Devo
acrescentar um algo que importa muito para a apreensão da narrativa:
é que esta é acompanhada do princípio ao fim por uma levíssima e
constante dor de dentes, coisa de dentina exposta. Afianço também
que a história será igualmente acompanhada pelo violino plangente
tocado por um homem magro bem na esquina. A sua cara é estreita e
amarela como se ela já tivesse morrido. E talvez tenha. Tudo isso eu
disse tão longamente por medo de ter prometido demais e dar apenas o
simples e o pouco. Pois esta história é quase nada. O jeito é
começar de repente assim como eu me lanço de repente na água
gélida do mar, modo de enfrentar com uma coragem suicida o intenso
frio. Vou agora começar pelo meio dizendo que – que ela era
incompetente. Incompetente para a vida.
Faltava-lhe
o jeito de se ajeitar. Só vagamente tomava conhecimento da espécie
que tinha de si em si mesma. Se fosse criatura que se exprimisse
diria: o mundo é fora de mim, eu sou fora de mim. (Vai ser difícil
escrever esta história. Apesar de eu não ter nada a ver com a moça,
terei que me escrever todo através dela por entre espantos meus. Os
fatos são sonoros mas entre os fatos há um sussurro. É o sussurro
que me impressiona). Faltava-lhe o jeito de se ajeitar. Tanto que
(explosão) nada argumentou em seu próprio favor quando o chefe da
firma de representante de roldanas avisou-lhe com brutalidade
(brutalidade essa que ela parecia provocar com sua cara de tola,
rosto que pedia tapa), com brutalidade que só ia manter no emprego
Glória, sua colega, porque quanto a ela, errava demais na
datilografia, além de sujar invariavelmente o papel. Isso disse ele.
Quanto à moça, achou que se deve por respeito responder alguma
coisa e falou cerimoniosamente a seu escondidamente amado chefe:
– Me
desculpe o aborrecimento.
O
senhor Raimundo Silveira – que a essa altura já lhe havia virado
as costas – voltou-se um pouco surpreendido com a inesperada
delicadeza e alguma coisa na cara quase sorridente da datilógrafa o
fez dizer com menos grosseria na voz, embora a contragosto:
– Bem,
a despedida pode não ser para já, é capaz até de demorar um
pouco.
Depois
de receber o aviso foi ao banheiro para ficar sozinha porque estava
toda atordoada. Olhou-se maquinalmente ao espelho que encimava a pia
imunda e rachada, cheia de cabelos, o que tanto combinava com sua
vida. Pareceu-lhe que o espelho baço e escurecido não refletia
imagem algum. Sumira por acaso a sua existência física? Logo depois
passou a ilusão e enxergou a cara todo deformada pelo espelho
ordinário, o nariz tornado enorme como o de um palhaço de nariz de
papelão. Olhou-se e levemente pensou: tão jovem e já com ferrugem.
(Há
os que têm. E há os que não têm. É muito simples: a moça não
tinha. Não tinha o quê? É apenas isso mesmo: não tinha. Se der
para me entenderem, está bem. Se não, também está bem. Mas por
que trato dessa moça quando o que mais desejo é trigo puramente
maduro e ouro no estio?)
Quando
era pequena sua tia para castigá-la com medo dissera-lhe que
homem-vampiro – aquele que chupa sangue da pessoa mordendo-lhe o
tenro da garganta – não tinha reflexo no espelho. Até que não
seria de todo ruim ser vampiro pois bem lhe iria algum rosado de
sangue no amarelado do rosto, ela que não parecia ter sangue a menos
que viesse um dia a derramá-lo.
A
moça tinha ombros curvos como os de uma cerzideira. Aprendera em
pequena a cerzir. Ela se realizaria muito mais se se desse ao
delicado labor de restaurar fios, quem sabe se de seda. Ou de luxo:
cetim bem brilhoso, um beijo de almas. Cerzideirinha mosquito.
Carregar em costas de formiga um grão de açúcar. Ela era de leve
como uma idiota, só que não o era. Não sabia que era infeliz. É
porque ela acredita. Em quê? Em vós, mas não é preciso acreditar
em alguém ou em alguma coisa – basta acreditar. Isso lhe dava às
vezes estado de graça. Nunca perdera a fé.
(Ela
me incomoda tanto que fiquei oco. Estou oco desta moça. E ela tanto
mais me incomoda quanto menos reclama. Estou com raiva. Uma cólera
de derrubar copos e pratos e quebrar vidraças. Como me vingar? Ou
melhor, como me compensar? Já sei: amando meu cão que tem mais
comida do que a moça. Por que ela não reage? Cadê um pouco de
fibra? Não, ela é doce obediente.)
Viu
ainda dois olhos enormes, redondos, saltados e interrogativos –
tinha olhar de quem tem uma asa ferida – distúrbio talvez de
tiroide, olhos que perguntavam. A quem interrogava ela? A Deus? Ela
não pensava em Deus, Deus não pensava nela. Deus é de quem
conseguir pegá-lo. Na distração aparece Deus. Não fazia
perguntas. Adivinhava que não há respostas. Era lá tola de
perguntar? E de receber um “não” na cara? Talvez a pergunta
vazia fosse apenas para que um dia alguém não viesse a dizer que
ela nem ao menos havia perguntado. Por falta de que lhe respondesse
ela mesma parecia se ter respondido: é assim porque é assim. Existe
no mundo outra resposta? Se alguém sabe de uma melhor, que se
apresente e a diga, estou há anos esperando.
Clarice
Lispector, in A hora da estrela
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