Outro
dia foi presa uma senhora porque numa banca de mercado, em pleno sábado de
feira, agrediu a rival com uma rapadura, dando-lhe uma tijolada que exigiu doze
pontos no couro cabeludo. Rapadura é arma perigosa, um paralelepípedo de doce
bruto, pesado e com arestas. Batendo de quina pode até matar.
A
banca de rapadura era o local de comércio do próprio marido da agressora. Vinha
ela descuidosa, passando ali por acaso, e de repente depara com o quadro
ofensivo: o marido em idílio público com a dalila, a messalina, a loba do seu
lar! Ela debruçada ao balcão e ele, de dentro, segurava o queixo da sereia e
lhe cochichava no ouvido. O monte de rapaduras estava ao lado. Foi só passar a
mão na rapadura de cima e virá-la de quina, para castigar mesmo, no pé do
ouvido da outra. A agredida se pôs a gritar, com a cara coberta de sangue, e o
infiel asperamente ralhou: "Cala a boca, mulher, senão aparece a
polícia".
Mas
avisou tarde, porque a polícia já vinha na pessoa de um cabo a quem o idílio
adúltero também repugnara, pois de há muito que ele, cabo, suspirava pelos
favores da destruidora de lares. Debalde lhe fizera serenatas, com uma radiola
cheia de discos do Roberto Carlos; e ela até lhe atirara um sapato pela janela,
certa vez em que ele encostara a máquina cantante à rótula, tocando aquela
música em que RC declara à amada : "Você vai aprender a ser gente!"
-
Quem vai aprender é a mãe, gritara a julieta ofendida.
Mas
o cabo apanhou o pé de sapato como se fosse o chapim da Borralheira, foi na
loja do Geraldo e escolheu a sandalinha mais mimosa que tinha lá, com tiras
prateadas e flor de contas no peito do pé. Entregou-a com um bilhete:
"Recebi a medida e lhe mando a encomenda".
A
bela pagou com um sorriso. Mas continuou com o homem das rapaduras, que tinha o
que gastar com ela. Cabo arranchado mal ganha para o cigarro.
Agora
porém tinha o cabo a sua oportunidade. Mandou a amada para o Samdu, num jipe, e
bradou esteje preso para os mais.
Na
delegacia a agressora já vinha muito unida ao marido (que a tratava até de meu
bem) e declarou à autoridade que de nada se lembrava. Só sabia que vinha fazer
umas compras, e passando pela banca de rapadura, viu aquela piranha com os
dentes na cara do marido - marido de padre e juiz! - Sentira um escurecimento
de vista - e aí não sabia mais de nada.
O
delegado, naturalmente, punia pelos direitos de família legítima; e ia passando
ao marido, para encerrar perfunctoriamente o caso, quando de súbito aparece a
sogra, avisada às pressas. Da rua, a velha vinha gritando. Já sabia que aquilo
ia acabar mal, minha filha está farta de sofrer, o sem vergonha do marido não
tem rapariga na rua do Baturité que ele não gaste com ela, minha filha devia
mesmo era ter lascado a cabeça da vagabunda. E ele ainda bate na pobrezinha,
bate de correia, a vizinhança toda sabe!
Aí
a mulher do marido interrompeu agastada: "Minha mãe cale sua boca, que o
caso é outro. Ninguém está querendo saber se ele me bate. E se bate, bate no
que é dele".
A
sogra engasgou-se com a ingratidão. Desengasgando ia gritando "mal
agradecida!", mas nesse ínterim o delegado se levantara e pedira silêncio.
E explicou que o adultério é a peçonha dos lares; embora fosse errado apelar
para a violência compreendia-se que a senhora no desvario da privação de
sentidos e inteligência, agredisse a rival. Mas afinal não houvera morte, nem queixa
registrada, o sangue era pouco, cada um fosse para casa e não pecasse mais.
Falou, estava falado.
O
cabo correu ao Samdu, onde lhe foi fácil fazer entender à pecadora que não há
como a proteção das armas para uma frágil dama delicada.
O marido infiel levou a mulher para casa
- conta a vizinhança que lhe deu uma surra para ela deixar de ser valente. E
depois foram muito felizes.
Rachel
de Queiroz, in O Cruzeiro
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