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Dizem
que a tatuagem data do paleolítico, quando era usada por povos
nativos da Ásia. Além da beleza das formas e cores, há algo de
simbólico nesses desenhos corporais. Os índios pintam o corpo em
cerimônias, festas e rituais de guerra. Os marinheiros, cujas
pátrias são os portos e os oceanos, ostentam em sua pele símbolos
que evocam a breve permanência em terra firme e a longa travessia
marítima: âncoras, ilhas, mapas, peixes, pássaros, bússolas.
Antes
de ser uma febre no Brasil, a tatuagem inspirou uma música de Chico
Buarque e Ruy Guerra. Quero
ficar no teu corpo feito tatuagem,
diz a letra dessa belíssima canção.
Para
um observador parado à beira-mar, um observador que teme o sol forte
e protege a cabeça com um chapéu, a tatuagem é uma descoberta, uma
viagem do olhar.
Jovens
e velhos exibem tatuagens; uso o verbo exibir porque talvez haja uma
ponta de exibicionismo nessa arte antiga de fazer da pele uma pintura
para toda a vida. Deve haver também uma dose de coragem, quem já
foi tatuado sabe como são terríveis as agulhadas na carne. A dor,
sendo humana e universal, não é menos terrível para uma bailarina,
um soldado ou um nadador.
Numa
única manhã ensolarada vi tatuagens de vários tipos e tamanhos, li
nomes próprios, adjetivos, bilhetes e até mesmo uma mensagem
cifrada, cuja revelação será sempre adiada: Amanhã
saberás o segredo…
Nas
costas de um jovem nada modesto, li: Eu
sou o máximo,
uma frase escrita com uma caligrafia tosca. Em ombros morenos,
brancos e pretos vi estrelas, flores e borboletas — muitas
borboletas —, e também âncoras, caracóis, tigres, dragões,
cavalos-marinhos, espirais, flechas, corações, um trecho de uma
partitura (parecia uma sequência de notas de uma Serenata de
Schubert, não tenho certeza), uma rosa amarela, serpentes, rostos de
roqueiros e de dois grandes líderes políticos: Gandhi e Malcolm X.
E também rostos anônimos. Anônimos para mim, não para o corpo
tatuado.
Pensei:
todos os desenhos do mundo cabem num corpo. Ou cabem nesses corpos
que caminham, desfilam, praticam esportes, ou apenas se exibem sob o
sol do verão.
Vi
nas costas de um homem uma mensagem desesperada, clamando por
justiça: Prisão
para os políticos ladrões.
Muito mais sofisticadas foram as palavras que li no corpo de uma moça
alta, de corpo cheio, uma moça que chamava a atenção por sua
altivez, e talvez por seu rosto anguloso, cujos traços germânicos
eram suavizados pelos olhos amendoados, rasgados. Olhos indígenas.
Ela me atraiu também pela tatuagem gravada nas costas. Quando passou
diante de mim, usando uma camiseta regata vermelha, pude ler na parte
nua das costas esses versos gravados em preto na pele branca: Não
aprofundes o teu tédio. Não te entregues à mágoa vã.
Segui
com os olhos os passos da moça, que se dirigia sorridente e sem
pressa para a extremidade da praia, como se caminhasse para o
Nirvana. Fiquei curioso para ler a continuação do poema, matutei
quem o tinha escrito, minha memória tentou fisgar em vão uma
leitura do passado. Eu repetia os versos, mas não encontrava o poema
inteiro nem o nome do poeta.
Outros
corpos passaram perto de mim, quase todos tatuados com formas e cores
que variavam ou se repetiam, a maioria tinha graça, mas não poesia.
E eu tentava adivinhar os versos ocultos pela camiseta daquela moça
mestiça, estava a ponto de desistir quando a vi aproximar-se, a
caminho da outra extremidade da praia. Passou a uns dois passos de
mim, dessa vez mais apressada e só de biquíni, a camiseta regata na
mão direita. Agora eu podia ler tudo, e li tudo nas costas
inteiramente nuas:
Não
aprofundes o teu tédio.
Não
te entregues à mágoa vã.
O
próprio tempo é o bom remédio:
Bebe
a delícia da manhã.
Mais
adiante, ela jogou a camiseta na areia, entrou no mar e nadou,
afastando-se lentamente da margem. Eu entrei em casa, a cabeça
quente de tanto sol, mas deliciado com a leitura de quatro versos
gravados para sempre na pele de uma mulher. Foi a mais bela tatuagem
daquela manhã. E que poema inesquecível!
Milton
Hatoum,
in Um
solitário à espreita
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