Hoje
revendo minhas atitudes quando vim embora, reconheço que mudei
bastante. Verifico também que estava aflito e que havia um fundo de
mágoa ou desespero em minha impaciência. Eu queria deixar minha
casa, minha avó e seus cuidados. Estava farto de chegar a horas
certas, de ouvir reclamações; de ser vigiado, contemplado, querido.
Sim, também a afeição de minha avó incomodava-me. Era quase
palpável, quase como um objeto, uma túnica, um paletó justo que eu
não pudesse despir. Ela vivia a comprar-me remédios, a censurar
minha falta de modos, a olhar-me, a repetir conselhos que eu já
sabia de cor. Era boa demais, intoleravelmente boa e amorosa e justa.
Na
véspera da viagem, enquanto eu a ajudava a arrumar as coisas na
maleta, pensava que no dia seguinte estaria livre e imaginava o amplo
mundo no qual iria desafogar-me: passeios, domingos sem missa,
trabalho em vez de livros, mulheres nas praias, caras novas. Como
tudo era fascinante! Que viesse logo. Que as horas corressem e eu me
encontrasse imediatamente na posse de todos esses bens que me
aguardavam. Que as horas voassem, voassem...
Percebi
que minha avó não me olhava. A princípio, achei inexplicável que
ela fizesse isso, pois costumava fitar-me, longamente, com uma
ternura que incomodava. Tive raiva do que me parecia um capricho e,
como represália, fui para a cama.
Deixei
a luz acesa. Sentia não sei que prazer em contar as vigas do teto,
em olhar para a lâmpada. Desejava que nenhuma dessas coisas me
afetasse e irritava-me por começar a entender que não conseguiria
afastar-me delas sem emoção.
Minha
avó fechara a maleta e agora se movia, devagar, calada, fiel ao seu
hábito de fazer arrumações tardias. A quietude da casa parecia
triste e ficava mais nítida com os poucos ruídos aos quais me
fixava: manso arrastar de chinelos, cuidadoso abrir e lento fechar de
gavetas, o tique-taque do relógio, tilintar de talheres, de xícaras.
Por
fim, ela veio ao meu quarto, curvou-se: — Acordado?
Apanhou
o lençol e ia cobrir-me (gostava disto, ainda hoje o faz quando a
visito); mas pretextei calor, beijei sua mão enrugada e, antes que
ela saísse, dei-lhe as costas.
Não
consegui dormir. Continuava preso a outros rumores. E quando estes se
esvaíam, indistintas imagens me acossavam. Edifícios imensos,
opressivos, barulho de trens, luzes, tudo a afligir-me, persistente,
desagradável — imagens de febre.
Sentei-me
na cama, as têmporas batendo, o coração inchado, retendo uma
alegria dolorosa, que mais parecia um anúncio de morte. As horas
passavam, cantavam grilos, minha avó tossia e voltava-se no leito,
as molas duras rangiam ao peso de seu corpo. A tosse passou,
emudeceram as molas; ficaram só os grilos e os relógios. Deitei-me.
Passava
de meia-noite quando a velha cama gemeu: minha avó levantava-se.
Abriu de leve a porta de seu quarto, sempre de leve entrou no meu,
veio chegando e ficou de pé junto a mim. Com que finalidade? —
perguntava eu. Cobrir-me ainda? Repetir-me conselhos? Ouvi-a então
soluçar e quase fui sacudido por um acesso de raiva. Ela estava
olhando para mim e chorando como se eu fosse um cadáver — pensei.
Mas eu não me parecia em nada com um morto, senão no estar deitado.
Estava vivo, bem vivo, não ia morrer. Sentia-me a ponto de gritar.
Que me deixasse em paz e fosse chorar longe, na sala, na cozinha, no
quintal, mas longe de mim. Eu não estava morto. Afinal, ela
beijou-me a fronte e se afastou, abafando os soluços. Eu crispei as
mãos nas grades de ferro da cama, sobre as quais apoiei a testa
ardente. E adormeci.
Acordei
pela madrugada. A princípio com tranquilidade, e logo com
obstinação, quis novamente dormir. Inútil, o sono esgotara-se. Com
precaução, acendi um fósforo: passava das três. Restavam-me,
portanto, menos de duas horas, pois o trem chegaria às cinco.
Veio-me então o desejo de não passar nem uma hora mais naquela
casa. Partir, sem dizer nada, deixar quanto antes minhas cadeias de
disciplina e de amor.
Com
receio de fazer barulho, dirigi-me à cozinha, lavei o rosto, os
dentes, penteei-me e, voltando ao meu quarto, vesti-me. Calcei os
sapatos, sentei-me um instante à beira da cama. Minha avó
continuava dormindo. Deveria fugir ou falar com ela? Ora, algumas
palavras... Que me custava acordá-la, dizer-lhe adeus?
Ela
estava encolhida, pequenina, envolta numa coberta escura. Toquei-lhe
no ombro, ela se moveu, descobriu-se. Quis levantar-se e eu procurei
detê-la. Não era preciso, eu tomaria um café na estação.
Esquecera de falar com um colega e, se fosse esperar, talvez não
houvesse mais tempo. Ainda assim, levantou-se. Ralhava comigo por não
tê-la despertado antes, acusava-se de ter dormido muito. Tentava
sorrir.
Não
sei por que motivo, retardei ainda a partida. Andei pela casa,
cabisbaixo, à procura de objetos imaginários, enquanto ela me
seguia, abrigada em sua coberta. Eu sabia que desejava beijar-me,
prender-se a mim, e à simples ideia desses gestos, estremeci. Como
seria se, na hora do adeus, ela chorasse?
Enfim,
beijei sua mão, bati-lhe de leve na cabeça. Creio mesmo que lhe
surpreendi um gesto de aproximação, decerto na esperança de um
abraço final. Esquivei-me, apanhei a maleta e, ao fazê-lo, lancei
um rápido olhar para a mesa (cuidadosamente posta para dois, com a
humilde louça dos grandes dias e a velha toalha branca, bordada, que
só se usava em nossos aniversários).
Osman
Lins, in Os gestos
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