sábado, 30 de setembro de 2017

Poema gravado na pele

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Dizem que a tatuagem data do paleolítico, quando era usada por povos nativos da Ásia. Além da beleza das formas e cores, há algo de simbólico nesses desenhos corporais. Os índios pintam o corpo em cerimônias, festas e rituais de guerra. Os marinheiros, cujas pátrias são os portos e os oceanos, ostentam em sua pele símbolos que evocam a breve permanência em terra firme e a longa travessia marítima: âncoras, ilhas, mapas, peixes, pássaros, bússolas.
Antes de ser uma febre no Brasil, a tatuagem inspirou uma música de Chico Buarque e Ruy Guerra. Quero ficar no teu corpo feito tatuagem, diz a letra dessa belíssima canção.
Para um observador parado à beira-mar, um observador que teme o sol forte e protege a cabeça com um chapéu, a tatuagem é uma descoberta, uma viagem do olhar.
Jovens e velhos exibem tatuagens; uso o verbo exibir porque talvez haja uma ponta de exibicionismo nessa arte antiga de fazer da pele uma pintura para toda a vida. Deve haver também uma dose de coragem, quem já foi tatuado sabe como são terríveis as agulhadas na carne. A dor, sendo humana e universal, não é menos terrível para uma bailarina, um soldado ou um nadador.
Numa única manhã ensolarada vi tatuagens de vários tipos e tamanhos, li nomes próprios, adjetivos, bilhetes e até mesmo uma mensagem cifrada, cuja revelação será sempre adiada: Amanhã saberás o segredo…
Nas costas de um jovem nada modesto, li: Eu sou o máximo, uma frase escrita com uma caligrafia tosca. Em ombros morenos, brancos e pretos vi estrelas, flores e borboletas — muitas borboletas —, e também âncoras, caracóis, tigres, dragões, cavalos-marinhos, espirais, flechas, corações, um trecho de uma partitura (parecia uma sequência de notas de uma Serenata de Schubert, não tenho certeza), uma rosa amarela, serpentes, rostos de roqueiros e de dois grandes líderes políticos: Gandhi e Malcolm X. E também rostos anônimos. Anônimos para mim, não para o corpo tatuado.
Pensei: todos os desenhos do mundo cabem num corpo. Ou cabem nesses corpos que caminham, desfilam, praticam esportes, ou apenas se exibem sob o sol do verão.
Vi nas costas de um homem uma mensagem desesperada, clamando por justiça: Prisão para os políticos ladrões. Muito mais sofisticadas foram as palavras que li no corpo de uma moça alta, de corpo cheio, uma moça que chamava a atenção por sua altivez, e talvez por seu rosto anguloso, cujos traços germânicos eram suavizados pelos olhos amendoados, rasgados. Olhos indígenas. Ela me atraiu também pela tatuagem gravada nas costas. Quando passou diante de mim, usando uma camiseta regata vermelha, pude ler na parte nua das costas esses versos gravados em preto na pele branca: Não aprofundes o teu tédio. Não te entregues à mágoa vã.
Segui com os olhos os passos da moça, que se dirigia sorridente e sem pressa para a extremidade da praia, como se caminhasse para o Nirvana. Fiquei curioso para ler a continuação do poema, matutei quem o tinha escrito, minha memória tentou fisgar em vão uma leitura do passado. Eu repetia os versos, mas não encontrava o poema inteiro nem o nome do poeta.
Outros corpos passaram perto de mim, quase todos tatuados com formas e cores que variavam ou se repetiam, a maioria tinha graça, mas não poesia. E eu tentava adivinhar os versos ocultos pela camiseta daquela moça mestiça, estava a ponto de desistir quando a vi aproximar-se, a caminho da outra extremidade da praia. Passou a uns dois passos de mim, dessa vez mais apressada e só de biquíni, a camiseta regata na mão direita. Agora eu podia ler tudo, e li tudo nas costas inteiramente nuas:

Não aprofundes o teu tédio.
Não te entregues à mágoa vã.
O próprio tempo é o bom remédio:
Bebe a delícia da manhã.

Mais adiante, ela jogou a camiseta na areia, entrou no mar e nadou, afastando-se lentamente da margem. Eu entrei em casa, a cabeça quente de tanto sol, mas deliciado com a leitura de quatro versos gravados para sempre na pele de uma mulher. Foi a mais bela tatuagem daquela manhã. E que poema inesquecível!
Milton Hatoum, in Um solitário à espreita

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