava na angústia do seu caos - o homem é um Deus que se ignora.
Grande, soberana consolação de ver essa luz de concórdia raiar do ponto do horizonte aonde menos se esperava, de ver uma vez unidos, conciliados esses dois extremos inimigos, esses dois espíritos rivais cuja luta entristecia o mundo, ecoava como um tremendo dobre funeral no coração retalhado da humanidade antiga! Os combatentes, no maior ardor da peleja, fitam-se, encaram-se com pasmo, e sentem as mãos abrirem-se para deixar cair o ferro fratricida. Estendem os braços... somos irmãos !
Primeiro encontro, santo e puríssimo, dos prometidos da história! Manhã suave dos primeiros sorrisos, dos olhares tímidos mas leais desses noivos formosíssimos, que o tempo aproximava assim para o casamento misterioso das raças!
Não há no mundo palácio de rei digno de lhes escutar as primeiras e sublimes confidências! Só um templo, alto como a cúpula do céu, largo como o voo do desejo, puro como a esperança do primeiro e inocente ideal humano!
Esse templo tiveram-no. Naquela palavra de dois loucos se encerra tudo. Nenhuma montanha tão alta, aonde a olho nu se aviste Deus, como o voo desta frase, a maior revelação que jamais ouvirá o mundo - dentro do homem está Deus.
Antero de Quental, in Prosas da época de Coimbra

Mafalda


Não sei quantas almas tenho

Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,

Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: “Fui eu?”
Deus sabe, porque o escreveu.
Fernando Pessoa

Pássaros e Jardins

Gosto do apartamento em que vivo. Décimo primeiro andar. A vista é muito bonita, vê-se ao longe... Quando o vento é forte, ele assobia de forma sinistra e musical. Quase lhe pus o nome de Morada dos Ventos Uivantes.
Já morei num outro: oitavo andar. Fiz um microjardim na varanda. Assentado na sala, enquanto ouvia música, via o jardim, a cidade, a chuva e sentia o prazer do vento na minha pele. Mas tinha uma tristeza. Os passarinhos não me visitavam. Tentei. Pus comida para eles. Inutilmente. Guimarães Rosa diz que há dois tipos de altura: altura de urubu ir, e altura de urubu não ir. Quem sabe só urubu tinha coragem de subir até a altura do oitavo andar...
O Carlos Rodrigues Brandão me deu um livro, faz tempo, que ainda não li. O título é: A linguagem dos pássaros. Nunca levei o dito a sério porque era minha firme convicção que passarinho não tem linguagem. Pois mudei de ideia. Eles não só falam como também leem os jornais. Tive prova disso, prova que não se pode contestar. Eu me queixei, numa de minhas crônicas, da ausência dos pássaros no meu apartamento, a despeito do jardim na varanda. Aventei a hipótese de que é porque eu morava no oitavo andar, talvez fosse altura demais. Meu apartamento estava em altura de só urubu ir. Fiquei triste. Lamentei-me disso no jornal. Na segunda-feira, ao chegar em casa do trabalho no final do dia, lá estava, na sala, atendendo à minha queixa, um beija-flor empoleirado no lustre. O bichinho se assustou. Como se sabe, os homens são os seres que perderam a confiança dos pássaros. Ele se pôs a voar de um lado para outro, desorientado, sem saber onde estava a saída. Tentei pegá-lo. Inutilmente. Aí ele se refugiou no banheiro. Fechei a porta, subi numa cadeira e finalmente o segurei com palavras tranquilizantes. Ele não acreditou e até deixou várias penas na minha mão. Desci da cadeira, fui até a varanda e o soltei. Ele partiu como uma flecha. Ah! Como me senti feliz! Pois, no dia seguinte, a coisa se repetiu: não com o beija-flor, mas com uma curruíra. Ela não entrou no apartamento, mas ficou saltitando no jardim. Peguei as peninhas do beija-flor, azuis, amarrei-as com um fio e as pendurei no bambu do jardim, como mensagem de paz. Quero que os pássaros confiem em mim. Vocês não concordam comigo que o fato de um beija-flor e uma curruíra terem me visitado no meu apartamento é prova cabal de que leem jornal? Por que é que foram aparecer justo no dia seguinte à minha queixa? E fiquei feliz por saber que eles leem o que eu escrevo…
Rubem Alves, in Pimentas: para provocar um incêndio, não é preciso fogo

Apologia às Virgens Mães, por As Bahias e a Cozinha Mineira

Saberes, sabores...

Até aqui construí escadas, construí saberes. Agora abandonei as escadas, abandonei os saberes. Dedico-me aos sabores das frutas que se encontram além da escada. Desejo agora ensinar os sabores. Mas os sabores não podem ser ditos. Ensinar sem falar: somente os taoístas conhecem essa arte impossível”.
Roland Barthes

Confetis

Feito aquele enredo dos Três Mosqueteiros (olha aí a sugestão pra fantasia), os três dias de carnaval são quatro. Isso já dá uma ideia da bagunça. Uma pequena ideia.
Durante os três (quatro, cinco...) dias de pagode, imperam os disparates dos súditos de Momo Primeiro e Único, fora os outros trinta - Cidadão Samba, Cidadão Recreativista, Rei do Carnaval, as respectivas Rainhas e Princesas, D. Higiênico Sales, Marechal de Cama-e-Mesa Átero Escler Ozze, e menos votados.
Marmanjo trajando fralda suja nos fundilhos com creme de abacate...
Neros coroados de arruda tangendo mudas harpas de tábuas de privada...
Zorros de sapato-tanque ao lado dos fiéis Bêbados, isto é, Tontos...
Grandes astros internacionais cuja maior graça reside no fato indiscutível de não serem astros, nem grandes, e internacionais lá pras negas deles...
Árabes de lençol e toalha santista (os mais refinados) em busca de um oásis que venda caipirinha...
O imortal General da Banda. Melhor um General da Banda que outra banda dos generais...
Marte, o Deus da Guerra, de batom e cílios postiços, com os bordados da capa (diviiina) feitos pela mamãe (dele)...
Odaliscas de cocar bebendo uísque nacional, melindrosas com o que a baiana tem na piteira, gregas com o chapéu de tirolesa, cheirando lança...
A rainha do Carnaval (uma delas) apertada pra fazer xixi, perguntando pelo “Wanderley Cardoso”…
Cartolas enormes, próprias pros palhaços que “dirigem” nosso futebol...
Blocos de Sujo muito mais limpos que o jet-set...
Buda, logo atrás de um Preto Velho, empurrado por tapuias de cueca zorba...
A freira que é barbadinho com o hábito levantado... A Rainha Louca sentada num Círio de Nazaré. É louca mesmo, sô...
O nomezinho daquela doce gueixa é Oswaldo, torneiro-mecânico de profissão...
Que qui a cobra tá fazendo ali na Cleópatra? A transação não foi no seio?...
Santos Dumont estacionando o 14-BIS no Aterro pra ir tomar uma loura com a escurinha...
A moça nua em cima da mesa: duas listrinhas claras - tirou o bustiê, arrancaram a tanga - no corpo queimado. Zebra estilizada?...
Acima a depilação! Quer dizer, embaixo, por favor, não...
Um jacaré de rancho dança frevo em Irajá tomando mamadeira cheia de maracujá...
O Fantástico Marajá de Laori ameaçando dar uma sandalhada no Esplendor de Assurbanípal..
O Incrível Hulk, bastante emagrecido, tomando cachaça e escarrando sangue num coreto da Penha...
Escravas de correntes douradas e sandálias havaianas...
Chope, chope, chope pra afastar o calor...
Coxas, coxas, coxas pra aumentar o tesão...
A fantasia de legionário, miragem de todas as juventudes...
Palha, ráfia, isopor, paetê, fita - materiais que o BNH usará no futuro...
A Princesa Isabel sofrendo com as cólicas menstruais no desfile do Grupo III...
Um pierrô - até que enfim! - corneando o arlequim...
Mais nobreza decadente: o Rei Sol palmeando um cabo da PM...
Zumbi dos Palmares no repique, morcegos brincando à luz do dia, Clóvis na linha do trem para todo o sempre...
Aquele tampinha, perto da cabrocha e do rubro-negro de patinete, ali ó, não é o tal do general Jaruzelski?...
E, comandando a Ala do Bochincho, Tamandaré batendo o pé: - Sem minhas guias e colares por cima das medalhas, nem morta!...
Por aí afora, O negócio é aproveitar. Porque depois restauram a moralidade, refazem a Lei, recompõem a ordem, e aí, durante uns trezentos e sessenta dias imperam a seriedade do general que manda assassinar desafetos como qualquer dono de boca-de-fumo, a austeridade de um Ministro da Justiça contrabandeando joias, desfalques, desvios, escândalos!
A não ser no Carnaval, o Brasil é a maior zona.
Aldir Blanc, in Brasil passado a sujo

segunda-feira, 29 de outubro de 2018

Poemas de resistência, de Sérgio Vaz


O vento noroeste

Ou muito me engano (e nesse caso corrija-me o Gabinete de Meteorologia) ou foi mesmo o Vento Noroeste que se pôs desde dez horas de anteontem a soprar sobre a cidade, secando o coração das gentes. O vento desceu subitamente do céu da madrugada, onde brilhava, numa lucidez de entreloucura, grande como uma lágrima da noite, a desvairada estrela da manhã. Primeiro numa rajada fria, que trazia na epiderme farfalhante um pouco do éter das altas regiões de onde chegava. E logo tornou-se morno, depois aqueceu. E partiu à solta, crestando a face lisa da aurora, fazendo crepitar as folhas das árvores, evaporando o mar que inaugurou de verde o dia nascente. A mim secou-me os olhos, a boca e a alma perseguida de insônia, e me tornou áspero o lençol, e me trouxe lembranças secas de vida. Assisti ao dia nascer como se visse um diamante cortar vidro e ficasse inelutavelmente a respirar a poeira implacável do carvão remanescente.
Depois dormi e sonhei. Mas meus sonhos tinham também uma secura de cal. Vi se estorcer em chamas o antigo cadáver de uma moça que morreu tísica e se chamava Alice. Vi homens se arrastando atrás de mulheres sobre um chão de giletes. Vi troncos musculares de fícus arfando em dispneias vegetais. Vi se queimarem atmosferas enormes em clarões de cloretila. Depois acordei com a boca seca e uma sede de chupar limão verde.
De saída para o Centro, pude sentir o mal que o Noroeste, esse Leviatã dos ventos, estava fazendo à cidade. Na esquina de minha casa tinha desaparecido uma criança, que a mãe buscava em gestos de Guernica. No ônibus (pegara um marcado “expresso”) várias pessoas tinham-se esquecido que esses carros são diretos e quiseram saltar em Copacabana, mas o chofer não deixou porque é proibido. A palavra “proibido” ganhou uma tal secura, ao Vento Noroeste, que por um instante eu tive a visão do homem carioca afogado em cinzas. Não podia saltar onde queria, mesmo pagando. A companhia de ônibus não deixava. Precisaria pegar outro ônibus, ou então um lotação, para voltar. Nesse meio tempo já tinham saído várias discussões e na avenida Atlântica houvera um desastre com dois ônibus vermelhos da linha Ipanema: um deles chegara até a beira do passeio, quase a cair na areia, e tinha uma cara sedenta, como se tivesse querido se afogar. Na Glória, a carcaça de outro ônibus que ardera amontoava-se no asfalto. Aquilo lembrou-me, em grande, um esqueleto incinerado que vi no cinema, saindo de um forno, num dos campos de concentração nazista. De vinda para a redação, vi dois homens brigando corpo a corpo. Agrediam-se como cães danados e depois um pegou uma pedra para arrebentar a cabeça do outro, e só por um acaso não acertou.
E agora, escrevendo esta crônica que é a seca expressão da verdade, eu vejo que o Noroeste está querendo secar até a tempestade que se anuncia na tarde erma. Não, que o Vento Noroeste não seque a tormenta que há de desafogar a cidade. Vinde, trovões mensageiros; rasgai o céu, relâmpagos! Que as águas de um novo dilúvio desabem sobre a cidade angustiada e encharquem a terra de lama e as árvores de seiva. Que desçam os raios e sangrem o flanco flácido dos morros e que se rejuvenesça o coração dos homens. Que o ar se rompa em rajadas frescas e se repousem os cabelos das mulheres, frementes de eletricidade.
Que deixem de ranger os papéis da burocracia, sacados pelo Vento Noroeste. Que pare, que pare imediatamente o sopro desta bisnaga de ar quente a soprar sobre a dentina dolorida da cidade. Que venha o Azul, o Azul, o Azul, o Azul!
Vinicius de Moraes, in Prosa

A brasilidade no traço de Portinari


Nada tem importância

O que importa que eu me atormente, que eu sofra ou que eu pense? Minha presença no mundo não fará nada mais que abalar, para meu grande pesar, algumas existências tranquilas e atrapalhar - para meu pesar ainda maior - a suave inconsciência de algumas outras. Ainda que eu sinta minha própria tragédia como a mais grave da história - mais grave mesmo do que a queda de impérios ou não sei que desmoronamento no fundo de uma mina - eu tenho o sentimento implícito da minha nulidade e da minha insignificância. Ainda que persuadido de não ser nada no universo, eu sinto que minha existência é a única real. E digo mais, se eu devesse escolher entre a existência do mundo e a minha própria, eliminaria de boa vontade a primeira com todas as suas luzes e leis para que pudesse planar solitário no vazio. Ainda que a vida me seja um suplício, eu não pude renunciá-la, pois não creio que sejam absolutos os valores em nome dos quais me sacrificaria. Para ser sincero, eu deveria dizer que não sei por que vivo, nem por que não paro de viver. A chave está, provavelmente, na irracionalidade da vida, que faz com que ela se mantenha sem razão. E se houvessem somente razões absurdas para se viver? O mundo não merece que a gente se sacrifique por uma ideia ou uma crença. Nós somos mais felizes hoje porque outros o fizeram para nosso bem? Que bem? Se alguém sacrificou-se verdadeiramente para que eu fosse mais feliz no presente, eu sou, na verdade, mais infeliz do que ele, pois não concordo em fundar minha existência sobre um cemitério. Há momentos em que eu me sinto responsável por toda a miséria da história, momentos em que não compreendo por que alguns versaram seu sangue por nós. A ironia suprema consistiria em perceber que estes foram mais felizes do que nós somos hoje. Maldita seja a história! Nada mais deveria interessar-me; o problema da própria morte pareceria-me ridículo; o sofrimento - estéril e limitado; o entusiasmo - impuro; a vida - racional; a dialética da vida - lógica e não mais demoníaca; o desespero - menor e parcial; a eternidade - uma palavra oca; a experiência do nada - uma ilusão; a fatalidade - uma piada... Pensando seriamente, para que serve isso tudo? Por que colocar-se questões, tentar esclarecer ou aceitar as sombras? Não seria melhor enterrar minhas lágrimas na areia às margens do mar, numa solidão absoluta? Mas eu nunca chorei, pois as lágrimas transformaram-se em pensamentos tão amargos quanto as próprias lágrimas.
Emil Cioran, in Nos cumes do desespero

Esta história é quase nada

Devo acrescentar um algo que importa muito para a apreensão da narrativa: é que esta é acompanhada do princípio ao fim por uma levíssima e constante dor de dentes, coisa de dentina exposta. Afianço também que a história será igualmente acompanhada pelo violino plangente tocado por um homem magro bem na esquina. A sua cara é estreita e amarela como se ela já tivesse morrido. E talvez tenha. Tudo isso eu disse tão longamente por medo de ter prometido demais e dar apenas o simples e o pouco. Pois esta história é quase nada. O jeito é começar de repente assim como eu me lanço de repente na água gélida do mar, modo de enfrentar com uma coragem suicida o intenso frio. Vou agora começar pelo meio dizendo que – que ela era incompetente. Incompetente para a vida.
Faltava-lhe o jeito de se ajeitar. Só vagamente tomava conhecimento da espécie que tinha de si em si mesma. Se fosse criatura que se exprimisse diria: o mundo é fora de mim, eu sou fora de mim. (Vai ser difícil escrever esta história. Apesar de eu não ter nada a ver com a moça, terei que me escrever todo através dela por entre espantos meus. Os fatos são sonoros mas entre os fatos há um sussurro. É o sussurro que me impressiona). Faltava-lhe o jeito de se ajeitar. Tanto que (explosão) nada argumentou em seu próprio favor quando o chefe da firma de representante de roldanas avisou-lhe com brutalidade (brutalidade essa que ela parecia provocar com sua cara de tola, rosto que pedia tapa), com brutalidade que só ia manter no emprego Glória, sua colega, porque quanto a ela, errava demais na datilografia, além de sujar invariavelmente o papel. Isso disse ele. Quanto à moça, achou que se deve por respeito responder alguma coisa e falou cerimoniosamente a seu escondidamente amado chefe:
Me desculpe o aborrecimento.
O senhor Raimundo Silveira – que a essa altura já lhe havia virado as costas – voltou-se um pouco surpreendido com a inesperada delicadeza e alguma coisa na cara quase sorridente da datilógrafa o fez dizer com menos grosseria na voz, embora a contragosto:
Bem, a despedida pode não ser para já, é capaz até de demorar um pouco.
Depois de receber o aviso foi ao banheiro para ficar sozinha porque estava toda atordoada. Olhou-se maquinalmente ao espelho que encimava a pia imunda e rachada, cheia de cabelos, o que tanto combinava com sua vida. Pareceu-lhe que o espelho baço e escurecido não refletia imagem algum. Sumira por acaso a sua existência física? Logo depois passou a ilusão e enxergou a cara todo deformada pelo espelho ordinário, o nariz tornado enorme como o de um palhaço de nariz de papelão. Olhou-se e levemente pensou: tão jovem e já com ferrugem.
(Há os que têm. E há os que não têm. É muito simples: a moça não tinha. Não tinha o quê? É apenas isso mesmo: não tinha. Se der para me entenderem, está bem. Se não, também está bem. Mas por que trato dessa moça quando o que mais desejo é trigo puramente maduro e ouro no estio?)
Quando era pequena sua tia para castigá-la com medo dissera-lhe que homem-vampiro – aquele que chupa sangue da pessoa mordendo-lhe o tenro da garganta – não tinha reflexo no espelho. Até que não seria de todo ruim ser vampiro pois bem lhe iria algum rosado de sangue no amarelado do rosto, ela que não parecia ter sangue a menos que viesse um dia a derramá-lo.
A moça tinha ombros curvos como os de uma cerzideira. Aprendera em pequena a cerzir. Ela se realizaria muito mais se se desse ao delicado labor de restaurar fios, quem sabe se de seda. Ou de luxo: cetim bem brilhoso, um beijo de almas. Cerzideirinha mosquito. Carregar em costas de formiga um grão de açúcar. Ela era de leve como uma idiota, só que não o era. Não sabia que era infeliz. É porque ela acredita. Em quê? Em vós, mas não é preciso acreditar em alguém ou em alguma coisa – basta acreditar. Isso lhe dava às vezes estado de graça. Nunca perdera a fé.
(Ela me incomoda tanto que fiquei oco. Estou oco desta moça. E ela tanto mais me incomoda quanto menos reclama. Estou com raiva. Uma cólera de derrubar copos e pratos e quebrar vidraças. Como me vingar? Ou melhor, como me compensar? Já sei: amando meu cão que tem mais comida do que a moça. Por que ela não reage? Cadê um pouco de fibra? Não, ela é doce obediente.)
Viu ainda dois olhos enormes, redondos, saltados e interrogativos – tinha olhar de quem tem uma asa ferida – distúrbio talvez de tiroide, olhos que perguntavam. A quem interrogava ela? A Deus? Ela não pensava em Deus, Deus não pensava nela. Deus é de quem conseguir pegá-lo. Na distração aparece Deus. Não fazia perguntas. Adivinhava que não há respostas. Era lá tola de perguntar? E de receber um “não” na cara? Talvez a pergunta vazia fosse apenas para que um dia alguém não viesse a dizer que ela nem ao menos havia perguntado. Por falta de que lhe respondesse ela mesma parecia se ter respondido: é assim porque é assim. Existe no mundo outra resposta? Se alguém sabe de uma melhor, que se apresente e a diga, estou há anos esperando.
Clarice Lispector, in A hora da estrela

domingo, 28 de outubro de 2018

Zé Ramalho - Admirável Gado Novo

O outro

Sempre que tiveres dúvidas, ou quando o teu eu te pesar em excesso, experimenta o seguinte recurso: lembra-te do rosto do homem mais pobre e mais desamparado que alguma vez tenhas visto e pergunta-te se o passo que pretendes dar lhe vai ser de alguma utilidade. Poderá ganhar alguma coisa com isso? Fará com que recupere o controle da sua vida e do seu destino? Por outras palavras, conduzirá à autonomia espiritual e física dos milhões de pessoas que morrem de fome? Verás, então, como as tuas dúvidas e o teu eu se desvanecem.”
Mohandas Gandhi

No Caminho com Maiakóvski

Assim como a criança
humildemente afaga
a imagem do herói,
assim me aproximo de ti, Maiakóvski.
Não importa o que me possa acontecer
por andar ombro a ombro
com um poeta soviético.
Lendo teus versos,
aprendi a ter coragem.

Tu sabes,
conheces melhor do que eu
a velha história.
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.

Nos dias que correm
a ninguém é dado
repousar a cabeça
alheia ao terror.
Os humildes baixam a cerviz;
e nós, que não temos pacto algum
com os senhores do mundo,
por temor nos calamos.
No silêncio de meu quarto
a ousadia me afogueia as faces
e eu fantasio um levante;
mas amanhã,
diante do juiz,
talvez meus lábios
calem a verdade
como um foco de germes
capaz de me destruir.

Olho ao redor
e o que vejo
e acabo por repetir
são mentiras.
Mal sabe a criança dizer mãe
e a propaganda lhe destrói a consciência.
A mim, quase me arrastam
pela gola do paletó
à porta do templo
e me pedem que aguarde
até que a Democracia
se digne a aparecer no balcão.
Mas eu sei,
porque não estou amedrontado
a ponto de cegar, que ela tem uma espada
a lhe espetar as costelas
e o riso que nos mostra
é uma tênue cortina
lançada sobre os arsenais.

Vamos ao campo
e não os vemos ao nosso lado,
no plantio.
Mas ao tempo da colheita
lá estão
e acabam por nos roubar
até o último grão de trigo.
Dizem-nos que de nós emana o poder
mas sempre o temos contra nós.
Dizem-nos que é preciso
defender nossos lares
mas se nos rebelamos contra a opressão
é sobre nós que marcham os soldados.

E por temor eu me calo,
por temor aceito a condição
de falso democrata
e rotulo meus gestos
com a palavra liberdade,
procurando, num sorriso,
esconder minha dor
diante de meus superiores.
Mas dentro de mim,
com a potência de um milhão de vozes,
o coração grita – MENTIRA!
Eduardo Alves da Costa

Street Art, de Hijack


Acerca da fé

Não se pode dizer que estamos carentes de fé. O simples fato de nossa vida é, por si só, inesgotável em seu valor de fé.”
Seria isso um valor de fé? Não é possível não-viver.”
Já nesse ‘não é possível’ reside a força insana da fé; é nessa negação que ela assume sua forma.”
Não é necessário que você saia de casa. Fique junto à sua mesa e escute. Nem mesmo escute, só espere. Nem mesmo espere, fique totalmente em silêncio e sozinho. O mundo irá oferecer-se a você para o próprio desmascaramento, não pode fazer outra coisa, extasiado ele irá contorcer-se a seus pés.
Franz Kafka, in Aforismos reunidos

Aranhas raras e sistemas de escrita esquecidos

A ciência moderna e os impérios modernos foram motivados pela incessante sensação de que talvez algo importante os esperasse além do horizonte – algo que era melhor explorar e dominar. Mas a relação entre ciência e império era muito mais profunda. Não só a motivação como também as práticas dos que erguiam impérios se confundiam com as dos cientistas. Para os europeus modernos, construir um império era um projeto científico, e criar uma disciplina científica era um projeto imperial.
Quando conquistaram a Índia, os muçulmanos não levaram consigo arqueólogos para estudar sistematicamente a história indiana, antropólogos para estudar as culturas indianas, geólogos para estudar os solos indianos ou zoólogos para estudar a fauna indiana. Quando conquistaram a Índia, os britânicos fizeram todas essas coisas. Em 10 de abril de 1802, foi lançado o Grande Levantamento da Índia. Durou 60 anos. Com a ajuda de dezenas de milhares de guias, estudiosos e trabalhadores nativos, os britânicos mapearam cuidadosamente toda a Índia, demarcando fronteiras, medindo distâncias e inclusive calculando, pela primeira vez, a altura exata do monte Everest ou dos outros picos dos Himalaias. Os britânicos exploraram os recursos militares das províncias indianas e a localização das minas de ouro, mas também se deram ao trabalho de coletar informações sobre aranhas indianas raras, catalogar borboletas coloridas, estudar as origens antigas de línguas indianas extintas e escavar ruínas esquecidas.
Mohenjo-daro foi uma das principais cidades da civilização do vale do rio Indo, que floresceu no terceiro milênio a.C. e foi destruída por volta de 1900 a.C. Antes dos britânicos, nenhum governante da Índia – nem os máurias, nem os guptas, nem os sultões de Délhi, nem os grandes mogóis – havia prestado atenção às ruínas. Mas uma pesquisa arqueológica britânica encontrou o sítio em 1922. Uma equipe britânica então o escavou e descobriu a primeira grande civilização da Índia, da qual nenhum indiano tinha conhecimento.
Outro exemplo revelador da curiosidade científica britânica foi a decifração da escrita cuneiforme. Esse foi o principal sistema de escrita usado em todo o Oriente Médio por quase 3 mil anos, mas a última pessoa capaz de lê-lo provavelmente morreu no começo do primeiro milênio da era cristã. Desde então, os habitantes da região frequentemente encontravam inscrições cuneiformes em monumentos, estelas, ruínas antigas e cerâmicas quebradas, entretanto eles não faziam ideia de como ler os rabiscos estranhos e angulares, e, até onde sabemos, nunca tentaram. A escrita cuneiforme chamou a atenção dos europeus em 1618, quando o embaixador espanhol na Pérsia foi visitar as ruínas da antiga Persépolis, onde viu inscrições que ninguém soube lhe explicar. Notícias sobre a escrita desconhecida se espalharam entre os especialistas europeus e aguçaram sua curiosidade. Em 1657, estudiosos europeus publicaram a primeira transcrição de um texto cuneiforme de Persépolis. Seguiram-se cada vez mais transcrições, e por quase dois séculos os estudiosos no Ocidente tentaram decifrá-las. Nenhum deles conseguiu.
Nos anos 1830, um oficial britânico chamado Henry Rawlinson foi enviado à Pérsia para ajudar o xá a treinar seu exército à maneira europeia. Em seu tempo livre, Rawlinson viajou pela Pérsia e certo dia foi conduzido por guias locais até uma falésia nas montanhas Zagros, onde lhe mostraram a enorme inscrição de Behistun. Com aproximadamente 15 metros de altura e 25 de largura, ela fora entalhada no alto de uma falésia por ordem do rei Dario I, em torno de 500 a.C. Estava gravada em escrita cuneiforme em três idiomas: persa antigo, elamita e babilônio. A inscrição era bastante conhecida pelos habitantes locais, mas ninguém era capaz de lê-la. Rawlinson se convenceu de que, se pudesse decifrar a escrita, ele e outros estudiosos poderiam ler várias outras inscrições e textos que, na época, estavam sendo descobertos em todo o Oriente Médio, assim abrindo uma porta para um mundo antigo e esquecido.
O primeiro passo para decifrar o que estava escrito era produzir uma transcrição precisa que pudesse ser enviada para a Europa. Rawlinson desafiou a morte para fazê-lo, escalando a falésia íngreme a fim de copiar as estranhas letras. Ele contratou vários habitantes locais para ajudá-lo, em especial um garoto curdo que escalou até as partes mais inacessíveis da falésia a fim de copiar a parte superior da inscrição. Em 1847, o projeto foi concluído, e uma cópia completa e precisa foi enviada à Europa.
Rawlinson não se deu por satisfeito. Sendo um oficial do exército, ele tinha missões militares e políticas para cumprir, mas sempre que tinha um momento livre se debruçava sobre a escrita secreta. Experimentou um método após outro e finalmente conseguiu decifrar a parte da inscrição em persa antigo. Essa era a mais fácil, já que o persa antigo não era tão diferente do persa moderno, que Rawlinson conhecia muito bem. Uma compreensão do trecho em persa antigo lhe deu a chave que ele precisava para desvendar os segredos dos trechos elamita e babilônio. A grande porta se abriu, e de lá saiu uma enxurrada de vozes antigas, mas vivas – o tumulto de bazares sumérios, as proclamações de reis assírios, as discussões de burocratas babilônios. Sem os esforços de imperialistas europeus modernos como Rawlinson, não teríamos tomado conhecimento de boa parte do destino dos impérios antigos do Oriente Médio. Outro célebre estudioso imperialista foi William Jones. Jones chegou à Índia em setembro de 1783 para servir como juiz na Suprema Corte de Bengala. Ele também foi tão cativado pelas maravilhas da Índia que em menos de seis meses após chegar fundou a Sociedade Asiática. Essa organização acadêmica se dedicava a estudar as culturas, as histórias e as sociedades da Ásia, em particular da Índia. Menos de dois anos depois, Jones publicou suas observações sobre o sânscrito, que se tornaram pioneiras da ciência da linguística comparativa.
Em seus textos, Jones apontou similaridades surpreendentes entre o sânscrito, uma língua indiana antiga que se tornou a língua sagrada do ritual hindu, e o grego e o latim, bem como similaridades entre todas essas línguas e o gótico, o celta, o persa antigo, o francês e o inglês. Assim, “mãe” em sânscrito é “matar”, em latim é “mater” e em celta antigo é “mathir”. Jones supôs que todas essas línguas deviam ter uma mesma origem, tendo se desenvolvido a partir de uma língua ancestral esquecida. Foi, portanto, o primeiro a identificar aquela que mais tarde veio a ser conhecida como família de línguas indo-europeias.
O estudo de Jones foi um marco importante não só devido a suas hipóteses ousadas (e precisas), mas também devido à metodologia ordenada que ele desenvolveu para comparar as línguas. Tal metodologia foi posteriormente adotada por outros acadêmicos, permitindo que estudassem sistematicamente o desenvolvimento de todas as línguas do mundo.
Os linguistas receberam entusiástico apoio imperial. Os impérios europeus acreditavam que, para governar de maneira eficaz, precisavam conhecer as línguas e as culturas de seus súditos. Ao chegar à Índia, os oficiais britânicos passavam até três anos em uma faculdade de Calcutá, onde estudavam direito muçulmano e hindu ao lado de direito britânico; sânscrito, urdu e persa ao lado de grego e latim; e cultura tâmil, bengalesa e hindustâni ao lado de matemática, economia e geografia. O estudo de linguística prestou um auxílio inestimável na compreensão da estrutura e da gramática das línguas locais.
Graças ao trabalho de pessoas como William Jones e Henry Rawlinson, os conquistadores europeus conheciam muito bem seus impérios. Com efeito, muito melhor do que todos os conquistadores anteriores, ou mesmo do que a própria população nativa. Seu conhecimento superior teve vantagens práticas visíveis. Sem tal conhecimento, é improvável que um número irrisório de britânicos tivesse conseguido governar, oprimir e explorar tantas centenas de milhões de indianos por dois séculos. Durante todo o século XIX e início do século XX, menos de 5 mil oficiais britânicos, algo entre 40 mil a 70 mil soldados britânicos e, talvez, outros 100 mil empresários, parasitas, esposas e filhos de britânicos foram o suficiente para conquistar e governar até 300 milhões de indianos.
Mas essas vantagens práticas não foram a única razão pela qual os impérios financiaram o estudo de linguística, botânica, geografia e história. Não menos importante foi o fato de que a ciência deu aos impérios uma justificativa ideológica. Os europeus modernos passaram a acreditar que adquirir novo conhecimento era sempre bom. O fato de que os impérios produziam um fluxo constante de novo conhecimento os rotulava como iniciativas progressistas e positivas. Mesmo hoje, a história de ciências como geografia, arqueologia e botânica não pode se furtar a dar crédito aos impérios europeus, pelo menos indiretamente. A história da botânica tem pouco a dizer sobre o sofrimento dos aborígenes australianos, mas geralmente encontra algumas palavras amáveis para James Cook e Joseph Banks.
Além do mais, o novo conhecimento acumulado pelos impérios tornou possível, pelo menos em teoria, beneficiar as populações conquistadas e lhes trazer os benefícios do “progresso” – proporcionando medicamentos e educação, construindo ferrovias e canais, garantindo justiça e prosperidade. Os imperialistas afirmavam que seus impérios não eram vastos empreendimentos de exploração, e sim projetos altruístas que visavam ao interesse das raças não europeias – nas palavras de Rudyard Kipling, “o fardo do homem branco”:

Tomai o fardo do Homem Branco,
Enviai vossos melhores filhos.
Ide, condenai seus filhos ao exílio
Para servirem aos seus cativos;
Para esperar, com arreios
Com agitadores e selváticos
Seus cativos, servos obstinados,
Metade demônios, metade crianças.

É claro que os fatos muitas vezes contradizem esse mito. Os britânicos conquistaram Bengala, a província mais rica da Índia, em 1764. Os novos governantes se interessavam por pouca coisa além do enriquecimento próprio. Eles adotaram uma política econômica desastrosa que, poucos anos depois, levou à erupção da Grande Fome de Bengala. Começou em 1769, atingiu níveis catastróficos em 1770 e durou até 1773. Cerca de 10 milhões de bengaleses, um terço da população da província, morreram na calamidade.
Na verdade, nem a narrativa da opressão e da exploração, nem a do “fardo do homem branco” correspondem exatamente aos fatos. Os impérios europeus fizeram coisas tão variadas numa gama tão ampla que se pode encontrar inúmeros exemplos para corroborar o que quer que se queira dizer sobre eles. Você pensa que esses impérios eram monstruosidades do mal que espalhavam a morte, a opressão e a injustiça pelo mundo? Facilmente seria possível encher uma enciclopédia com seus crimes. Você quer afirmar que eles na verdade aprimoraram as condições de vida de seus súditos com novos remédios, melhores condições e maior segurança? Você poderia encher outra enciclopédia com suas realizações. Devido à sua íntima colaboração com a ciência, esses impérios exerceram tanto poder e mudaram o mundo a tal ponto que talvez não possam ser simplesmente rotulados como bons ou maus. Criaram o mundo tal como o conhecemos, incluindo as ideologias que usamos para julgá-los.
Mas a ciência também foi usada pelos imperialistas para fins mais sinistros. Biólogos, antropólogos e até mesmo linguistas forneceram provas científicas de que os europeus são superiores a todas as outras raças e, consequentemente, têm o direito (se não, talvez, o dever) de governá-las. Depois que William Jones afirmou que todas as línguas indo-europeias descendem de uma única língua antiga, muitos acadêmicos ficaram ávidos por descobrir quem haviam sido os falantes dessa língua. Eles observaram que os primeiros falantes de sânscrito, que invadiram a Índia a partir da Ásia Central há mais de 3 mil anos, se haviam autodenominado Arya. Os falantes da língua persa mais antiga se autodenominavam Airiia. Por isso, os estudiosos europeus concluíram que as pessoas que falaram a língua primordial que deu origem ao sânscrito e ao persa (e também ao grego, ao latim, ao gótico e ao celta) provavelmente se autodenominaram arianas. Poderia ser uma coincidência que aqueles que fundaram as magníficas civilizações indiana, persa, grega e romana fossem todos arianos?
Em seguida, acadêmicos britânicos, franceses e alemães associaram a teoria linguística sobre os arianos diligentes com a teoria de seleção natural de Darwin e postularam que os arianos eram não só um grupo linguístico como também uma entidade biológica – uma raça. E não qualquer raça, mas uma raça superior de humanos altos, de cabelo claro e olhos azuis, trabalhadores e super-racionais que surgiram das brumas do Norte para assentar as bases da cultura no mundo inteiro. Lamentavelmente, os arianos que invadiram a Índia e a Pérsia se casaram com membros da população nativa que eles encontraram nessas terras, perdendo sua tez clara e seu cabelo loiro e, com estes, a racionalidade e a diligência. As civilizações da Índia e da Pérsia consequentemente entraram em declínio. Na Europa, por outro lado, os arianos preservaram sua pureza racial. É por isso que os europeus conseguiram conquistar o mundo, e por isso estavam aptos para governá-lo – desde que tomassem precauções para não se misturar com as raças inferiores.
Tais teorias racistas, proeminentes e respeitáveis por muitas décadas, se tornaram um anátema tanto entre cientistas quanto entre políticos. As pessoas continuam a conduzir uma luta heroica contra o racismo sem perceber que a frente de batalha mudou, e que o lugar do racismo na ideologia imperialista foi substituído pelo “culturismo”. A palavra “culturismo” não existe, mas já está em tempo de a inventarmos. Entre as elites de hoje, as afirmações sobre os méritos contrastantes de diversos grupos humanos quase sempre são expressadas em termos de diferenças históricas entre culturas, e não de diferenças biológicas entre raças. Já não dizemos “está no sangue”; dizemos “está na cultura”.
Assim, os partidos direitistas da Europa que se opõem à imigração muçulmana geralmente tomam cuidado para evitar a terminologia racial. Os responsáveis por escrever os discursos de Marine le Pen teriam sido dispensados imediatamente se propusessem que a líder da Frente Nacional fosse à televisão para declarar que “não queremos que esses semitas inferiores diluam nosso sangue ariano e degenerem nossa civilização ariana”. Em vez disso, a Frente Nacional francesa, o Partido para a Liberdade holandês, a Aliança para o Futuro da Áustria e similares tendem a argumentar que a cultura ocidental, tal como evoluiu na Europa, é caracterizada por valores democráticos, tolerância e igualdade de gênero, ao passo que a cultura muçulmana, que evoluiu no Oriente Médio, é caracterizada por política hierárquica, fanatismo e misoginia. Visto que as duas culturas são tão diferentes, e visto que muitos imigrantes muçulmanos não estão dispostos (e talvez nem sejam capazes) de adotar valores ocidentais, sua entrada não deve ser permitida, para que eles não fomentem conflitos internos e corroam a democracia e o liberalismo europeus.
Tais argumentos culturistas são alimentados por estudos científicos nas áreas de humanidades e ciências sociais que salientam o assim chamado choque de civilizações e as diferenças fundamentais entre culturas diferentes. Nem todos os historiadores e antropólogos aceitam essas teorias ou apoiam seu uso político. Mas, ao passo que os biólogos, hoje, têm facilidade para repudiar o racismo, explicando simplesmente que as diferenças entre as populações humanas do presente são triviais, é mais difícil para historiadores e antropólogos repudiar o culturismo. Afinal, se as diferenças entre as culturas humanas são triviais, por que deveríamos pagar historiadores e antropólogos para estudá-las?
Os cientistas forneceram ao projeto imperialista conhecimento prático, justificativas ideológicas e aparatos tecnológicos. Sem essa contribuição, é extremamente questionável se os europeus teriam conquistado o mundo. Os conquistadores devolveram o favor fornecendo aos cientistas informações e proteção, apoiando todo tipo de projeto estranho e fascinante e disseminando o modo de pensar científico aos quatro cantos da Terra. Sem o apoio imperial, é duvidoso que a ciência moderna tivesse ido tão longe. Há pouquíssimas disciplinas científicas que não começaram a vida como servas do crescimento imperial e que não devem grande parte de suas descobertas, coleções, edificações e bolsas de estudos à ajuda generosa de oficiais do exército, capitães da marinha e governantes imperiais.
Isso obviamente não é toda a história. A ciência foi apoiada por outras instituições, e não só por impérios. E os impérios europeus cresceram e floresceram graças também a outros fatores além da ciência. Por trás da ascensão meteórica tanto da ciência quanto do império, espreita uma força particularmente importante: o capitalismo. Se não fosse pelos homens de negócios procurando ganhar dinheiro, Colombo não teria chegado à América, James Cook não teria chegado à Austrália e Neil Armstrong jamais teria dado aquele pequeno passo na superfície da Lua.
Yuval Noah Harari, in Sapiens: uma breve história da humanidade