sábado, 30 de setembro de 2017
Aloprabilidade
“Falava
língua nenhuma, jejuava em tudo. Seu fluido, neutro, não
incomodava. Frequentava ali, como se, em lugar do interior, em porta
de farmácia: o aspecto e atitude desmentindo as linhas tortas de seu
procedimento. Não seria louco, a não ser da básica e normal
doideira humana, a metafisicamente dita. Valeria, sim, saber-se o
grau virtual de sua aloprabilidade. A gente nem tem ideia de como,
por debaixo dos enredos da vida, talvez se esteja é somente e sempre
buscando conseguir-se no sulco pessoal do próprio destino, que é
naturalmente encoberto; e, se acaso, por breve trecho e a-de-leve, se
entremostra, então aturde, por parecer gratuito absurdo e sem-razão.
Convém ver. Só raros casos puros, aliás, abrem-nos aqui um pouco
os olhos.”
Guimarães
Rosa,
in Homem,
intentada viagem
O bem mais perigoso
Havendo
meditado profundamente sobre a afirmação do poeta Hölderlin — “a
linguagem é o mais perigoso de todos os bens” —, o sr. Saturnino
deliberou recolher-se à mudez total. Sua boca não pronunciou mais
um monossílabo.
A
família sentiu que não havia argumento ou artifício capaz de
devolvê-lo ao mundo dos sons, e por sua vez foi ficando calada. No
fim de seis meses ninguém falava naquela casa. Nem as moscas
zumbiam.
A
história da família silenciosa provocou certa curiosidade, mas
outros seis meses se passaram, e não se prestou mais atenção
naquilo. Saturnino e família foram esquecidos.
Não
pediam, não reclamavam, não pleiteavam nada. Ultimamente nem saíam
de casa. A casa não se abria. O fiscal de arrecadação, por força
de lei, bateu à porta para intimar Saturnino a pagar com multa os
impostos. A porta abriu-se sem ranger e lá dentro foram encontrados
Saturnino e seus familiares transformados no advérbio jamais.
Carlos
Drummond de Andrade,
in Contos
plausíveis
Poema gravado na pele
Google Images
Dizem
que a tatuagem data do paleolítico, quando era usada por povos
nativos da Ásia. Além da beleza das formas e cores, há algo de
simbólico nesses desenhos corporais. Os índios pintam o corpo em
cerimônias, festas e rituais de guerra. Os marinheiros, cujas
pátrias são os portos e os oceanos, ostentam em sua pele símbolos
que evocam a breve permanência em terra firme e a longa travessia
marítima: âncoras, ilhas, mapas, peixes, pássaros, bússolas.
Antes
de ser uma febre no Brasil, a tatuagem inspirou uma música de Chico
Buarque e Ruy Guerra. Quero
ficar no teu corpo feito tatuagem,
diz a letra dessa belíssima canção.
Para
um observador parado à beira-mar, um observador que teme o sol forte
e protege a cabeça com um chapéu, a tatuagem é uma descoberta, uma
viagem do olhar.
Jovens
e velhos exibem tatuagens; uso o verbo exibir porque talvez haja uma
ponta de exibicionismo nessa arte antiga de fazer da pele uma pintura
para toda a vida. Deve haver também uma dose de coragem, quem já
foi tatuado sabe como são terríveis as agulhadas na carne. A dor,
sendo humana e universal, não é menos terrível para uma bailarina,
um soldado ou um nadador.
Numa
única manhã ensolarada vi tatuagens de vários tipos e tamanhos, li
nomes próprios, adjetivos, bilhetes e até mesmo uma mensagem
cifrada, cuja revelação será sempre adiada: Amanhã
saberás o segredo…
Nas
costas de um jovem nada modesto, li: Eu
sou o máximo,
uma frase escrita com uma caligrafia tosca. Em ombros morenos,
brancos e pretos vi estrelas, flores e borboletas — muitas
borboletas —, e também âncoras, caracóis, tigres, dragões,
cavalos-marinhos, espirais, flechas, corações, um trecho de uma
partitura (parecia uma sequência de notas de uma Serenata de
Schubert, não tenho certeza), uma rosa amarela, serpentes, rostos de
roqueiros e de dois grandes líderes políticos: Gandhi e Malcolm X.
E também rostos anônimos. Anônimos para mim, não para o corpo
tatuado.
Pensei:
todos os desenhos do mundo cabem num corpo. Ou cabem nesses corpos
que caminham, desfilam, praticam esportes, ou apenas se exibem sob o
sol do verão.
Vi
nas costas de um homem uma mensagem desesperada, clamando por
justiça: Prisão
para os políticos ladrões.
Muito mais sofisticadas foram as palavras que li no corpo de uma moça
alta, de corpo cheio, uma moça que chamava a atenção por sua
altivez, e talvez por seu rosto anguloso, cujos traços germânicos
eram suavizados pelos olhos amendoados, rasgados. Olhos indígenas.
Ela me atraiu também pela tatuagem gravada nas costas. Quando passou
diante de mim, usando uma camiseta regata vermelha, pude ler na parte
nua das costas esses versos gravados em preto na pele branca: Não
aprofundes o teu tédio. Não te entregues à mágoa vã.
Segui
com os olhos os passos da moça, que se dirigia sorridente e sem
pressa para a extremidade da praia, como se caminhasse para o
Nirvana. Fiquei curioso para ler a continuação do poema, matutei
quem o tinha escrito, minha memória tentou fisgar em vão uma
leitura do passado. Eu repetia os versos, mas não encontrava o poema
inteiro nem o nome do poeta.
Outros
corpos passaram perto de mim, quase todos tatuados com formas e cores
que variavam ou se repetiam, a maioria tinha graça, mas não poesia.
E eu tentava adivinhar os versos ocultos pela camiseta daquela moça
mestiça, estava a ponto de desistir quando a vi aproximar-se, a
caminho da outra extremidade da praia. Passou a uns dois passos de
mim, dessa vez mais apressada e só de biquíni, a camiseta regata na
mão direita. Agora eu podia ler tudo, e li tudo nas costas
inteiramente nuas:
Não
aprofundes o teu tédio.
Não
te entregues à mágoa vã.
O
próprio tempo é o bom remédio:
Bebe
a delícia da manhã.
Mais
adiante, ela jogou a camiseta na areia, entrou no mar e nadou,
afastando-se lentamente da margem. Eu entrei em casa, a cabeça
quente de tanto sol, mas deliciado com a leitura de quatro versos
gravados para sempre na pele de uma mulher. Foi a mais bela tatuagem
daquela manhã. E que poema inesquecível!
Milton
Hatoum,
in Um
solitário à espreita
Quero ela, só ela
Sidónio
Rosa apenas conhece um caminho no labirinto de atalhos de Vila
Cacimba: a ruela que liga a pensão ao posto de saúde e à casa dos
Sozinhos. E é esta mesma rua de areia que ele, neste momento,
percorre como se fosse um campo minado. Salta à vista: é um europeu
caminhando nas profundezas de África. O passo é calculado, quase em
bicos dos pés, o olhar cauteloso garimpeirando o chão. Ele não
confia, a sua sombra não é comandada por ele. Passa pelo mercado,
esquiva-se dos vendedores, dos pedintes, dos bêbados. “Raio de
vida”, pensa. “Os que a mim se dirigem não me querem como
pessoa. Uns chegam-se para vender, outros para roubar. Ninguém me
aborda sem interesse, meu Deus, como me custa ter raça!” Retifica
a ideia, depois, quando escuta:
—
Bons
dias, Doutor!
A
saudação se repete, aberta, genuína e generosa. E a alma do
português se reacende num sorriso. Ele está sendo abraçado pelo
Universo.
Quase
esbarra com uma jovem vistosa. O médico cede à tentação de a
contemplar, preso no bambolear das generosas ancas. Vêm-lhe à mente
as palavras de Bartolomeu:
—
Fazer
amor com uma menina, isso é que é um bom remédio para si e para
mim.
O
velho Sozinho insiste em invocar os tradicionais preceitos: fazer
amor com uma virgem é o melhor procedimento para limpar os sangues.
No fundo, ele não acredita muito nisso, mas a receita é bem mais
apetitosa que as prescrições clínicas que atafulham a sua
mesinha-de-cabeceira.
—
Antes
eu recebia cartas; agora, escrevem-me receitas médicas. O que agora
tenho, ao lado da cama, não é uma mesinha-de-cabeceira. É uma
mezinha de cabeceira.
Finalmente,
o médico aproxima-se do lar dos Sozinhos e as dificuldades da marcha
agravam-se. Buracos, pedras, obstáculos semeados num caos que não é
obra do acaso. Foi o velho Bartolomeu quem sabotou a pequena rua.
Logo na primeira visita, a mulher explicou ao português, como se
desculpasse os incômodos
do caminho:
—
Foi
Bartolomeu: andou arrancando pedras da calçada, esburacando o
pavimento, só para ninguém vir cá a casa.
“Se
eu já não saio, então, também mais ninguém vem cá!” Era isso
que ele dizia, enquanto abria as covas, dobrado sobre o chão, pá em
riste, a mulher atrás dele para o dissuadir, invocando os ossos que,
mais tarde, o iriam castigar.
A
desobediência valera-lhe admoestação da esposa e pesada multa por
parte da autoridade municipal.
—
Vandalização
da coisa pública!
— clamou Suacelência.
O
ex-mecânico encolheu os ombros.
—
O
primeiro milho é para os donos dos pardais
— comentou. Depois, calou-se pelos cotovelos.
Os
danos sobraram sem reparação, e agora, por causa deles, o médico
sacode os sapatos à entrada da casa. Faz subir o vinco das calças
antes de avançar pelo corredor da residência. A casa está abafada,
os tapetes cheiram, os espelhos dormem cobertos com panos como se faz
ao rosto dos falecidos. As janelas cerradas lembram asas decepadas.
Nunca mais haverá céu para aqueles pássaros.
O
português acelera o passo para vencer a última porta do recinto. A
voz do velho, ao rodar da maçaneta, surge solta, soletrada sem
fadiga.
—
Como
estou? Estou vivo, salvo seja.
A
cinza resta, inteira, no extremo do cigarro aceso. É como se
Bartolomeu Sozinho quisesse recolher, intacto, o tempo já consumido.
Cumpre o seu próprio dizer queixoso: “Passamos a vida
desperdiçando vidas”. O velho já desperdiça pouco: uma réstia
de cinza, migalhas de bolachas que a esposa varre, das poucas vezes
que tem acesso ao quarto.
Seguindo
o voo do fumo, o olhar do médico é suficientemente reprovador para
dispensar a habitual reprimenda.
—
Não
sou eu que fumo, Doutor Sidonho. O cigarro é que me está fumando a
mim.
—
Nisso
estamos de acordo. O senhor não devia tocar mais em cigarro.
—
O
Doutor me desculpe, mas o senhor não entende o fumar.
—
Não
entendo, como? — Não é o tabaco que a gente consome. A gente fuma
é a tristeza.
—
Hoje,
o senhor parece melhor, refila com mais poesia, menos azedume. Um dia
destes está, de novo, escrevendo versos, como fazia no Infante
D. Henrique.
Sete
décadas estão avaliando a verdade das palavras do médico. Das
outras vezes, o velho respondia, invariavelmente: o Doutor que fosse
tratar do mundo. Porque a ele, Bartolomeu Sozinho, lhe doía uma
pedra, lhe doía uma árvore, lhe afligia a terra inteira. O universo
todo adoecia nele. O médico que fosse curar o mundo e, assim, ele
melhoraria por benéfico arrasto.
Desta
vez, porém, o quarto está iluminado por uma fresta na janela e o
próprio doente parece menos olheirento. O visitante estranha aquela
mudança de humores.
—
É
devido a essa cabra da Munda, Doutor Sidonho, eu me demoro neste
mundo só para a contrariar…
—
Gosto
de o ouvir. É uma boa piada.
—
Diga
a verdade, Doutor: a minha Munda, ali sentadinha na cozinha, não tem
chorado por mim?
—
Chorado?
—
Pode
dizer, Doutor, pode falar, ela não tem confessado o quanto ela me
ama tantissimamente?
O
médico não articula som. O mais que consegue fazer é acenar
indefinidamente com a cabeça.
—
Munda
não entende, mas eu, se a magoei, foi sem nenhum querer.
—
Por
que não fala com ela?
—
O
que eu lhe quero dizer, só vou conseguir falar depois de morto.
Bartolomeu
chama o visitante para mais perto, coloca a mão em frente da boca,
em preceito respeitoso, e solicita:
—
Não
será que pode convencer Munda a se mascarar de remédio?
—
Mascarar
de remédio?
—
Não
está a entender? Diga-lhe para ela se fantasiar de miúda, fingir-se
de jovenzita que me vem visitar, está a perceber, Doutor?
—
Não
sei, não posso…
—
Não
me quer tratar? Não quer tirar-me o sofrimento?
—
Eu
prefiro fazer aquilo que sempre me pediu. Vou à rua e lhe trago uma
catorzinha, duas catorzinhas…
—
É
que eu não quero outra… quero ela, só ela.
O
médico está absolutamente certo: o absurdo plano será rejeitado
por Dona Munda. Ainda lhe ocorre: irá procurar uma prostituta que
aceite fazer-se passar pela esposa. O velho está quase cego, não
dará pela troca, acertadas que estejam as vozes e os perfumes. E
decide avançar nesse logro:
—
Eu
aceito, Bartolomeu.
—
Aceita?
—
Sim,
vou convencer Dona Munda.
Um
abraço desajeitado a celebrar a inesperada cedência. O doutor evita
o corpo cambaleante: há nesse abraço um trânsito de alma que é
bem mais contagioso que o mais virulento micróbio. As despedidas são
sumárias, à moda de médico.
O
velho mecânico vai à janela, abre o cortinado como se estivesse
reparando uma enferrujada engrenagem. Espreita, a medo, o médico
afastando-se na outra esquina. A rua deserta lhe parece familiar,
próxima da solidão do seu quarto.
Com
passo viúvo, Bartolomeu regressa à cômoda
e procura pelo maço de cigarros que o médico sempre lhe deixa. O
envenenado remédio, assim lhe chama Sidónio. É então que dá
conta: a pasta de Sidónio ficara esquecida sobre a cômoda. O velho
ainda ensaia uns passos, clamando ao longo do corredor:
—
Doutor!
Doutor, o senhor esqueceu a pasta!
Assoma
à porta da rua, a derradeira fronteira que o separa do mundo. Hesita
um instante, e só depois lança um grito náufrago:
—
Doutor
Sidonho!
Mas
era tarde, o português já se escoara entre gentes e ruas.
Bartolomeu Sozinho, à soleira da porta, está paralisado. Do lado de
lá está o Universo, ou quem sabe o mar, esse escuro abismo onde
seus passos para sempre se afundarão.
—
Doutor!
— grita, aos baixos berros.
Pasta
aconchegada no peito, regressa ao aconchego do lar, retoma a
segurança do quarto. E assim se deixa ficar, soçobrando o esquecido
objeto como se partilhasse com ele a sua condição abandonada.
Na
próxima hora, já na penumbra do quarto, a curiosidade consome o
velho mecânico. Aqueles papéis, espreitando pelo fecho entreaberto,
que segredos revelariam sobre o seu estado? Estaria ali, preto no
branco, o prognóstico do seu definitivo final? Vencido pelos diabos
interiores, Bartolomeu Sozinho abre a pasta e remexe as suas
entranhas. Espreita papel por papel e a surpresa se vai avolumando em
seu rosto. De súbito, se desata o vulcão em sua alma:
—
Grande
filho da puta!
Há
malícia no seu distorcido sorriso, quando decide esconder a pasta
numa gaveta do armário.
—
Vou
lixar esse filho da puta! Eu é que lhe arranjo um remédio, sim, um
desses remédios que limpam de vez as gargantas dos aldrabões.
Mia
Couto,
in
Venenos
de Deus, remédios do Diabo
Acerca da inveja
“O
homem que não tiver virtude própria sempre invejará a virtude dos
outros. A razão disso é que a alma humana nutre-se do bem próprio
ou do mal alheio, e aquela que carece de um, aspira a obter o outro,
e aquele que está longe de esperar obter méritos de outrem,
procurará nivelar-se com ele, destruindo-lhe a fortuna.
As
pessoas que são curiosas e indiscretas são geralmente invejosas;
porque conhecer muito a respeito da vida alheia não pode resultar do
que concerne os próprios negócios. Isso deve provir, portanto, de
tomar uma espécie de prazer teatral a admirar a fortuna dos outros.
Aliás, quem não se ocupa senão dos próprios negócios não
encontra matéria para invejas. Porque a inveja é uma paixão
calaceira, isto é, passeia pelas ruas e não fica em casa.”
Francis
Bacon, in
Ensaios - Da Inveja
O ator
Pensei
em mentir, pensei em fingir,
dizer: eu tenho um tipo raro de,
estou à beira,
dizer: eu tenho um tipo raro de,
estou à beira,
embora
não aparente. Não aparento?
Providências: outra cor na pele,
a mais pálida; outro fundo para a foto:
Providências: outra cor na pele,
a mais pálida; outro fundo para a foto:
nada;
os braços caídos, um mel
pungente entre os dentes.
Quanto à tristeza
pungente entre os dentes.
Quanto à tristeza
que
a distância de você me faz,
está perfeita, fica como está: fria,
espantosa, sete dedos
está perfeita, fica como está: fria,
espantosa, sete dedos
em
cada mão. Tudo para que seus olhos
vissem, para que seu corpo
se apiedasse do meu e, quem sabe,
vissem, para que seu corpo
se apiedasse do meu e, quem sabe,
sua
compaixão, por um instante,
transmutasse em boca, a boca em pele,
a pele abrigando-nos da tempestade lá fora.
transmutasse em boca, a boca em pele,
a pele abrigando-nos da tempestade lá fora.
Daria
a isso o nome de felicidade,
e morreria.
Eu tenho um tipo raro.
e morreria.
Eu tenho um tipo raro.
Eucanaã
Ferraz
sexta-feira, 29 de setembro de 2017
A partida
Hoje
revendo minhas atitudes quando vim embora, reconheço que mudei
bastante. Verifico também que estava aflito e que havia um fundo de
mágoa ou desespero em minha impaciência. Eu queria deixar minha
casa, minha avó e seus cuidados. Estava farto de chegar a horas
certas, de ouvir reclamações; de ser vigiado, contemplado, querido.
Sim, também a afeição de minha avó incomodava-me. Era quase
palpável, quase como um objeto, uma túnica, um paletó justo que eu
não pudesse despir. Ela vivia a comprar-me remédios, a censurar
minha falta de modos, a olhar-me, a repetir conselhos que eu já
sabia de cor. Era boa demais, intoleravelmente boa e amorosa e justa.
Na
véspera da viagem, enquanto eu a ajudava a arrumar as coisas na
maleta, pensava que no dia seguinte estaria livre e imaginava o amplo
mundo no qual iria desafogar-me: passeios, domingos sem missa,
trabalho em vez de livros, mulheres nas praias, caras novas. Como
tudo era fascinante! Que viesse logo. Que as horas corressem e eu me
encontrasse imediatamente na posse de todos esses bens que me
aguardavam. Que as horas voassem, voassem...
Percebi
que minha avó não me olhava. A princípio, achei inexplicável que
ela fizesse isso, pois costumava fitar-me, longamente, com uma
ternura que incomodava. Tive raiva do que me parecia um capricho e,
como represália, fui para a cama.
Deixei
a luz acesa. Sentia não sei que prazer em contar as vigas do teto,
em olhar para a lâmpada. Desejava que nenhuma dessas coisas me
afetasse e irritava-me por começar a entender que não conseguiria
afastar-me delas sem emoção.
Minha
avó fechara a maleta e agora se movia, devagar, calada, fiel ao seu
hábito de fazer arrumações tardias. A quietude da casa parecia
triste e ficava mais nítida com os poucos ruídos aos quais me
fixava: manso arrastar de chinelos, cuidadoso abrir e lento fechar de
gavetas, o tique-taque do relógio, tilintar de talheres, de xícaras.
Por
fim, ela veio ao meu quarto, curvou-se: — Acordado?
Apanhou
o lençol e ia cobrir-me (gostava disto, ainda hoje o faz quando a
visito); mas pretextei calor, beijei sua mão enrugada e, antes que
ela saísse, dei-lhe as costas.
Não
consegui dormir. Continuava preso a outros rumores. E quando estes se
esvaíam, indistintas imagens me acossavam. Edifícios imensos,
opressivos, barulho de trens, luzes, tudo a afligir-me, persistente,
desagradável — imagens de febre.
Sentei-me
na cama, as têmporas batendo, o coração inchado, retendo uma
alegria dolorosa, que mais parecia um anúncio de morte. As horas
passavam, cantavam grilos, minha avó tossia e voltava-se no leito,
as molas duras rangiam ao peso de seu corpo. A tosse passou,
emudeceram as molas; ficaram só os grilos e os relógios. Deitei-me.
Passava
de meia-noite quando a velha cama gemeu: minha avó levantava-se.
Abriu de leve a porta de seu quarto, sempre de leve entrou no meu,
veio chegando e ficou de pé junto a mim. Com que finalidade? —
perguntava eu. Cobrir-me ainda? Repetir-me conselhos? Ouvi-a então
soluçar e quase fui sacudido por um acesso de raiva. Ela estava
olhando para mim e chorando como se eu fosse um cadáver — pensei.
Mas eu não me parecia em nada com um morto, senão no estar deitado.
Estava vivo, bem vivo, não ia morrer. Sentia-me a ponto de gritar.
Que me deixasse em paz e fosse chorar longe, na sala, na cozinha, no
quintal, mas longe de mim. Eu não estava morto. Afinal, ela
beijou-me a fronte e se afastou, abafando os soluços. Eu crispei as
mãos nas grades de ferro da cama, sobre as quais apoiei a testa
ardente. E adormeci.
Acordei
pela madrugada. A princípio com tranquilidade, e logo com
obstinação, quis novamente dormir. Inútil, o sono esgotara-se. Com
precaução, acendi um fósforo: passava das três. Restavam-me,
portanto, menos de duas horas, pois o trem chegaria às cinco.
Veio-me então o desejo de não passar nem uma hora mais naquela
casa. Partir, sem dizer nada, deixar quanto antes minhas cadeias de
disciplina e de amor.
Com
receio de fazer barulho, dirigi-me à cozinha, lavei o rosto, os
dentes, penteei-me e, voltando ao meu quarto, vesti-me. Calcei os
sapatos, sentei-me um instante à beira da cama. Minha avó
continuava dormindo. Deveria fugir ou falar com ela? Ora, algumas
palavras... Que me custava acordá-la, dizer-lhe adeus?
Ela
estava encolhida, pequenina, envolta numa coberta escura. Toquei-lhe
no ombro, ela se moveu, descobriu-se. Quis levantar-se e eu procurei
detê-la. Não era preciso, eu tomaria um café na estação.
Esquecera de falar com um colega e, se fosse esperar, talvez não
houvesse mais tempo. Ainda assim, levantou-se. Ralhava comigo por não
tê-la despertado antes, acusava-se de ter dormido muito. Tentava
sorrir.
Não
sei por que motivo, retardei ainda a partida. Andei pela casa,
cabisbaixo, à procura de objetos imaginários, enquanto ela me
seguia, abrigada em sua coberta. Eu sabia que desejava beijar-me,
prender-se a mim, e à simples ideia desses gestos, estremeci. Como
seria se, na hora do adeus, ela chorasse?
Enfim,
beijei sua mão, bati-lhe de leve na cabeça. Creio mesmo que lhe
surpreendi um gesto de aproximação, decerto na esperança de um
abraço final. Esquivei-me, apanhei a maleta e, ao fazê-lo, lancei
um rápido olhar para a mesa (cuidadosamente posta para dois, com a
humilde louça dos grandes dias e a velha toalha branca, bordada, que
só se usava em nossos aniversários).
Osman
Lins, in Os gestos
O intransponível
Ela
estava com soluço. E como se não bastasse a claridade das duas
horas, ela era ruiva.
Na
rua vazia as pedras vibravam de calor – a cabeça da menina
flamejava. Sentada nos degraus de sua casa, ela suportava. Ninguém
na rua, só uma pessoa esperando inutilmente no ponto de bonde. E
como se não bastasse seu olhar submisso e paciente, o soluço a
interrompia de momento a momento, abalando o queixo que se apoiava
conformado na mão. Que fazer de uma menina ruiva com soluço?
Olhamo-nos sem palavras, desalento contra desalento. Na rua deserta
nenhum sinal de táxi. Numa terra de morenos, ser ruivo era uma
revolta involuntária. Que importava se num dia futuro sua marca ia
fazê-la erguer insolente uma cabeça de mulher ? Por enquanto ela
estava sentada num degrau faiscante da porta, às duas horas. O que a
salvava era uma bolsa velha de senhora, com alça partida. Segurava-a
com um amor conjugal já habituado, apertando-a contra os joelhos.
Foi
quando se aproximou a sua outra metade neste mundo, um irmão em
Grajaú. A possibilidade de comunicação surgiu no ângulo quente da
esquina, acompanhando uma senhora, e encarnado na figura de um cão.
Era um basset lindo e miserável, doce sob a sua fatalidade.
Era um basset ruivo.
Lá
vinha ele trotando, à frente de sua dona, arrastando seu
comprimento. Desprevenido, acostumado, cachorro.
A
menina abriu os olhos pasmados. Suavemente avisado, o cachorro
estacou diante dela.
Sua
língua vibrava. Ambos se olhavam.
Entre
tantos seres que estão prontos para se tornarem donos de outro ser,
lá estava a menina que viera ao mundo para ter aquele cachorro. Ele
fremia suavemente, sem latir. Ela olhava-o sob os cabelos, fascinada,
séria. Quanto tempo se passava ? Um grande soluço sacudiu-a
desafiando. Ele nem sequer tremeu. Também ela passou por cima do
soluço e continuou a fitá-lo.
Os
pelos de ambos eram curtos, vermelhos.
Que
foi que se disseram? Não se sabe. Sabe-se apenas que se comunicaram
rapidamente, pois não havia tempo. Sabe-se também que sem falar
eles se pediam. Pediam-se, com urgência, com encabulamento,
surpreendidos.
No
meio de tanta vaga impossibilidade e de tanto sol, ali estava a
solução para a criança vermelha. E no meio de tantas ruas a serem
trotadas, de tantos cães maiores, de tantos esgotos secos – lá
estava uma menina, como se fora carne de sua ruiva carne. Eles se
fitavam profundos, entregues, ausentes de Grajaú. Mais um instante e
o suspenso sonho se quebraria, cedendo talvez à gravidade com que se
pediam.
Mas
ambos eram comprometidos.
Ela
com sua infância impossível, o centro da inocência que só se
abriria quando ele fosse uma mulher. Ele, com sua natureza
aprisionada.
A
dona esperava impaciente sob o guarda-sol. O basset ruivo
afinal despregou-se da menina e saiu sonâmbulo. Ela ficou espantada,
com o acontecimento nas mãos, numa mudez que nem pai nem mãe
compreenderiam. Acompanhou-os com os olhos pretos que mal
acreditavam, debruçada sobre a bolsa e os joelhos, até vê-lo
dobrar a outra esquina.
Mas
ele foi mais forte que ela. Nem uma só vez olhou para trás.
Clarisse
Lispector, in A descoberta do mundo
O tiro e o cemitério
Em
frente ao cemitério, Estaminet, Letreiro esquisito, — diz consigo
o nosso passeador, — mas próprio para despertar a sede!
Certamente, o dono desse cabaré sabe apreciar Horácio e os poetas
discípulos de Epicuro. Talvez mesmo conheça o refinamento profundo
dos antigos egípcios, que não admitiam banquete sem esqueleto, ou
outro símbolo qualquer da brevidade da vida.
Entrou,
bebeu uma garrafa de cerveja diante dos túmulos e fumou
vagarosamente um charuto. Depois, teve a extravagância de ir até ao
cemitério, onde o mato era alto e convidativo, e onde reinava um
riquíssimo sol.
A
luz e o calor eram causticantes. Dir-se-ia que o sol embriagado
espojava-se todo sobre um tapete de flores magníficas fertilizadas
pela destruição. Um imenso burburinho de vida, — a vida dos
infinitamente pequenos, — enchia o espaço cortado a intervalos
regulares pela crepitação dos disparos de um tiro vizinho, que
ressoavam como o espocar das garrafas de champagne no gorjeio de uma
sinfonia em surdina.
Então,
sob o sol que lhe esquentava o cérebro e na atmosfera dos ardentes
perfumes da Morte, ouviu uma voz cochichar debaixo do túmulo em que
se sentara. Essa voz dizia: — Malditos sejam vossos alvos e vossas
carabinas, oh vivos turbulentos, que tão pouco vos importais com os
defuntos e o seu divino repouso! Malditas sejam as vossas ambições,
malditos os vossos planos, oh mortais impacientes, que vindes
aprender a arte de matar junto ao santuário da Morte! Se soubésseis
como é fácil ganhar o prêmio, como é fácil alcançar o fim, e
como tudo é nada, exceto a Morte, não vos fatigaríeis tanto, oh
laboriosos viventes, e perturbaríeis menos o sono dos que há tanto
tempo puseram no Fim o único fim verdadeiro da detestável vida!
Charles
Baudelaire, in Pequenos poemas em prosa
quinta-feira, 28 de setembro de 2017
Capítulo VII - O delírio
Que
me conste, ainda ninguém relatou o seu próprio delírio; faço-o
eu, e a ciência mo agradecerá. Se o leitor não é dado à
contemplação destes fenômenos mentais, pode saltar o capítulo; vá
direito à narração. Mas, por menos curioso que seja, sempre lhe
digo que é interessante saber o que se passou na minha cabeça
durante uns vinte a trinta minutos.
Primeiramente,
tomei a figura de um barbeiro chinês, bojudo, destro, escanhoando um
mandarim, que me pagava o trabalho com beliscões e confeitos:
caprichos de mandarim.
Logo
depois, senti-me transformado na Suma Teológica de São Tomás,
impressa num volume, e encadernada em marroquim, com fechos de prata
e estampas; idéia esta que me deu ao corpo a mais completa
imobilidade; e ainda agora me lembra que, sendo as minhas mãos os
fechos do livro, e cruzando-as eu sobre o ventre, alguém as
descruzava (Virgília decerto), porque a atitude lhe dava a imagem de
um defunto.
Ultimamente,
restituído à forma humana, vi chegar um hipopótamo, que me
arrebatou. Deixei-me ir, calado, não sei se por medo ou confiança;
mas, dentro em pouco, a carreira de tal modo se tornou vertiginosa,
que me atrevi a interrogá-lo, e com alguma arte lhe disse que a
viagem me parecia sem destino.
—
Engana-se, replicou o animal, nós vamos
à origem dos séculos.
Insinuei
que deveria ser muitíssimo longe; mas o hipopótamo não me entendeu
ou não me ouviu, se é que não fingiu uma dessas coisas; e,
perguntando-lhe, visto que ele falava, se era descendente do cavalo
de Aquiles ou da asna de Balaão, retorquiu-me com um gesto peculiar
a estes dois quadrúpedes: abanou as orelhas. Pela minha parte fechei
os olhos e deixei-me ir à ventura. Já agora não se me dá de
confessar que sentia umas tais ou quais cócegas de curiosidade, por
saber onde ficava a origem dos séculos, se era tão misteriosa como
a origem do Nilo, e sobretudo se valia alguma coisa mais ou menos do
que a consumação dos mesmos séculos: reflexões de cérebro
enfermo. Como ia de olhos fechados, não via o caminho; lembra-me só
que a sensação de frio aumentava com a jornada, e que chegou uma
ocasião em que me pareceu entrar na região dos gelos eternos. Com
efeito, abri os olhos e vi que o meu animal galopava numa planície
branca de neve, e vários animais grandes e de neve. Tudo neve;
chegava a gelar-nos um sol de neve. Tentei falar, mas apenas pude
grunhir esta pergunta ansiosa:
— Onde
estamos?
— Já
passamos o Éden.
— Bem;
paremos na tenda de Abraão.
— Mas
se nós caminhamos para trás! redarguiu motejando a minha
cavalgadura.
Fiquei
vexado e aturdido. A jornada entrou e parecer-me enfadonha e
extravagante, o frio incômodo, a condução violenta, e o resultado
impalpável. E depois — cogitações do enfermo — dado que
chegássemos ao fim indicado, não era impossível que os séculos,
irritados com lhes devassarem a origem, me esmagassem entre as unhas,
que deviam ser tão seculares como eles. Enquanto assim pensava,
íamos devorando caminho, e a planície voava debaixo dos nossos pés,
até que o animal estacou, e pude olhar mais tranquilamente em torno
de mim. Olhar somente; nada vi, além da imensa brancura da neve, que
desta vez invadira o próprio céu, até ali azul. Talvez, a espaços,
me parecia uma ou outra planta, enorme, brutesca, meneando ao vento
as suas largas folhas. O silêncio daquela região era igual ao do
sepulcro: dissera-se que a vida das coisas ficara estúpida diante do
homem.
Caiu
do ar? destacou-se da terra? não sei; sei que um vulto imenso, uma
figura de mulher me apareceu então, fitando-me uns olhos rutilantes
como o sol. Tudo nessa figura tinha a vastidão das formas
selváticas, e tudo escapava à compreensão do olhar humano, porque
os contornos perdiam-se no ambiente, e o que parecia espesso era
muita vez diáfano. Estupefato, não disse nada, não cheguei sequer
a soltar um grito; mas, ao cabo de algum tempo, que foi breve,
perguntei quem era e como se chamava: curiosidade de delírio.
—
Chama-me Natureza ou Pandora; sou tua mãe
e tua inimiga.
Ao
ouvir esta última palavra, recuei um pouco, tomado de susto. A
figura soltou uma gargalhada, que produziu em torno de nós o efeito
de um tufão; as plantas torceram-se e um longo gemido quebrou a
mudez das coisas externas.
— Não
te assustes, disse ela, minha inimizade não mata; é sobretudo pela
vida que se afirma. Vives; não quero outro flagelo.
— Vivo?
perguntei eu, enterrando as unhas nas mãos, como para certificar-me
da existência.
— Sim,
verme, tu vives. Não receies perder esse andrajo que é teu orgulho;
provarás ainda, por algumas horas, o pão da dor e o vinho da
miséria. Vives: agora mesmo que ensandeceste, vives; e se a tua
consciência reouver um instante de sagacidade, tu dirás que queres
viver.
Dizendo
isto, a visão estendeu o braço, segurou-me pelos cabelos e
levantou-me ao ar, como se fora uma pluma. Só então pude ver-lhe de
perto o rosto, que era enorme. Nada mais quieto; nenhuma contorção
violenta, nenhuma expressão de ódio ou ferocidade; a feição
única, geral, completa, era a da impassibilidade egoísta, a da
eterna surdez, a da vontade imóvel. Raivas, se as tinha, ficavam
encerradas no coração. Ao mesmo tempo, nesse rosto de expressão
glacial, havia um ar de juventude, mescla de força e viço, diante
do qual me sentia eu o mais débil e decrépito dos seres.
—
Entendeste-me? disse ela, no fim de algum
tempo de mútua contemplação.
— Não,
respondi; nem quero entender-te; tu és absurda, tu és uma fábula.
Estou sonhando, decerto, ou, se é verdade, que enlouqueci, tu não
passas de uma concepção de alienado, isto é, uma coisa vã, que a
razão ausente não pode reger nem palpar. Natureza, tu? a Natureza
que eu conheço é só mãe e não inimiga; não faz da vida um
flagelo, nem, como tu, traz esse rosto indiferente, como o sepulcro.
E por que Pandora?
—
Porque levo na minha bolsa os bens e os
males, e o maior de todos, a esperança, consolação dos homens.
Tremes?
— Sim;
o teu olhar fascina-me.
—
Creio; eu não sou somente a vida; sou
também a morte, e tu estás prestes a devolver-me o que te
emprestei. Grande lascivo, espera-te a voluptuosidade do nada.
Quando
esta palavra ecoou, como um trovão, naquele imenso vale,
afigurou-se-me que era o último som que chegava a meus ouvidos;
pareceu-me sentir a decomposição súbita de mim mesmo. Então,
encarei-a com olhos súplices, e pedi mais alguns anos.
— Pobre
minuto! exclamou. Para que queres tu mais alguns instantes de vida?
Para devorar e seres devorado depois? Não estás farto do espetáculo
e da luta? Conheces de sobejo tudo o que eu te deparei menos torpe ou
menos aflitivo: o alvor do dia, a melancolia da tarde, a quietação
da noite, os aspectos da Terra, o sono, enfim, o maior benefício das
minhas mãos. Que mais queres tu, sublime idiota?
— Viver
somente, não te peço mais nada. Quem me pôs no coração este amor
da vida, senão tu? e, se eu amo a vida, por que te hás de golpear a
ti mesma, matando-me?
—
Porque já não preciso de ti. Não
importa ao tempo o minuto que passa, mas o minuto que vem. O minuto
que vem é forte, jucundo, supõe trazer em si a eternidade, e traz a
morte, e perece como o outro, mas o tempo subsiste. Egoísmo, dizes
tu? Sim, egoísmo, não tenho outra lei. Egoísmo, conservação. A
onça mata o novilho porque
o
raciocínio da onça é que ela deve viver, e se o novilho é tenro
tanto melhor: eis o estatuto universal. Sobe e olha.
Isto
dizendo, arrebatou-me ao alto de uma montanha. Inclinei os olhos a
uma das vertentes, e contemplei, durante um tempo largo, ao longe,
através de um nevoeiro, uma coisa única. Imagina tu, leitor, uma
redução dos séculos, e um desfilar de todos eles, as raças todas,
todas as paixões, o tumulto dos Impérios, a guerra dos apetites e
dos ódios, a destruição recíproca dos seres e das coisas. Tal era
o espetáculo, acerbo e curioso espetáculo. A história do homem e
da Terra tinha assim uma intensidade que lhe não podiam dar nem a
imaginação nem a ciência, porque a ciência é mais lenta e a
imaginação mais vaga, enquanto que o que eu ali via era a
condensação viva de todos os tempos. Para descrevê-la seria
preciso fixar o relâmpago. Os séculos desfilavam num turbilhão, e,
não obstante, porque os olhos do delírio são outros, eu via tudo o
que passava diante de mim,— flagelos e delícias, — desde essa
coisa que se chama glória até essa outra que se chama miséria, e
via o amor multiplicando a miséria, e via a miséria agravando a
debilidade. Aí vinham a cobiça que devora, a cólera que inflama, a
inveja que baba, e a enxada e a pena, úmidas de suor, e a ambição,
a fome, a vaidade, a melancolia, a riqueza, o amor, e todos agitavam
o homem, como um chocalho, até destruí-lo, como um farrapo. Eram as
formas várias de um mal, que ora mordia a víscera, ora mordia o
pensamento, e passeava eternamente as suas vestes de arlequim, em
derredor da espécie humana. A dor cedia alguma vez, mas cedia à
indiferença, que era um sono sem sonhos, ou ao prazer, que era uma
dor bastarda. Então o homem, flagelado e rebelde, corria diante da
fatalidade das coisas, atrás de uma figura nebulosa e esquiva, feita
de retalhos, um retalho de impalpável, outro de improvável, outro
de invisível, cosidos todos a ponto precário, com a agulha da
imaginação; e essa figura, — nada menos que a quimera da
felicidade, — ou lhe fugia perpetuamente, ou deixava-se apanhar
pela fralda, e o homem a cingia ao peito, e então ela ria, como um
escárnio, e sumia-se, como uma ilusão.
Ao
contemplar tanta calamidade, não pude reter um grito de angústia,
que Natureza ou Pandora escutou sem protestar nem rir; e não sei por
que lei de transtorno cerebral, fui eu que me pus a rir, — de um
riso descompassado e idiota.
— Tens
razão, disse eu, a coisa é divertida e vale a pena, — talvez
monótona — mas vale a pena. Quando Jó amaldiçoava o dia em que
fora concebido, é porque lhe davam ganas de ver cá de cima o
espetáculo. Vamos lá, Pandora, abre o ventre, e digere-me; a coisa
é divertida, mas digere-me.
A
resposta foi compelir-me fortemente a olhar para baixo, e a ver os
séculos que continuavam a passar, velozes e turbulentos, as gerações
que se superpunham às gerações, umas tristes, como os Hebreus do
cativeiro, outras alegres, como os devassos de Cômodo, e todas elas
pontuais na sepultura. Quis fugir, mas uma força misteriosa me
retinha os pés; então disse comigo: — “Bem, os séculos vão
passando, chegará o meu, e passará também, até o último, que me
dará a decifração da eternidade.” E fixei os olhos, e continuei
a ver as idades, que vinham chegando e passando, já então tranquilo
e resoluto, não sei até se alegre. Talvez alegre. Cada século
trazia a sua porção de sombra e de luz, de apatia e de combate, de
verdade e de erro, e o seu cortejo de sistemas, de ideias novas, de
novas ilusões; cada um deles rebentavam as verduras de uma
primavera, e amareleciam depois, para remoçar mais tarde. Ao passo
que a vida tinha assim uma regularidade de calendário, fazia-se a
história e a civilização, e o homem, nu e desarmado, armava-se e
vestia-se, construía o tugúrio e o palácio, a rude aldeia e Tebas
de cem portas, criava a ciência, que perscruta, e a arte que enleva,
fazia-se orador, mecânico, filósofo, corria a face do globo, descia
ao ventre da Terra, subia à esfera das nuvens, colaborando assim na
obra misteriosa, com que entretinha a necessidade da vida e a
melancolia do desamparo. Meu olhar, enfarado e distraído, viu enfim
chegar o século presente, e atrás deles os futuros. Aquele vinha
ágil, destro, vibrante, cheio de si, um pouco difuso, audaz,
sabedor, mas ao cabo tão miserável como os primeiros, e assim
passou e assim passaram os outros, com a mesma rapidez e igual
monotonia. Redobrei de atenção; fitei a vista; ia enfim ver o
último, — o último!; mas então já a rapidez da marcha era tal,
que escapava a toda a compreensão; ao pé dela o relâmpago seria um
século. Talvez por isso entraram os objetos a trocarem-se; uns
cresceram, outros minguaram, outros perderam-se no ambiente; um
nevoeiro cobriu tudo, — menos o hipopótamo que ali me trouxera, e
que aliás começou a diminuir, a diminuir, a diminuir, até ficar do
tamanho de um gato. Era efetivamente um gato. Encarei-o bem; era o
meu gato Sultão, que brincava à porta da alcova, com uma bola de
papel...
Machado de Assis, in Memórias
póstumas de Brás Cubas
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