sábado, 30 de setembro de 2017

Quero ela, só ela

Sidónio Rosa apenas conhece um caminho no labirinto de atalhos de Vila Cacimba: a ruela que liga a pensão ao posto de saúde e à casa dos Sozinhos. E é esta mesma rua de areia que ele, neste momento, percorre como se fosse um campo minado. Salta à vista: é um europeu caminhando nas profundezas de África. O passo é calculado, quase em bicos dos pés, o olhar cauteloso garimpeirando o chão. Ele não confia, a sua sombra não é comandada por ele. Passa pelo mercado, esquiva-se dos vendedores, dos pedintes, dos bêbados. “Raio de vida”, pensa. “Os que a mim se dirigem não me querem como pessoa. Uns chegam-se para vender, outros para roubar. Ninguém me aborda sem interesse, meu Deus, como me custa ter raça!” Retifica a ideia, depois, quando escuta:
Bons dias, Doutor!
A saudação se repete, aberta, genuína e generosa. E a alma do português se reacende num sorriso. Ele está sendo abraçado pelo Universo.
Quase esbarra com uma jovem vistosa. O médico cede à tentação de a contemplar, preso no bambolear das generosas ancas. Vêm-lhe à mente as palavras de Bartolomeu:
Fazer amor com uma menina, isso é que é um bom remédio para si e para mim.
O velho Sozinho insiste em invocar os tradicionais preceitos: fazer amor com uma virgem é o melhor procedimento para limpar os sangues. No fundo, ele não acredita muito nisso, mas a receita é bem mais apetitosa que as prescrições clínicas que atafulham a sua mesinha-de-cabeceira.
Antes eu recebia cartas; agora, escrevem-me receitas médicas. O que agora tenho, ao lado da cama, não é uma mesinha-de-cabeceira. É uma mezinha de cabeceira.
Finalmente, o médico aproxima-se do lar dos Sozinhos e as dificuldades da marcha agravam-se. Buracos, pedras, obstáculos semeados num caos que não é obra do acaso. Foi o velho Bartolomeu quem sabotou a pequena rua. Logo na primeira visita, a mulher explicou ao português, como se desculpasse os incômodos do caminho:
Foi Bartolomeu: andou arrancando pedras da calçada, esburacando o pavimento, só para ninguém vir cá a casa.
Se eu já não saio, então, também mais ninguém vem cá!” Era isso que ele dizia, enquanto abria as covas, dobrado sobre o chão, pá em riste, a mulher atrás dele para o dissuadir, invocando os ossos que, mais tarde, o iriam castigar.
A desobediência valera-lhe admoestação da esposa e pesada multa por parte da autoridade municipal.
Vandalização da coisa pública! — clamou Suacelência.
O ex-mecânico encolheu os ombros.
O primeiro milho é para os donos dos pardais — comentou. Depois, calou-se pelos cotovelos.
Os danos sobraram sem reparação, e agora, por causa deles, o médico sacode os sapatos à entrada da casa. Faz subir o vinco das calças antes de avançar pelo corredor da residência. A casa está abafada, os tapetes cheiram, os espelhos dormem cobertos com panos como se faz ao rosto dos falecidos. As janelas cerradas lembram asas decepadas. Nunca mais haverá céu para aqueles pássaros.
O português acelera o passo para vencer a última porta do recinto. A voz do velho, ao rodar da maçaneta, surge solta, soletrada sem fadiga.
Como estou? Estou vivo, salvo seja.
A cinza resta, inteira, no extremo do cigarro aceso. É como se Bartolomeu Sozinho quisesse recolher, intacto, o tempo já consumido. Cumpre o seu próprio dizer queixoso: “Passamos a vida desperdiçando vidas”. O velho já desperdiça pouco: uma réstia de cinza, migalhas de bolachas que a esposa varre, das poucas vezes que tem acesso ao quarto.
Seguindo o voo do fumo, o olhar do médico é suficientemente reprovador para dispensar a habitual reprimenda.
Não sou eu que fumo, Doutor Sidonho. O cigarro é que me está fumando a mim.
Nisso estamos de acordo. O senhor não devia tocar mais em cigarro.
O Doutor me desculpe, mas o senhor não entende o fumar.
Não entendo, como? — Não é o tabaco que a gente consome. A gente fuma é a tristeza.
Hoje, o senhor parece melhor, refila com mais poesia, menos azedume. Um dia destes está, de novo, escrevendo versos, como fazia no Infante D. Henrique.
Sete décadas estão avaliando a verdade das palavras do médico. Das outras vezes, o velho respondia, invariavelmente: o Doutor que fosse tratar do mundo. Porque a ele, Bartolomeu Sozinho, lhe doía uma pedra, lhe doía uma árvore, lhe afligia a terra inteira. O universo todo adoecia nele. O médico que fosse curar o mundo e, assim, ele melhoraria por benéfico arrasto.
Desta vez, porém, o quarto está iluminado por uma fresta na janela e o próprio doente parece menos olheirento. O visitante estranha aquela mudança de humores.
É devido a essa cabra da Munda, Doutor Sidonho, eu me demoro neste mundo só para a contrariar…
Gosto de o ouvir. É uma boa piada.
Diga a verdade, Doutor: a minha Munda, ali sentadinha na cozinha, não tem chorado por mim?
Chorado?
Pode dizer, Doutor, pode falar, ela não tem confessado o quanto ela me ama tantissimamente?
O médico não articula som. O mais que consegue fazer é acenar indefinidamente com a cabeça.
Munda não entende, mas eu, se a magoei, foi sem nenhum querer.
Por que não fala com ela?
O que eu lhe quero dizer, só vou conseguir falar depois de morto.
Bartolomeu chama o visitante para mais perto, coloca a mão em frente da boca, em preceito respeitoso, e solicita:
Não será que pode convencer Munda a se mascarar de remédio?
Mascarar de remédio?
Não está a entender? Diga-lhe para ela se fantasiar de miúda, fingir-se de jovenzita que me vem visitar, está a perceber, Doutor?
Não sei, não posso…
Não me quer tratar? Não quer tirar-me o sofrimento?
Eu prefiro fazer aquilo que sempre me pediu. Vou à rua e lhe trago uma catorzinha, duas catorzinhas…
É que eu não quero outra… quero ela, só ela.
O médico está absolutamente certo: o absurdo plano será rejeitado por Dona Munda. Ainda lhe ocorre: irá procurar uma prostituta que aceite fazer-se passar pela esposa. O velho está quase cego, não dará pela troca, acertadas que estejam as vozes e os perfumes. E decide avançar nesse logro:
Eu aceito, Bartolomeu.
Aceita?
Sim, vou convencer Dona Munda.
Um abraço desajeitado a celebrar a inesperada cedência. O doutor evita o corpo cambaleante: há nesse abraço um trânsito de alma que é bem mais contagioso que o mais virulento micróbio. As despedidas são sumárias, à moda de médico.
O velho mecânico vai à janela, abre o cortinado como se estivesse reparando uma enferrujada engrenagem. Espreita, a medo, o médico afastando-se na outra esquina. A rua deserta lhe parece familiar, próxima da solidão do seu quarto.
Com passo viúvo, Bartolomeu regressa à cômoda e procura pelo maço de cigarros que o médico sempre lhe deixa. O envenenado remédio, assim lhe chama Sidónio. É então que dá conta: a pasta de Sidónio ficara esquecida sobre a cômoda. O velho ainda ensaia uns passos, clamando ao longo do corredor:
Doutor! Doutor, o senhor esqueceu a pasta!
Assoma à porta da rua, a derradeira fronteira que o separa do mundo. Hesita um instante, e só depois lança um grito náufrago:
Doutor Sidonho!
Mas era tarde, o português já se escoara entre gentes e ruas. Bartolomeu Sozinho, à soleira da porta, está paralisado. Do lado de lá está o Universo, ou quem sabe o mar, esse escuro abismo onde seus passos para sempre se afundarão.
Doutor! — grita, aos baixos berros.
Pasta aconchegada no peito, regressa ao aconchego do lar, retoma a segurança do quarto. E assim se deixa ficar, soçobrando o esquecido objeto como se partilhasse com ele a sua condição abandonada.
Na próxima hora, já na penumbra do quarto, a curiosidade consome o velho mecânico. Aqueles papéis, espreitando pelo fecho entreaberto, que segredos revelariam sobre o seu estado? Estaria ali, preto no branco, o prognóstico do seu definitivo final? Vencido pelos diabos interiores, Bartolomeu Sozinho abre a pasta e remexe as suas entranhas. Espreita papel por papel e a surpresa se vai avolumando em seu rosto. De súbito, se desata o vulcão em sua alma:
Grande filho da puta!
Há malícia no seu distorcido sorriso, quando decide esconder a pasta numa gaveta do armário.
Vou lixar esse filho da puta! Eu é que lhe arranjo um remédio, sim, um desses remédios que limpam de vez as gargantas dos aldrabões.
Mia Couto, in Venenos de Deus, remédios do Diabo

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