Fonte: paradoXos
sábado, 31 de maio de 2014
Tal a literatura, somos seres singulares
"E a literatura conta histórias
porque os sentimentos precisam de uma história para que você se dê conta deles.
Então, a literatura pensou em dar conta de quem somos, dessa nossa complexidade
extraordinária. Porque somos seres fundamentalmente singulares. E, por isso, a
literatura é singular."
Nélida
Piñon
Gostosuras brasileiras
Tapioca com recheio
Feijoada
Pastel
Mini cuscuz paulista
Quindin
Acarajé
Brigadeiro
Escondidinho de carne de sol
Biscoito de polvilho
Fonte: brazilwonders.tumblr.com
Arrependido
"Se um homem está verdadeiramente
arrependido, se conhece verdadeira e profundamente as suas culpas, nunca
ninguém dirá dele tanto mal, que ele se não julgue por muito pior."
Padre
Antônio Vieira
Por quem os sinos dobram
“Toda morte não me diminui, porque eu sou
uma parcela da humanidade; não me perguntes por quem os sinos dobram: eles
dobram por ti.”
John
Donne
sexta-feira, 30 de maio de 2014
Aula de inglês
— Is this an
elephant?
Minha tendência imediata
foi responder que não; mas a gente não deve se deixar levar pelo primeiro
impulso. Um rápido olhar que lancei à professora bastou para ver que ela falava
com seriedade, e tinha o ar de quem propõe um grave problema. Em vista disso,
examinei com a maior atenção o objeto que ela me apresentava.
Não tinha nenhuma tromba
visível, de onde uma pessoa leviana poderia concluir às pressas que não se
tratava de um elefante. Mas se tirarmos a tromba a um elefante, nem por isso
deixa ele de ser um elefante; mesmo que morra em consequência da brutal
operação, continua a ser um elefante; continua, pois um elefante morto é, em
princípio, tão elefante como qualquer outro. Refletindo nisso, lembrei-me de
averiguar se aquilo tinha quatro patas, quatro grossas patas, como costumam ter
os elefantes. Não tinha. Tampouco consegui descobrir o pequeno rabo que
caracteriza o grande animal e que, às vezes, como já notei em um circo, ele
costuma abanar com uma graça infantil.
Terminadas as minhas
observações, voltei-me para a professora e disse convincentemente:
— No, it's not!
Ela soltou um pequeno
suspiro, satisfeita: a demora de minha resposta a havia deixado apreensiva.
Imediatamente perguntou:
— Is it a book?
Sorri da pergunta: tenho
vivido uma parte de minha vida no meio de livros, conheço livros, lido com
livros, sou capaz de distinguir um livro a primeira vista no meio de quaisquer
outros objetos, sejam eles garrafas, tijolos ou cerejas maduras — sejam quais
forem. Aquilo não era um livro, e mesmo supondo que houvesse livros
encadernados em louça, aquilo não seria um deles: não parecia de modo algum um
livro. Minha resposta demorou no máximo dois segundos:
— No, it's not!
Tive o prazer de vê-la
novamente satisfeita — mas só por alguns segundos. Aquela mulher era um desses
espíritos insaciáveis que estão sempre a se propor questões, e se debruçam com
uma curiosidade aflita sobre a natureza das coisas.
— Is it a
handkerchief?
Fiquei muito perturbado
com essa pergunta. Para dizer a verdade, não sabia o que poderia ser um
handkerchief; talvez fosse hipoteca... Não, hipoteca não. Por que haveria de
ser hipoteca? Handkerchief! Era uma palavra sem a menor sombra de dúvida
antipática; talvez fosse chefe de serviço ou relógio de pulso ou ainda, e muito
provavelmente, enxaqueca. Fosse como fosse, respondi impávido:
— No, it's not!
Minhas palavras soaram
alto, com certa violência, pois me repugnava admitir que aquilo ou qualquer
outra coisa nos meus arredores pudesse ser um handkerchief.
Ela então voltou a fazer
uma pergunta. Desta vez, porém, a pergunta foi precedida de um certo olhar em
que havia uma luz de malícia, uma espécie de insinuação, um longínquo toque de
desafio. Sua voz era mais lenta que das outras vezes; não sou completamente
ignorante em psicologia feminina, e antes dela abrir a boca eu já tinha a
certeza de que se tratava de uma palavra decisiva.
— Is it an ash-tray?
Uma grande alegria me
inundou a alma. Em primeiro lugar porque eu sei o que é um ash-tray: um ash-tray
é um cinzeiro. Em segundo lugar porque, fitando o objeto que ela me
apresentava, notei uma extraordinária semelhança entre ele e um ash-tray.
Era um objeto de louça de forma oval, com cerca de 13 centímetros de
comprimento.
As bordas eram da altura
aproximada de um centímetro, e nelas havia reentrâncias curvas — duas ou três —
na parte superior. Na depressão central, uma espécie de bacia delimitada por
essas bordas, havia um pequeno pedaço de cigarro fumado (uma bagana) e, aqui e
ali, cinzas esparsas, além de um palito de fósforos já riscado. Respondi:
— Yes!
O que sucedeu então foi
indescritível. A boa senhora teve o rosto completamente iluminado por onda de
alegria; os olhos brilhavam — vitória! vitória! — e um largo sorriso
desabrochou rapidamente nos lábios havia pouco franzidos pela meditação triste
e inquieta. Ergueu-se um pouco da cadeira e não se pôde impedir de
estender o braço e me bater no ombro, ao mesmo tempo que exclamava, muito
excitada:
— Very well!
Very well!
Sou um homem de natural
tímido, e ainda mais no lidar com mulheres. A efusão com que ela festejava
minha vitória me perturbou; tive um susto, senti vergonha e muito orgulho.
Retirei-me imensamente
satisfeito daquela primeira aula; andei na rua com passo firme e ao ver, na
vitrine de uma loja,alguns belos cachimbos ingleses, tive mesmo a tentação de
comprar um. Certamente teria entabulado uma longa conversação com o embaixador
britânico, se o encontrasse naquele momento. Eu tiraria o cachimbo da boca e
lhe diria:
- It's not an
ash-tray!
E
ele na certa ficaria muito satisfeito por ver que eu sabia falar inglês, pois
deve ser sempre agradável a um embaixador ver que sua língua natal começa a ser
versada pelas pessoas de boa-fé do país junto a cujo governo é acreditado.
Rubem Braga,
in Um pé de milho
quinta-feira, 29 de maio de 2014
Os óculos sociais
“A nossa percepção é toldada pelos óculos
sociais que a cultura e a sociedade vão preparando para nós.”
Adam
Schaff
O que faz durar uma obra
Se Nietzsche, Proust, Baudelaire e
Rimbaud sobrevivem às flutuações da moda, devem isso à gratuidade de sua
crueldade, à sua cirurgia demoníaca, à generosidade de seu fel. O que faz durar
uma obra, o que a impede de envelhecer é sua ferocidade. Afirmação gratuita? Considere
o prestígio do Evangelho, livro agressivo, livro venenoso entre todos.
Emil
Michel Cioran, in Silogismos da amargura
Cinco provas da evolução das espécies
Este é um assunto dos mais controversos: a origem das
espécies, desde as bactérias mais simples até os orgulhosos seres humanos.
A razão básica da confusão é que algumas pessoas querem fazer crer que existe
um conflito intrínseco entre a teoria da evolução pela seleção natural e as
religiões. É mentira.
Fósseis
do gênero Homo de 1,8 milhão de anos encontrados na Ásia: nossos
parentes evolutivos.
A
ciência, aliás, não é inimiga da religião. As duas são naturalmente
complementares, e existe beleza no equilíbrio — admirá-las igualmente pelo que
são, tentativas de contextualizar a existência humana respectivamente nos
níveis natural e espiritual.
Uma diferença importante entre elas é que
a ciência, por sua própria natureza, se propõe a estabelecer (tanto quanto
possível) fatos objetivos. Já a religião fala de “verdades” pessoais. Por isso
cada um de nós pode ter suas próprias crenças, mas temos todos em comum uma
única ciência. E também é por isso que neste texto, daqui em diante, vamos
discutir apenas ciência. Começando do rasinho. Como se produz o conhecimento
científico?
A coisa funciona do seguinte modo:
primeiro deparamos com um fenômeno que desejamos compreender. Pode
ser qualquer coisa. Um exemplo simples: como acontece a chuva? Diante do
enigma, parte-se para formular uma hipótese. Podemos, por exemplo, imaginar que
a chuva está ligada à temperatura da água. Se aquecida, ela vira vapor e sobe. Se
resfriada, ela cai de volta no chão. Certo, temos nossa hipótese. E agora? A
ciência dita que precisamos colocar essa ideia à prova. Testá-la com
experimentos e observações.
Podemos esquentar a água com fogo e notar
que, a partir de um determinado momento, ela começa a subir para o ar, na forma
de fumaça. E se aprisionarmos esse vapor ascendente num recipiente notaremos
que, ao entrar em contato com a superfície mais fria, ele volta a virar
líquido. E percebemos que isso acontece também no mundo lá fora, embora em
ritmo bem mais lento. Uma poça d’água desaparece sob a ação da luz do Sol e
volta a se formar quando água cai do céu em forma de chuva. Grosso modo, a
confirmação de nossa hipótese a converte em teoria. Ela não é mais só um
exercício racional de adivinhação. Ela é uma explicação concreta que nos
permite compreender e até mesmo prever fenômenos.
Essa nossa teoria simples da chuva
explica toda a história? Claro que não. Sobre ela outros cientistas teriam de
formular outras hipóteses, que explicam como a água pode evaporar mesmo que a
poça inteira nunca atinja a temperatura necessária, ou como a água se aglutina
em nuvens e o que acontece na atmosfera para fazê-la se liquefazer e, enfim,
chover de volta ao chão. Essas hipóteses serão postas à prova e gerarão novas
teorias, que tornarão nossa compreensão do fenômeno ainda mais refinada. Mas
note que novas teorias não substituem as antigas. Elas aprofundam o
entendimento, sem anular as conclusões obtidas antes.
É a tal história do Isaac Newton, que ao
formular as bases da física moderna se disse “sobre os ombros de gigantes”. Ele
construiu sua obra sobre alicerces sólidos. A ciência é um muro de tijolos.
Novos tijolos são constantemente colocados no muro. Mas os antigos raras vezes
são substituídos. No mais das vezes, eles continuam formando a parede, que fica
cada vez mais alta, permitindo que enxerguemos cada vez mais longe.
Por isso é de uma desonestidade
intelectual profunda acusar a evolução pela seleção natural de ser “apenas uma
teoria”. Em ciência, uma teoria é o máximo que uma ideia pode chegar a ser. E
ela atinge esse ponto só depois que foi corroborada por observações e
experimentos. Só depois que ela se mostra a melhor explicação possível para um
certo conjunto de dados.
É nesse contexto que vamos apresentar
aqui cinco provas da evolução das espécies. Os mais atentos talvez queiram
criticar meu uso da expressão “provas”, lembrando o filósofo da ciência Karl
Popper, que sugere que observações só podem refutar teorias, mas nunca
prová-las. Concordo com Popper. Mas uso aqui o termo “provas” no sentido
jurídico. Imagine que estamos num tribunal, que julgará a veracidade da teoria
da evolução. O Mensageiro Sideral se apresenta como promotor, apontando
provas circunstanciais conclusivas. Decerto os opositores apresentarão seus
argumentos de defesa nos comentários abaixo. E o juiz do caso? É você, caro
leitor. Leia, reflita e julgue os fatos.
Matéria completa aqui.
quarta-feira, 28 de maio de 2014
O Japão
O outono e o príncipe
herdeiro
movem um pincel de ar
e avermelham
as árvores
da porta do sol.
movem um pincel de ar
e avermelham
as árvores
da porta do sol.
Silêncio e
ausência penteiam a grama,
houvera ali um canto anunciador.
O jardim é um leque de ouro
ou cauda
de pássaro esponsal.
Os deuses invisíveis tangem
rebanhos de lã.
O outono
é menos que um murmúrio.
houvera ali um canto anunciador.
O jardim é um leque de ouro
ou cauda
de pássaro esponsal.
Os deuses invisíveis tangem
rebanhos de lã.
O outono
é menos que um murmúrio.
Walmir Ayala
Nossa insuficiência
“Só há um ponto fixo: é a nossa própria
insuficiência. É daí que é preciso partir.”
Franz
Kafka
terça-feira, 27 de maio de 2014
Rapadura
Outro
dia foi presa uma senhora porque numa banca de mercado, em pleno sábado de
feira, agrediu a rival com uma rapadura, dando-lhe uma tijolada que exigiu doze
pontos no couro cabeludo. Rapadura é arma perigosa, um paralelepípedo de doce
bruto, pesado e com arestas. Batendo de quina pode até matar.
A
banca de rapadura era o local de comércio do próprio marido da agressora. Vinha
ela descuidosa, passando ali por acaso, e de repente depara com o quadro
ofensivo: o marido em idílio público com a dalila, a messalina, a loba do seu
lar! Ela debruçada ao balcão e ele, de dentro, segurava o queixo da sereia e
lhe cochichava no ouvido. O monte de rapaduras estava ao lado. Foi só passar a
mão na rapadura de cima e virá-la de quina, para castigar mesmo, no pé do
ouvido da outra. A agredida se pôs a gritar, com a cara coberta de sangue, e o
infiel asperamente ralhou: "Cala a boca, mulher, senão aparece a
polícia".
Mas
avisou tarde, porque a polícia já vinha na pessoa de um cabo a quem o idílio
adúltero também repugnara, pois de há muito que ele, cabo, suspirava pelos
favores da destruidora de lares. Debalde lhe fizera serenatas, com uma radiola
cheia de discos do Roberto Carlos; e ela até lhe atirara um sapato pela janela,
certa vez em que ele encostara a máquina cantante à rótula, tocando aquela
música em que RC declara à amada : "Você vai aprender a ser gente!"
-
Quem vai aprender é a mãe, gritara a julieta ofendida.
Mas
o cabo apanhou o pé de sapato como se fosse o chapim da Borralheira, foi na
loja do Geraldo e escolheu a sandalinha mais mimosa que tinha lá, com tiras
prateadas e flor de contas no peito do pé. Entregou-a com um bilhete:
"Recebi a medida e lhe mando a encomenda".
A
bela pagou com um sorriso. Mas continuou com o homem das rapaduras, que tinha o
que gastar com ela. Cabo arranchado mal ganha para o cigarro.
Agora
porém tinha o cabo a sua oportunidade. Mandou a amada para o Samdu, num jipe, e
bradou esteje preso para os mais.
Na
delegacia a agressora já vinha muito unida ao marido (que a tratava até de meu
bem) e declarou à autoridade que de nada se lembrava. Só sabia que vinha fazer
umas compras, e passando pela banca de rapadura, viu aquela piranha com os
dentes na cara do marido - marido de padre e juiz! - Sentira um escurecimento
de vista - e aí não sabia mais de nada.
O
delegado, naturalmente, punia pelos direitos de família legítima; e ia passando
ao marido, para encerrar perfunctoriamente o caso, quando de súbito aparece a
sogra, avisada às pressas. Da rua, a velha vinha gritando. Já sabia que aquilo
ia acabar mal, minha filha está farta de sofrer, o sem vergonha do marido não
tem rapariga na rua do Baturité que ele não gaste com ela, minha filha devia
mesmo era ter lascado a cabeça da vagabunda. E ele ainda bate na pobrezinha,
bate de correia, a vizinhança toda sabe!
Aí
a mulher do marido interrompeu agastada: "Minha mãe cale sua boca, que o
caso é outro. Ninguém está querendo saber se ele me bate. E se bate, bate no
que é dele".
A
sogra engasgou-se com a ingratidão. Desengasgando ia gritando "mal
agradecida!", mas nesse ínterim o delegado se levantara e pedira silêncio.
E explicou que o adultério é a peçonha dos lares; embora fosse errado apelar
para a violência compreendia-se que a senhora no desvario da privação de
sentidos e inteligência, agredisse a rival. Mas afinal não houvera morte, nem queixa
registrada, o sangue era pouco, cada um fosse para casa e não pecasse mais.
Falou, estava falado.
O
cabo correu ao Samdu, onde lhe foi fácil fazer entender à pecadora que não há
como a proteção das armas para uma frágil dama delicada.
O marido infiel levou a mulher para casa
- conta a vizinhança que lhe deu uma surra para ela deixar de ser valente. E
depois foram muito felizes.
Rachel
de Queiroz, in O Cruzeiro
Risco do erro e da ilusão
“Todo conhecimento comporta o risco do
erro e da ilusão. A educação do futuro deve enfrentar o problema de dupla face
do erro e da ilusão. O maior erro seria subestimar o problema do erro; a maior
ilusão seria subestimar o problema da ilusão. O reconhecimento do erro e da
ilusão é ainda mais difícil, porque o erro e a ilusão não se reconhecem, em
absoluto, como tais.”
Edgar
Morin
segunda-feira, 26 de maio de 2014
Cangaceiro (1955), de Cândido Portinari
“Vim da terra vermelha e do cafezal.
As almas penadas, os brejos e as matas virgens
Acompanham-me como o espantalho,
Que é o meu autorretrato.
Todas as coisas frágeis e pobres
Se parecem comigo.”
As almas penadas, os brejos e as matas virgens
Acompanham-me como o espantalho,
Que é o meu autorretrato.
Todas as coisas frágeis e pobres
Se parecem comigo.”
Cândido
Portinari
O Sol
“O Sol, com todos aqueles planetas que
giram à sua volta e dele dependem, ainda pode amadurecer um cacho de uvas como
se nada mais existisse a fazer no universo.”
Galileu
Galilei
Dos mundos
Deus criou este mundo. O homem, todavia,
Entrou a desconfiar, cogitabundo...
Decerto não gostou lá muito do que via...
E foi logo inventando o outro mundo.
Mário
Quintana
Janelas da alma
“Você precisa abrir as janelas da alma e
deixar entrar a música das coisas.”
José
Mauro de Vasconcelos
domingo, 25 de maio de 2014
Nenhuma luz
“No salão de Madame Verdurin, o autor faz
tocar Beethoven e um protegido, pintor, antegozando o sarau, chega a dizer: ‘Não
será preciso nenhuma luz e ele que toque a Sonata ao Luar no escuro, para
melhor se esclarecerem as coisas.'”
Marcel
Proust, in Em
busca do tempo perdido
A outra vida do Sr. Antonio
Dona Julinha desconfiou quando entrou na sala a
tempo de ouvir seu marido, o sr. Antonio, dizer "Tchau, amor" e
desligar o telefone.
- Com quem você estava falando, Antonio?
- Ninguém.
- Como é possível falar no telefone com ninguém, Antonio?
O sr. Antonio apenas sorriu.
A mesma coisa aconteceu outras vezes depois disto,
até que dona Julinha perdeu a paciência e pediu explicações. Com quem o sr.
Antonio falava ao telefone tão carinhosamente - e se despedia tão rapidamente,
quando a mulher aparecia? O sr. Antonio hesitou, depois falou.
- Está bem, Julinha. Se você quer mesmo saber... Eu
tenho outra mulher. Uma amante. Nos conhecemos há 20 anos.
- O quê?!
E, diante do espanto da mulher, o sr. Antonio
completou:
- O nome dela é Sulamita.
Dona Julinha não sabia o que fazer com aquela
informação. De repente, uma Sulamita na vida deles! O sr. Antonio tinha outra
mulher. Outro lar. Talvez outra família. Outra vida! Logo o sr. Antonio, que um
dia declarara "Julinha, eu não sei se gosto mais de você ou dos meus
chinelos de camurça". Logo o sr. Antonio, tão caseiro, tão pacato, com uma
amante - chamada Sulamita!
Dona Julinha reuniu os filhos para pedir conselhos.
O que deveria fazer? Seu primeiro impulso fora o de expulsar o marido de casa.
Ele que fosse viver com a outra. Mas os filhos não concordaram. Um divórcio,
àquela altura da vida do casal? Seria complicado. E desnecessário. Dona Julinha
que aprendesse a viver com a nova realidade. Afinal, o sr. Antonio, apesar de
ter uma amante durante 20 anos, escolhera ficar com a mulher. De uma certa
maneira, optara pelos chinelos de camurça.
Durante semanas, dona Julinha não dirigiu uma
palavra ao marido. Comiam em silêncio. Viam a novela em silêncio. Até que um
dia, levada mais pela curiosidade do que por vontade de brigar, dona Julinha
perguntou:
- Como vocês se conheceram?
- Quem?
- Você e essa... Como é o nome dela? Sulamita.
- Nos conhecemos no Cairo.
- No Cairo, Egito?
- É.
- E você alguma vez esteve no Cairo, Antonio?
- Tem muita coisa a meu respeito que você não sabe,
Julinha.
E, de repente, dona Julinha se deu conta que o
marido nunca estivera nem no Cairo nem em qualquer outro lugar longe dos seus
chinelos. Não gostava de viajar e nunca saía de casa. Quando se encontraria com
a outra se nunca saía de casa? Os telefonemas eram forjados. Ele realmente
estava falando com ninguém.
- Você e a Sulamita têm filhos, Antonio?
E o sr. Antonio, distraidamente, respondeu:
- Isso eu
ainda não decidi.
Luís Fernando Veríssimo, in
www.oestadao.com.br
Me ensina a escrever - Oswaldo Montenegro
Meu amor,
Me ensina a escrever
A folha em branco me assusta
Eu quero inventar dicionários
Palavras que possam tecer
A rede em que você descansa
E os sonhos que você tiver.
Meu amor,
Me ensina a fazer
Uma canção falando quanto custa
Trancar aqui dentro as palavras
Calando e querendo dizer
Não sei se o poema é bonito
Mas sei que preciso escrever.
Meu amor,
Me ensina a escrever
A folha em branco me assusta
Eu quero inventar dicionários
Palavras que possam tecer
A rede em que você descansa
E os sonhos que você tiver.
Me ensina a escrever
A folha em branco me assusta
Eu quero inventar dicionários
Palavras que possam tecer
A rede em que você descansa
E os sonhos que você tiver.
Meu amor,
Me ensina a fazer
Uma canção falando quanto custa
Trancar aqui dentro as palavras
Calando e querendo dizer
Não sei se o poema é bonito
Mas sei que preciso escrever.
Meu amor,
Me ensina a escrever
A folha em branco me assusta
Eu quero inventar dicionários
Palavras que possam tecer
A rede em que você descansa
E os sonhos que você tiver.
sábado, 24 de maio de 2014
azar e sorte
Sorte no jogo
azar no amor
de que me serve
sorte no amor
se o amor é um jogo
e o jogo não é o meu forte,
meu amor?
azar no amor
de que me serve
sorte no amor
se o amor é um jogo
e o jogo não é o meu forte,
meu amor?
Paulo Leminski
O mundo só se dá para os mais simples
“Minha gula pelo mundo: eu quis comer o
mundo e a fome com que nasci pelo leite — esta fome quis se estender pelo mundo
e o mundo não se queria comível. Ele se queria comível sim — mas para isso
exigia que eu fosse comê-lo com a humildade com que ele se dava. Mas fome
violenta é exigente e orgulhosa. E quando se vai com orgulho e exigência o
mundo se transmuta em duro aos dentes e à alma. O mundo só se dá para os
simples e eu fui comê-lo com o meu poder e já com esta cólera que hoje me
resume. E quando o pão se virou em pedra e ouro aos meus dentes eu fingi por
orgulho que não doía eu pensava que fingir força era o caminho nobre de um
homem e o caminho da própria força. Eu pensava que a força é o material de que
o mundo é feito e era com o mesmo material que eu iria a ele. E depois foi
quando o amor pelo mundo me tomou: e isso já não era a fome pequena, era a fome
ampliada. Era a grande alegria de viver — e eu pensava que esta sim, é livre.
Mas como foi que transformei sem nem sentir a alegria de viver na grande
luxúria de estar vivo? No entanto no começo era apenas bom e não era pecado.
Era um amor pelo mundo quando o céu e a terra são de madrugada, e os olhos
ainda sabem ser tenros. Mas eis que minha natureza de repente me assassinava, e
já não era uma doçura de amor pelo mundo: era uma avidez de luxúria pelo mundo.
E o mundo de novo se retraiu e a isso chamei de traição. A luxúria de estar
vivo me espantava na minha insônia sem eu entender que a noite do mundo e a
noite do viver são tão doces que até se dorme.”
Clarice
Lispector, in Crônicas no Jornal do Brasil (1971)
Acerca dos desejos
“A influência dos nossos desejos sobre as
nossas crenças é do conhecimento e da observação de todos, mas a natureza dessa
influência é, em geral, muito mal interpretada. É costume supor que a massa das
nossas crenças provém de alguma base racional e que o desejo é apenas uma força
perturbadora ocasional. Exatamente o oposto se aproximaria mais da verdade: a
grande massa de crenças pela qual somos amparados na nossa vida diária é apenas
projeção do desejo, corrigida aqui e ali, em pontos isolados, pelo rude choque
dos fatos.”
Bertrand
Russell, in Ensaios Céticos: Sonhos e Fatos
sexta-feira, 23 de maio de 2014
Oração natural
Fique atento
ao ritmo,
aos movimentos
do peixe no anzol.
Fique atento
às falas
das pessoas
que só dizem
o necessário.
Fique atento
aos sulcos
de sal
de sua face.
Fique atento
aos frutos tardios
que pendem
da memória.
Fique atento
às raízes
que se trançam
em seu coração.
Fique atento.
A atenção
é sua forma natural
de oração.
Donizete
Galvão
Trailer DOMINGUINHOS
DOMINGUINHOS é
um documentário sobre a vida e a obra de um dos maiores mestres da música
brasileira, intercalando imagens de arquivo e passagens em shows, além de
encontros musicais exclusivos com artistas marcantes em sua trajetória. O filme
propõe uma visão original sobre Dominguinhos, que revela o poder da música de
uma maneira natural, espontânea e ao mesmo tempo precisa. O filme conta também
com preciosas participações de renomados artistas de nossa música, importantes
parceiros da trajetória musical de Dominguinhos, como: Gilberto Gil, Gal Costa,
Elba Ramalho, Hermeto Paschoal, João Donato, Djavan, Nara Leão, Nana Caymmi,
Luiz Gonzaga, Yamandu Costa e Hamilton de Holanda, entre outros.
O filme tem
previsão de lançamento para maio de 2014.
Os homens são como os rios
“Um dos preceitos mais enraizados e mais
geralmente admitidos é o de acreditar que os homens possuem em si qualidades
imutáveis: há homens bons ou maus, inteligentes ou estúpidos, enérgicos ou
apáticos, e por aí adiante. Ora, os homens não são assim. Podemos, apenas dizer
que um homem é mais vezes bom que mau, mais vezes inteligente que estúpido,
mais vezes enérgico que apático, ou o contrário; mas classificar um homem, como
sempre fazemos, de bom ou inteligente e um outro de mau ou estúpido é um erro. Também
os rios, todos de água, são umas vezes mais estreitos, outros rápidos, outros
largos ou calmos, transparentes ou frios, caudalosos ou tépidos. Ora, os homens
são como os rios. Cada um traz consigo a semente de todas as qualidades
humanas, de que revela, em certos passos, umas características, noutros,
outras, chegando mesmo, em certas ocasiões, a mostrar-se sob uma forma
completamente oposta à sua natureza íntima, que, não obstante, mantém.”
Leon
Tolstoi, in Ressurreição
quinta-feira, 22 de maio de 2014
Um punhado de pó
Desde que chegaste ao mundo do ser,
uma escada foi posta diante de ti, para que escapasses.
Primeiro, foste mineral;
depois, te tornaste planta,
e mais tarde, animal.
Como pode isto ser segredo para ti?
uma escada foi posta diante de ti, para que escapasses.
Primeiro, foste mineral;
depois, te tornaste planta,
e mais tarde, animal.
Como pode isto ser segredo para ti?
Finalmente,
foste feito homem,
com conhecimento, razão e fé.
Contempla teu corpo - um punhado de pó -
vê quão perfeito se tornou!
com conhecimento, razão e fé.
Contempla teu corpo - um punhado de pó -
vê quão perfeito se tornou!
Quando tiveres cumprido tua jornada,
decerto hás de regressar como anjo;
depois disso, terás terminado de vez com a terra,
e tua estação há de ser o céu.
decerto hás de regressar como anjo;
depois disso, terás terminado de vez com a terra,
e tua estação há de ser o céu.
Rumi
quarta-feira, 21 de maio de 2014
O caminho a si
“Ah, eu o sei agora: nada custa mais ao
homem do que seguir o caminho que conduz a si mesmo.”
Maurice
Chapelan
Aniversário
Parentes
e convidados rompem no parabéns pra você. De pé na cadeira, a aniversariante
ergue os bracinhos:
—
Pára. Pára. Pára.
Na
mesa um feixe luminoso estraga o efeito das cinco velinhas.
— Mãe, apaga o sol.
Dalton
Trevisan, in Dinorá: novos mistérios
Tentação
Ela
estava com soluço. E como se não bastasse a claridade das duas horas, ela era
ruiva.
Na
rua vazia as pedras vibravam de calor - a cabeça da menina flamejava. Sentada
nos degraus de sua casa, ela suportava. Ninguém na rua, só uma pessoa esperando
inutilmente no ponto do bonde. E como se não bastasse seu olhar submisso e
paciente, o soluço a interrompia de momento a momento, abalando o queixo que se
apoiava conformado na mão. Que fazer de uma menina ruiva com soluço? Olhamo-nos
sem palavras, desalento contra desalento. Na rua deserta nenhum sinal de bonde.
Numa terra de morenos, ser ruivo era uma revolta involuntária. Que importava se
num dia futuro sua marca ia fazê-la erguer insolente uma cabeça de mulher? Por
enquanto ela estava sentada num degrau faiscante da porta, às duas horas. O que
a salvava era uma bolsa velha de senhora, com alça partida. Segurava-a com um
amor conjugal já habituado, apertando-a contra os joelhos.
Foi
quando se aproximou a sua outra metade neste mundo, um irmão em Grajaú. A
possibilidade de comunicação surgiu no ângulo quente da esquina, acompanhando
uma senhora, e encarnada na figura de um cão. Era um basset lindo e miserável,
doce sob a sua fatalidade. Era um basset ruivo.
Lá
vinha ele trotando, à frente de sua dona, arrastando seu comprimento. Desprevenido,
acostumado, cachorro.
A
menina abriu os olhos pasmada. Suavemente avisado, o cachorro estacou diante
dela. Sua língua vibrava. Ambos se olhavam.
Entre
tantos seres que estão prontos para se tornarem donos de outro ser, lá estava a
menina que viera ao mundo para ter aquele cachorro. Ele fremia suavemente, sem
latir. Ela olhava-o sob os cabelos, fascinada, séria. Quanto tempo se passava?
Um grande soluço sacudiu-a desafinado. Ele nem sequer tremeu. Também ela passou
por cima do soluço e continuou a fitá-lo.
Os
pêlos de ambos eram curtos, vermelhos.
Que
foi que se disseram? Não se sabe. Sabe-se apenas que se comunicaram
rapidamente, pois não havia tempo. Sabe-se também que sem falar eles se pediam.
Pediam-se com urgência, com encabulamento, surpreendidos.
No
meio de tanta vaga impossibilidade e de tanto sol, ali estava a solução para a
criança vermelha. E no meio de tantas ruas a serem trotadas, de tantos cães
maiores, de tantos esgotos secos - lá estava uma menina, como se fora carne de
sua ruiva carne. Eles se fitavam profundos, entregues, ausentes de Grajaú. Mais
um instante e o suspenso sonho se quebraria, cedendo talvez à gravidade com que
se pediam.
Mas
ambos eram comprometidos.
Ela
com sua infância impossível, o centro da inocência que só se abriria quando ela
fosse uma mulher. Ele, com sua natureza aprisionada.
A
dona esperava impaciente sob o guarda-sol. O basset ruivo afinal despregou-se
da menina e saiu sonâmbulo. Ela ficou espantada, com o acontecimento nas mãos,
numa mudez que nem pai nem mãe compreenderiam. Acompanhou-o com olhos pretos
que mal acreditavam, debruçada sobre a bolsa e os joelhos, até vê-la dobrar a
outra esquina.
Mas ele foi mais forte que ela. Nem uma
só vez olhou para trás.
Clarice
Lispector, in A legião estrangeira
terça-feira, 20 de maio de 2014
Contradições
... Mas o que eles não sabem levar em conta é que o poeta é uma criatura
essencialmente dramática, isto é, contraditória, isto é, verdadeira.
E
por isso, é que o bom de escrever teatro é que se pode dizer, como toda a
sinceridade, as coisas mais opostas.
Sim, um autor que nunca se contradiz deve
estar mentindo.
Mário
Quintana, in Caderno H
Amor e ódio
“Parece-me fácil viver sem ódio, coisa
que nunca senti. Mas viver sem amor acho impossível.”
Jorge
Luis Borges
segunda-feira, 19 de maio de 2014
Pagamento de camponeses (1882), de Leon Augustin Lhermitte
No quadro, vemos camponeses recebendo o
pagamento após uma árdua jornada de trabalho. Na figura em primeiro plano, o
pintor retrata a exaustão do homem provocada pelo enorme força exaurida no
trabalho. É a arte realista, que mostra o oposto da arte romântica, que
idealizava o trabalho no campo, mostrando camponeses e pastores alegres,
bonitos e saudáveis. A intenção de Lhermitte é mostrar a vida sofrida do homem
do campo, sem nenhum traço de idealização.
O saber
“Não existe ocupação tão agradável como o
saber; o saber é o meio de nos dar a conhecer, ainda neste mundo, o infinito da
matéria, a imensa grandeza da Natureza, os céus, as terras e os mares. O saber
ensinou-nos a piedade, a moderação, a grandeza do coração; tira-nos as nossas
almas das trevas e mostra-nos todas as coisas, o alto e o baixo, o primeiro, o
último e tudo aquilo que se encontra no meio; o saber dá-nos os meios de viver
bem e felizmente; ensina-nos a passar as nossas vidas sem descontentamento e
sem vexames.”
Marcus
Cícero, in Disputas Tusculanas
Meu pai
“Lembrava-se
de ter visto o pai uma vez, alguns dias depois da morte de Omar, sozinho
debaixo do gigantesco carvalho. O carvalho era mais alto do que qualquer coisa
em Shadbagh, e a coisa viva mais velha da aldeia. O pai disse que não se
surpreenderia se a árvore tivesse visto o imperador Babur conduzindo seu
exército para tomar Cabul. Contou que havia passado metade da infância à sombra
daquela copa maciça ou galgando seus longos galhos. O pai dele, avô de
Abdullah, amarrara uma longa corda a um de seus galhos mais grossos e
construíra um balanço, uma geringonça que sobrevivera a incontáveis gerações
inclementes e até ao próprio velho. O pai disse que costumava se revezar com
Parwana e a irmã Masooma naquele balanço, quando todos eram crianças.
Mas,
naqueles dias, o pai estava cansado demais do trabalho quando Pari o puxava
pela manga e pedia para ser empurrada no balanço.
Talvez amanhã, Pari.
Só um pouquinho, baba. Por
favor, levante.
Agora, não. Em outra
ocasião.
E
ela acabava desistindo, largava a manga dele e saía de perto, resignada. Às
vezes, o rosto magro do pai desabava ao ver Pari se afastando. Virava-se na
cama, puxava o acolchoado e fechava os olhos cansados.
Abdullah não conseguia imaginar que o pai
tivesse brincado alguma vez em um balanço. Não conseguia imaginar que o pai
tivesse um dia sido garoto como ele. Um garoto. Despreocupado, com leveza nos
pés. Correndo pelo campo aberto com os amigos. O pai cujas mãos eram cheias de
cicatrizes, cujo rosto era rabiscado por profundas linhas de exaustão. O pai,
que poderia muito bem já ter nascido com uma pá na mão e barro sob as unhas.”
Khaled
Hosseini, in O silêncio das montanhas
domingo, 18 de maio de 2014
Desejos contraditórios
“Todos
os desejos são contraditórios como o do alimento. Gostaria que aquele que amo
me amasse. Mas se ele me for totalmente dedicado, deixa de existir, e eu deixo
de o amar. E enquanto não me for totalmente dedicado, não me amará o
suficiente. Fome e saciedade.
O
desejo é mau e ilusório, mas, no entanto, sem o desejo não esquadrinharíamos o
verdadeiro absoluto, o verdadeiro ilimitado. É preciso ter passado por isto.
Infelizes os seres a quem o cansaço subtrai esta energia suplementar que é a
fonte do desejo.
Infeliz,
também, aquele a quem o desejo cega.
É preciso arrastar o desejo até ao eixo
dos pólos.”
Simone
Weil, in A Gravidade e a Graça
O medo
“Nada nos faz acreditar mais do que o
medo, a certeza de estarmos ameaçados. Quando nos sentimos vítimas, todas as
nossas ações e crenças são legitimadas, por mais questionáveis que sejam. Os
nossos opositores, ou simplesmente os nossos vizinhos, deixam de estar ao nosso
nível e transformam-se em inimigos. Deixamos de ser agressores para nos
convertermos em defensores. A inveja, a cobiça ou o ressentimento que nos movem
ficam santificados, porque pensamos que agimos em defesa própria. O mal, a
ameaça, está sempre no outro. O primeiro passo para acreditar apaixonadamente é
o medo. O medo de perdermos a nossa identidade, a nossa vida, a nossa condição
ou as nossas crenças. O medo é a pólvora e o ódio o rastilho. O dogma, em
última instância, é apenas um fósforo aceso.”
Carlos
Ruiz Zafón, in O Jogo do Anjo
Caso de canário
Casara-se havia duas semanas. Por isso, em casa dos
sogros, a família resolveu que ele é que daria cabo do canário:
- Você compreende. Nenhum de nós teria coragem de
sacrificar o pobrezinho, que nos deu tanta alegria. Todos somos muito ligados a
ele, seria uma barbaridade. Você é diferente, ainda não teve tempo de
afeiçoar-se ao bichinho. Vai ver que nem reparou nele, durante o noivado.
- Mas eu também tenho coração, ora essa. Como é que
vou matar um pássaro só porque o conheço há menos tempo do que vocês?
- Porque não tem cura, o médico já disse. Pensa que
não tentamos tudo? É para ele não sofrer mais e não aumentar o nosso
sofrimento. Seja bom; vá.
O sogro, a sogra apelaram no mesmo tom. Os olhos
claros de sua mulher pediram-lhe com doçura:
- Vai, meu bem.
Com repugnância pela obra de misericórdia que ia
praticar, ele aproximou-se da gaiola. O canário nem sequer abriu o olho. Jazia
a um canto, arrepiado, morto vivo. É, esse está mesmo na última lona, e dói ver
a lenta agonia de um ser tão gracioso, que viveu para cantar.
- Primeiro me tragam um vidro de éter, e algodão.
Assim ele não sentirá o horror da coisa.
Embebeu de éter a bolinha de algodão, tirou o
canário para fora com infinita delicadeza, aconchegou-o na palma da mão
esquerda e, olhando para outro lado, aplicou-lhe a bolinha no bico. Sempre sem
olhar para a vítima, deu-lhe uma torcida rápida e leve, com dois dedos, no
pescoço.
E saiu para a rua, pequenino por dentro,
angustiado, achando a condição humana uma droga. As pessoas da casa não
quiseram aproximar-se do cadáver. Coube à cozinheira recolher a gaiola, para
que sua vista não despertasse saudade e remorso em ninguém. Não havendo jardim
para sepultar o corpo, depositou-o na lata de lixo.
Chegou a hora de jantar, mas quem é que tinha fome
naquela casa enlutada? O sacrificador, esse, ficara rodando por aí, e seu
desejo seria não voltar para casa nem para dentro de si mesmo.
No dia seguinte, pela manhã, a cozinheira foi
ajeitar a lata de lixo para o caminhão, e recebeu uma bicada voraz no dedo.
- Ui!
Não é que o canário tinha ressuscitado, perdão,
reluzia vivinho da silva, com uma fome danada?
- Ele estava
precisando mesmo era de éter - concluiu o estrangulador, que se sentiu
ressuscitar, por sua vez.
Carlos
Drummond de Andrade, in Cadeira de balanço
sábado, 17 de maio de 2014
Palavra e sofrimento
“Toda palavra me faz sofrer. No entanto,
como seria doce ouvir flores tagarelando sobre a morte!”
Emil
Michel Cioran, in Silogismos da amargura
Arte poética
Na adolescência eu queria escrever poemas eternos.
Poemas que não envelhecessem.
Aspirava os pensamentos abstratos, as ideias transcendentes,
jogava palavras como anzóis atrás de uma baleia azul.
Eu queria a estação permanente dos fatos,
aquela zona de mistério que transforma os acontecimentos
em reflexos cíclicos
de uma realidade essência.
Eu desprezava a transitoriedade, dava-me engulhos o trivial,
pousava meu dente na polpa indizível da transcendência.
Hoje eu pouso o coração da poesia na bandeja das coisas que passam,
eu sei que, como todas as civilizações,
a nossa tem um fim,
e já durou demais.
Eu sinto o cheiro de seu sangue congelado,
adivinho o pus acumulado sob sua pele túrgida.
Sei que seremos de repente uma sobrevivência arqueológica.
Por isso não ambiciono mais, para o meu poema, esta imaginária duração,
esta idade virtual com pés de efêmero tato.
Não desejo para o gênero humano poemas capazes de sobreviver à sua legítima história,
mergulho no cotidiano com um alívio e uma surpresa que me renovam a vida.
Não quero mais fazer poemas que não sejam tributo do instante,
quero tocar o perecível e segurar entre os dedos sua respiração
oscilante. Faço poemas transitórios e fugazes.
Os poemas eternos eu deixo para a vida eterna.
Walmir
Ayala
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