Dona Julinha desconfiou quando entrou na sala a
tempo de ouvir seu marido, o sr. Antonio, dizer "Tchau, amor" e
desligar o telefone.
- Com quem você estava falando, Antonio?
- Ninguém.
- Como é possível falar no telefone com ninguém, Antonio?
O sr. Antonio apenas sorriu.
A mesma coisa aconteceu outras vezes depois disto,
até que dona Julinha perdeu a paciência e pediu explicações. Com quem o sr.
Antonio falava ao telefone tão carinhosamente - e se despedia tão rapidamente,
quando a mulher aparecia? O sr. Antonio hesitou, depois falou.
- Está bem, Julinha. Se você quer mesmo saber... Eu
tenho outra mulher. Uma amante. Nos conhecemos há 20 anos.
- O quê?!
E, diante do espanto da mulher, o sr. Antonio
completou:
- O nome dela é Sulamita.
Dona Julinha não sabia o que fazer com aquela
informação. De repente, uma Sulamita na vida deles! O sr. Antonio tinha outra
mulher. Outro lar. Talvez outra família. Outra vida! Logo o sr. Antonio, que um
dia declarara "Julinha, eu não sei se gosto mais de você ou dos meus
chinelos de camurça". Logo o sr. Antonio, tão caseiro, tão pacato, com uma
amante - chamada Sulamita!
Dona Julinha reuniu os filhos para pedir conselhos.
O que deveria fazer? Seu primeiro impulso fora o de expulsar o marido de casa.
Ele que fosse viver com a outra. Mas os filhos não concordaram. Um divórcio,
àquela altura da vida do casal? Seria complicado. E desnecessário. Dona Julinha
que aprendesse a viver com a nova realidade. Afinal, o sr. Antonio, apesar de
ter uma amante durante 20 anos, escolhera ficar com a mulher. De uma certa
maneira, optara pelos chinelos de camurça.
Durante semanas, dona Julinha não dirigiu uma
palavra ao marido. Comiam em silêncio. Viam a novela em silêncio. Até que um
dia, levada mais pela curiosidade do que por vontade de brigar, dona Julinha
perguntou:
- Como vocês se conheceram?
- Quem?
- Você e essa... Como é o nome dela? Sulamita.
- Nos conhecemos no Cairo.
- No Cairo, Egito?
- É.
- E você alguma vez esteve no Cairo, Antonio?
- Tem muita coisa a meu respeito que você não sabe,
Julinha.
E, de repente, dona Julinha se deu conta que o
marido nunca estivera nem no Cairo nem em qualquer outro lugar longe dos seus
chinelos. Não gostava de viajar e nunca saía de casa. Quando se encontraria com
a outra se nunca saía de casa? Os telefonemas eram forjados. Ele realmente
estava falando com ninguém.
- Você e a Sulamita têm filhos, Antonio?
E o sr. Antonio, distraidamente, respondeu:
- Isso eu
ainda não decidi.
Luís Fernando Veríssimo, in
www.oestadao.com.br
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