domingo, 31 de agosto de 2025

Toninho Horta & Arismar do Espírito Santo | Beijo Partido

Níquel Náusea

A fila

O primeiro chegou cedo
porque tinha medo
de perder a frente;
o segundo resmunga furibundo
por encontrar alguém
mais eficiente;
o terceiro acha injusto
não ter tomado a ponta
pleiteada a tanto custo;
o quarto,
o quinto,
o sexto
encontram um pretexto
para discutir;
a fila se estica,
vira a esquina,
urina no poste,
chupa tangerina.
Há quem reclame,
há quem goste:
às vezes dá para beliscar
a moça que enfrenta
um décimo sexto lugar.
Se não for assim,
quem é que aguenta?
Depois de tanta demora,
a porta não abre,
a linha se desfaz e vai embora.
Atrás da porta
tem um sonho remoendo,
um plano insistindo,
um sorriso esboçando.
Do lado de fora,
a vida competindo,
o corpo envelhecendo,
a alma duvidando.
A fila amanhã chega sabendo
que a esperança, por prudência, está dormindo,
pois a porta, antes de abrir, já está fechando.

Flora Figueiredo, em Amor a céu aberto 

O trabalho da filosofia

A causa universal é como uma torrente: carrega tudo consigo.
Quão indignas são essas pobres pessoas engajadas em questões políticas, supondo que atuam como filósofos! Tolos.
Pois bem, faça o que a natureza agora exige. Caso esteja em seu poder, movimente-se e não se importe se alguém o observará ou não. Não espere pela República de Platão. Satisfaça-se com os menores progressos, e não os desconsidere.
Quem pode mudar as opiniões dos homens? Sem mudança de opinião, o que mais há senão a escravidão dos homens, que lamentam enquanto fingem obedecer?
Mencione Alexandre, Filipe e Demétrio de Faleros. Somente eles próprios dirão se descobriram as exigências da natureza comum e se treinaram de acordo. Todavia, se agiram como heróis de uma tragédia, ninguém me condenou a imitá-los.
Simples e modesto é o trabalho da filosofia. Não me desvie rumo à insolência e ao orgulho.

Marco Aurélio, em Meditações

O bar perfeito



O Rui Carlos Ostermann e a Nilse, eu e a Lúcia quase o descobrimos. Tinha uma porta pesada de pub inglês, lá dentro o chão atapetado, as paredes forradas de madeira, iluminação discreta mas não safada, uma escada que levava a um segundo andar com cinco ou seis mesas rodeadas de cadeiras de couro preto, o difícil foi manter a conversa num nível que não destoasse da empáfia do garçom. No fim caímos na risada, de puro prazer. Turista brasileiro não tem jeito.
Eu disse “quase” o encontramos porque o bar — não lembro o nome — fica na calle M.T. de Alvear, perto do Plaza, em Buenos Aires, e o Bar Perfeito teria que estar, que remédio, em Porto Alegre. É um velho sonho. Uma noite dessas ficamos o Armando Coelho Borges, o José Onofre, o Rui e eu lamentando a falta do Bar Perfeito em nossas vidas. Começamos enumerando todos os requisitos do Bar Perfeito e terminamos, cinco doses de uísque mais tarde, na mais inconsolável fossa. O Bar Perfeito não só não existe como não pode existir, é a nostalgia do que nunca houve. O diabo é que Porto Alegre não tem nem um bar quase-perfeito onde se maldizer a falta do Bar Perfeito. É um deserto de fórmica e azulejos.
Tem o Bar City’s, certo. O bar do Plaza, certo. Mas em ambos falta aquele indefinível... o quê? Não sei, é indefinível — que distingue um bom bar perfeito. As pessoas tratam de negócios no Bar City’s e no bar do Plaza, negócios razoáveis, viáveis, e o Bar Perfeito deve ser o último refúgio do ócio inteligente. Só se deve tratar de negócios impossíveis no Bar Perfeito. Nenhuma transação pode sobreviver fora das paredes do Bar Perfeito. Você deve avisar ao barman que só atenderá ao telefone se for uma mulher com pronúncia eslava querendo falar sobre um contrabando de joias. E se um dia telefonar uma eslava para tratar de joias, você faz sinal que não está e depois sorri, melancolicamente, para o seu Old Fashioned.
O barman do Bar Perfeito deve ser, antes de tudo, um mentiroso. Ele atendia o bar do Ritz de Paris quando Scott Fitzgerald o frequentava, foi ele que dissuadiu o escritor de subir no monumento da Place Concorde e fazer xixi no povo. O barman do Bar Perfeito guardaria recados, seria uma central de banalidades. O Dr. Werner deixou dito que passa aqui às sete e se tem algum recado. Diga ao Dr. Werner que eu estive aqui e tomei um uísque e que fora isso não há nenhum recado.
O Dr. Rui perguntou se interessa um emprego no Times, doze mil dólares por mês para não fazer nada. Diga ao Dr. Rui que não interessa, mas que a Unesco mandou oferecer uma bolsa para ele, sete anos em Paris para pensar na vida, e que ele não esqueça o jantar no Armando hoje. Outra coisa, se me telefonarem da Embaixada Russa, pergunta se interessa um microfilme do plano das instalações hidráulicas do Edifício Sulacap, foi só o que eu consegui. (Tudo deve ser simulado dentro do Bar Perfeito. Menos o scotch.)
Haveria um pianista bêbado no Bar Perfeito? Um item a discutir. Play it again, Sam, ele toca e todo mundo chora. Ninguém pagaria suas contas no Bar Perfeito. Proibiríamos a entrada de todo mundo no Bar Perfeito, menos uns 17 eleitos. Uma vez por mês seria admitido um chato e ritualmente envenenado.
O Bar Perfeito certamente iria à falência em menos de um ano. Mas aí pelo menos teríamos uma memória a lamentar, o que é melhor do que nada.

Luís Fernando Veríssimo, em A mesa voadora

sábado, 30 de agosto de 2025

Mestrinho | Eu e Você / Seu Olhar Não Mente

Preciosismo?

Eles erram sempre de maneira tão complicada que eu não atino como ainda não descobriram que seria muito mais fácil escreverem certo.

Mário Quintana, em Caderno H

Calvin e Haroldo

Roça

No mesmo prato
o menino, o cachorro e o gato.
Come a infância do mundo.

Adélia Prado, em O Coração Disparado

Carta III


Meu querido Vermelindo,

Fiquei muito satisfeito com o que você me contou sobre o relacionamento desse homem com a mãe. Mas você deve tirar vantagem disso. O Inimigo irá trabalhar de dentro para fora, gradualmente corrigindo a conduta do paciente cada vez mais pelo novo padrão, e pode ser que ele mude o seu comportamento em relação à senhora idosa a qualquer momento. Seria bom que você entrasse em cena antes. Mantenha-se em contato íntimo com nosso colega Maldadiposo, que está encarregado da mãe, e construam um hábito consistente de irritação mútua, de pequenas azucrinações diárias. Os seguintes métodos são de grande ajuda:

1. Mantenha a mente dele focada na vida interior. Ele pensa que a sua conversão é algo que ocorreu dentro dele e que sua atenção, por isso mesmo, está voltada para os estados atuais do seu próprio espírito — ou, antes, para a versão muito expurgada deles, que é tudo o que você deve permitir que ele veja. Encoraje isso. Mantenha a mente dele longe dos deveres mais elementares, direcionando-a para os mais avançados e espirituais. Agrave essa característica mais humana, mais útil de todas, o horror e a negligência ao óbvio. Você deve levá-lo a uma condição em que ele possa praticar o autoexame por uma hora sem descobrir nenhum desses fatos sobre si mesmo, que são perfeitamente claros para qualquer um que já viveu na mesma casa que ele ou trabalhou no mesmo escritório.

2. Sem dúvida, é impossível evitar que ele ore pela mãe, mas temos meios de tornar essas orações inócuas. Certifique-se de que elas sejam sempre muito “espirituais”, que ele sempre se preocupe com o estado da alma da mãe, e nunca com o reumatismo dela. Há duas vantagens nisso. Em primeiro lugar, sua atenção ficará concentrada no que ele considera serem os pecados dela, pelo que, com um pouco de orientação da sua parte, ele poderá ser induzido a considerar pecado as ações da mãe que julga inconvenientes ou irritantes. Assim, você pode continuar a esfregar as feridas do dia de forma um pouco mais forte, mesmo enquanto ele estiver de joelhos; a operação é muito fácil e você vai achá-la bastante divertida. Em segundo lugar, já que as ideias dele sobre a alma da mãe serão muito rudimentares e muitas vezes errôneas, ele estará, até certo ponto, orando por uma pessoa imaginária, e a sua tarefa será tornar essa pessoa imaginária todos os dias cada vez menos parecida com a mãe real — a senhora idosa de língua afiada à mesa do café da manhã. Com o passar do tempo, a divisão que você causou entre eles será tamanha que nenhum pensamento ou sentimento de suas orações pela mãe imaginária alcançará ou servirá de ajuda à mãe verdadeira. Eu já tive tamanho controle sobre alguns de meus pacientes que era possível fazê-los levantar da oração pela alma da esposa ou do filho para ir bater na esposa ou no filho reais ou mesmo insultá-los sem o menor escrúpulo.

3. Quando dois seres humanos vivem juntos por muitos anos, é comum que cada um adquira tons de voz e expressões faciais que são quase insuportavelmente irritantes para o outro. Explore bem isso. Faça-o ficar prestando atenção nas sobrancelhas erguidas da mãe, que ele aprendeu a detestar na infância, e faça com que ele fique refletindo sobre o quanto isso o aborrece. Faça-o partir do pressuposto de que ela sabe o quanto isso é irritante e que o faz para irritá-lo — se você souber fazer o seu serviço direitinho, ele não notará a imensaimprobabilidade de sua suposição. E, é claro, nunca o deixe suspeitar de que ele mesmo tenha tons, caras e bocas que também são capazes de irritá-la. Como ele não pode ver ou ouvir a si mesmo, isso é fácil de conseguir.

4. Na vida civilizada, o ódio doméstico usualmente se expressa dizendo coisas que pareceriam bem inofensivas no papel (as palavras em si não são ofensivas), mas que, ditas naquele tom de voz, ou naquele momento, não estarão longe de parecer um tapa na cara. Para manter esse jogo em andamento, você e Maldadiposo devem cuidar para que cada um desses tolos tenham dois pesos e duas medidas. Seu paciente deve demandar que todos os seus pronunciamentos sejam tomados literalmente e julgados simplesmente com base nas palavras reais; ao mesmo tempo, ele deve julgar todos os pronunciamentos da mãe com a interpretação mais completa e supersensível do tom, do contexto e da intenção suspeita. Ela deve ser encorajada a fazer o mesmo com ele. Assim, eles podem sair de toda briga convencidos, ou bem perto de estarem convencidos, de que eles são os inocentes da história. Você conhece bem esse tipo de coisa: “Basta perguntar quando o jantar ficará pronto, que ela logo tem um chilique”. Uma vez que esse hábito estiver bem consolidado, você terá a prazerosa situação em que um ser humano diz coisas com o propósito expresso de ofender e, ainda assim, queixa-se quando é ele o ofendido.
Enfim, conte-me algo sobre o posicionamento religioso da velha senhora. Será que ela está com alguma espécie de ciúme do novo fator na vida do filho? — no caso, sentindo-se ofendida pelo fato de ele aprender com outros, e tão tarde, aquilo que ela acha que deu a ele oportunidades de aprender na infância? Será que ela sente que ele está fazendo muito fuzuê em torno disso — ou que ele está aceitando tudo tranquilo demais? Você se lembra do irmão mais velho na história do Inimigo, não é mesmo?

Com carinho,
Seu tio, Maldanado

C. S. Lewis, em Cartas de um diabo a seu aprendiz

Diário de Bernardo Soares

53.

Quando, como uma noite de tempestade a que o dia se segue, o cristianismo passou de sobre as almas, viu-se o estrago que, invisivelmente, havia causado; a ruína, que causara, só se viu quando ele passara já. Julgaram uns que era pela sua falta que essa ruína viera; mas fora pela sua ida que a ruína se mostrara, não que se causara.
Ficou, então, neste mundo de almas, a ruína visível, a desgraça patente, sem a treva que a cobrisse do seu carinho falso. As almas viram-se tais quais eram.
Começou, então, nas almas recentes aquela doença a que se chamou romantismo, aquele cristianismo sem ilusões, aquele cristianismo sem mitos, que é a própria secura da sua essência doentia.
O mal todo do romantismo é a confusão entre o que nos é preciso e o que desejamos. Todos nós precisamos das coisas indispensáveis à vida, à sua conservação e ao seu continuamento; todos nós desejamos uma vida mais perfeita, uma felicidade completa, a realidade dos nossos sonhos e É humano querer o que nos é preciso, e é humano desejar o que não nos é preciso, mas é para nós desejável. O que é doença é desejar com igual intensidade o que é preciso e o que é desejável, e sofrer por não ser perfeito como se se sofresse por não ter pão. O mal romântico é este: é querer a lua como se houvesse maneira de a obter.
Não se pode comer um bolo sem o perder.”
Na esfera baixa da política, como no íntimo recinto das almas — o mesmo mal.
O pagão desconhecia, no mundo real, este sentido doente das coisas e de si mesmo. Como era homem, desejava também o impossível; mas não o queria. A sua religião era e só nos penetrais do mistério, aos iniciados apenas, longe do povo e dos eram ensinadas aquelas coisas transcendentes das religiões que enchem a alma do vácuo do mundo.

Fernando Pessoa, em Livro do Desassossego

sexta-feira, 29 de agosto de 2025

Bruna Black | Um Amor Puro

Frase misteriosa, sonho estranho

Às vezes me vêm frases completas, resultado retardado de pensamentos anteriores. São misteriosas essas frases porque, ao virem, não se ligam mais a nenhuma fonte. Por exemplo, a frase seguinte chegou-me e poderia ter sido dita por tantas pessoas infelizes: “Eu queria te dar pão para a tua fome mas tu querias ouro. No entanto tua fome é grande como a tua alma que apequenaste à altura do outro.”
Por que estas palavras que não vivi eu própria? A única hipótese, por causa da palavra ouro, vem do sonho que uma leitora teve a meu respeito. Ela o escreveu para mim. A leitora assina-se Azalea, que depois se tornou uma grande amiga. E me escreveu: “Não se impressione, nem se assuste. A interpretação é a melhor possível. Sonhei com uma espécie de canteiro imenso, com a terra toda revolvida para os lados. Junto a este canteiro, abaixadas, ajoelhadas, muitas pessoas. Todas desconhecidas para mim, que, de perto, olhavam a cena. Umas, nem eu poderia saber se as conhecia ou não, tão enterrados estavam os rostos no trabalho de revolver e revirar a terra. Procuravam ouro, Clarice. E achavam. Porque, à frente de cada uma delas se avolumava, cada vez mais, um monte brilhante que não podia deixar de ser ouro.
No meio daquela gente, alucinada, cavando também, uma pessoa de cara muito conhecida minha: Clarice Lispector, a escritora – a que para mim, sempre foi, desde o tempo de classe de literatura do clássico, a melhor escritora de nossa língua. O rosto era tão familiar que era visto por mim como se ali estivesse alguém de minha família. Então, com ansiedade igual à sua, passei a acompanhar o seu trabalho de cavar ouro.
Ao contrário dos outros, à sua frente, havia um monte imundo de terra. Ouro, não. Os outros cavavam e, felizes, separavam o metal brilhante, aumentando sempre mais os montes. Você, não. Cada vez que, desesperada, enterrava suas mãos na terra remexida, dali retirava punhados de cabelos, escuros, sujos, horríveis. E olhava para trás, com desespero, à minha procura, mostrava o resultado de sua busca.
E novamente se entregava àquela louca, desesperada escavação. Seus olhares e seus gestos, mostrando-me as mãos sem ouro – nem cabelos dourados você tirava –, tudo isso me chegava como um apelo para que a ajudasse. Então, eu me dirigi até você. Toquei no seu ombro. Pedi-lhe que saísse dali. Aquilo não era para você. Esquisito porque em todos os momentos eu me sentia aflita, desesperada e doente, como se eu fosse a própria Clarice Lispector. Você me atendeu. Levantou-se e se dispôs a me acompanhar. De costas já para o grupo que continuava, sofregamente cavando, saí levando-a pela mão. Senti, então, que você relutava ainda. E olhava para trás. Pesarosa de se afastar dali, como se lá estivesse guardada a sua última esperança. Caminhamos um pouco, mãos dadas, sem falar. Você chorava muito, e de vez em quando se desprendia de mim e fitava longamente suas duas mãos vazias. Uma ao lado da outra. E soluçava: vazias, Azalea! Eu as retomava, com medo que você voltasse para aquele trabalho de loucos. Foi aí, então, que surgiu à nossa frente o homem. Todo em ouro, mas era vivo pois andava e sorria bondoso, amigo. Conhecido seu. Meu, não. Você gritou o nome e correu para ele. Abraçados, muito unidos, eu já não distinguia quem era de ouro, você ou ele. Ambos brilhavam e uma claridade, uma luz intensa tomou conta de tudo. Acordei chorando muito. Contei o sonho aos meus, na mesa do café. Era domingo. Meu cunhado disse: ‘Olhe, Clarice Lispector deve estar hoje no Jornal do Brasil, vou lá fora comprar um para você.’ Daí já comecei com esta vontade de lhe falar. Escrevendo, pelo telefone, de algum modo eu queria lhe falar. Meu cunhado voltou e disse: ‘Ela escreve aos sábados.’ Esperei até o próximo sábado (nos outros dias da semana leio outro matutino). E aquele sábado, o seu jornal fez com que Clarice entrasse, nesta manhã de sol e de friozinho bom de abril, aqui em casa.”
Azalea não ficou apenas na carta. Enviou-me, com a carta, um rapaz novo, puro, límpido: era Domenico, com rosas brancas de trepadeira para mim. Essas rosas são muito misteriosas: quanto mais passa o tempo e elas envelhecem, mais perfumadas ficam. Telefonei para Azalea contando e ela disse que essas rosas são assim mesmo e vai me dar de presente uma muda da planta para eu pôr no meu terraço, perto das grades, para elas poderem subir e perfumar a minha vida. (Agora, por falar em perfume, senti tanta saudade, que fui para o meu quarto e passei Scandal de Lanvin pelos meus cabelos. E, como tenho cabelos claros, imaginei que tinham ficado de ouro, como no sonho de Azalea.)
Fiquei impressionada com o sonho e só sei que ele é simbólico. Perguntarei a um feiticeiro amigo meu – psicanalista – que interpretação dar ao ouro, e também à minha frase sobre ouro e pão. E eis que cheia de alegria lembrei-me de que pão tem a riqueza do trigo.

Clarice Lispector, em Todas as crônicas

Dona quente


Monk entrou. Ali dentro estava muito empoeirado e mais escuro que nos lugares habituais. Ele foi até a outra ponta do balcão e sentou-se junto a uma lourona que fumava um cigarillo e tomava um Hamm’s. Ela soltou um peido quando Monk se sentou.
Boa-noite – ele disse –, eu me chamo Monk.
Eu me chamo Mud – ela disse.
Quando Monk se sentou, um esqueleto levantou-se atrás do balcão, onde estivera sentado num tamborete. Aproximou-se de Monk, que pediu um uísque com gelo, e estendeu as mãos e pôs-se a servir a bebida. Derramou um bocado de uísque no balcão, mas conseguiu servir e pegar o dinheiro de Monk, colocá-lo na caixa e trazer o troco.
Que é que há? – perguntou Monk à dona. – Não conseguem arranjar empregados sindicalizados por aqui?
Ah, foda-se – disse a dona. – Esse é o truque de Billy. Não está vendo os arames? Ele opera essa coisa com arames. Acha isso muito engraçado.
Este lugar é estranho – disse Monk. – Fede à morte.
A morte não fede – disse a dona. – Só os vivos fedem, só os agonizantes fedem, só os podres fedem. A morte não fede.
Uma aranha baixou num fio invisível entre eles e girou lentamente. Era dourada na luz mortiça. Depois tornou a subir por seu fio e desapareceu.
Primeira aranha que vejo num bar – disse Monk.
Ela se alimenta das moscas de bar[1] – disse a dona.
Nossa, este lugar está cheio de piadas grosseiras.
A dona peidou.
Um beijo pra você – disse.
Obrigado – disse Monk.
Um bêbado no outro lado do balcão pôs dinheiro na vitrola automática e o esqueleto saiu de trás do balcão, dirigiu-se à dona e fez uma mesura. A dona levantou-se e dançou com o esqueleto. Os dois rodavam e rodavam. As únicas pessoas que se via no bar eram a dona, o esqueleto, o bêbado e Monk. Era uma noite fraca. Monk acendeu um Pall Mall e atacou o seu drinque. A música acabou e a dona voltou e sentou-se ao lado de Monk.
Eu me lembro – disse a dona – quando todas as celebridades vinham aqui. Bing Crosby, Amos e Andy, os Três Patetas. Este lugar realmente tinha bossa.
Prefiro assim – disse Monk.
A vitrola recomeçou.
Quer dançar? – perguntou a dona.
Por que não? – disse Monk.
Levantaram-se e puseram-se a dançar. A dona usava alfazema e cheirava a lilases. Mas era muito gorda e tinha a pele cor de laranja e a dentadura postiça parecia mastigar silenciosamente um camundongo morto.
Este lugar me lembra Herbert Hoover – disse Monk.
Hoover foi um grande homem – disse a dona.
O diabo – disse Monk. – Se Frank D. não tivesse aparecido, nós todos teríamos morrido de fome.
Frank D. nos meteu na guerra – disse a dona.
Bem – disse Monk –, tinha de nos proteger das hordas fascistas.
Não me fale de hordas fascistas – disse a dona. – Meu irmão morreu lutando contra Franco na Espanha.
Brigada Abraham Lincoln? – perguntou Monk.
Brigada Abraham Lincoln – disse a dona.
Estavam dançando muito apertados e a dona de repente enfiou a língua na boca de Monk. Ele empurrou-a de volta com a sua. Ela tinha gosto de selos velhos e camundongo morto. A música acabou. Eles sentaram-se.
O esqueleto aproximou-se. Trazia uma vodca com laranja numa das mãos. Parou diante de Monk e jogou a vodca com laranja na cara dele, depois se afastou.
Que é que há com ele? – perguntou Monk.
É muito ciumento – disse a dona. – Me viu beijar você.
Você chama aquilo de beijo?
Já beijei alguns dos maiores homens de todos os tempos.
Imagino que sim, tipo Napoleão, Henrique VIII e César.
A dona peidou.
Um beijo pra você – disse.
Obrigado – disse Monk.
Acho que estou ficando velha – disse a dona. – Sabe, a gente fala de preconceitos, mas nunca do preconceito que todo mundo tem contra os velhos.
É... – disse Monk.
Mas eu não sou velha mesmo – disse a dona.
Não – disse Monk.
Ainda menstruo – disse a dona.
Monk fez um aceno para o esqueleto pedindo mais dois drinques. A dona passou para uísque com gelo. Os dois tomaram uísque com gelo. O esqueleto voltou e sentou-se.
Sabe – disse a dona –, eu estava lá quando o Babe errou duas rebatidas e apontou para o muro e no próximo arremesso mandou a bola por cima do muro.
Eu achava que isso era um mito – disse Monk.
Mito uma merda – disse a dona. – Eu estava lá. Eu vi.
Sabe – disse Monk –, isso é ótimo. Você sabe que são as pessoas excepcionais que fazem o mundo girar. Eles mais ou menos fazem milagres pra gente, enquanto a gente fica sentado sobre o rabo.
É... – disse a dona.
Ficaram sentados, bicando seus drinques. Ouviam lá fora o trânsito subindo e descendo o Hollywood Boulevard. O som era constante, como a maré, como as ondas, quase como um oceano, e era um oceano: tinha tubarão lá fora, e barracuda e água viva e polvo e peixe otário e baleias e moluscos e esponjas e peixe-rei e coisas assim. Do lado de dentro, parecia mais um tanque de peixes separado.
Eu estava lá – disse a dona – quando Dempsey quase assassinou Willard. Jack tinha acabado de sair dos vagões e estava mau e faminto como um tigre. Nunca vimos nada assim antes ou depois.
Você diz que ainda menstrua?
Certo – disse a dona.
Dizem que Dempsey punha cimento ou gesso nas luvas, dizem que ele as encharcava na água e deixava endurecer, por isso que estourou Willard daquele jeito – disse Monk.
Isso é uma porra duma mentira – disse a dona. – Eu estava lá, eu vi as luvas.
Eu acho que você é maluca – disse Monk.
Também achavam que Joana d’Arc era maluca – disse a dona.
Suponho que você viu Joana d’Arc ser queimada – disse Monk.
Eu estava lá – disse a dona. – Eu vi.
Cascata – disse Monk.
Ela foi queimada. Eu vi ela ser queimada. Foi tão horrível, e lindo.
Que era que tinha de lindo?
A maneira como ela foi queimada. Começou pelos pés. Era como um ninho de chamas vermelhas subindo pelas pernas dela, e depois parecia uma cortina vermelha de chamas, e ela de rosto erguido, e a gente sentia o cheiro da carne queimando e ela continuava viva mas não gritava.
Bobagem – disse Monk –, qualquer um gritaria.
Não – disse a dona –, nem todo mundo gritaria. As pessoas são diferentes.
Carne é carne, dor é dor – disse Monk.
Você subestima o espírito humano – disse a dona.
É... – disse Monk.
A dona abriu a bolsa.
Aqui, olhe, vou lhe mostrar uma coisa.
Tirou uma caixa de fósforos, acendeu um e estendeu a palma da mão. Segurou o fósforo embaixo da mão e deixou-o arder até apagar-se. Sentia-se um cheiro doce de carne assada.
Muito bem – disse Monk –, mas não é o corpo todo.
Não importa – disse a dona –, o princípio é o mesmo.
Não – disse Monk –, não é a mesma coisa.
Bolas – disse a dona.
Levantou-se e pôs um fósforo na bainha do vestido lavanda. O material era fino, tipo gaze, e as chamas começaram a arder em torno das pernas dela e depois a subir para a cintura.
Nossa mãe – disse Monk. – Que diabos você está fazendo?
Provando um princípio – disse a dona.
As chamas subiam mais. Monk saltou do banquinho e atacou a dona. Rolou-a várias vezes no chão, batendo no vestido com as mãos. Aí o fogo apagou-se. A dona voltou ao banquinho do bar e ficou lá sentada. Monk sentou-se ao lado dela, tremendo. O garçom aproximou-se. Vestia uma camisa branca limpa, colete preto, gravatinha borboleta, calças listradas azul e branco.
Desculpe, Maude – ele disse à dona –, mas você tem de ir embora. Já bebeu bastante esta noite.
Tudo bem, Billy – disse a dona, e terminou o seu drinque, levantou-se e saiu pela porta.
Antes de sair, deu boa-noite ao bêbado na outra ponta do balcão.
Deus do céu – disse Monk –, ela é exagerada demais, porra.
Ela fez o número de Joana d’Arc de novo? – perguntou o garçom.
Diabos, você viu, não viu?
Não, eu estava conversando com Louie. – Apontou o bêbado na ponta do balcão.
Eu achava que você estava lá em cima, puxando os arames.
Que arames?
Os arames do esqueleto.
Que esqueleto? – perguntou o garçom.
Ora, vamos – disse Monk –, não me venha com essa merda.
De que você está falando?
Tinha um esqueleto aqui servindo drinques. Ele até dançou com Maude.
Eu estive aqui a noite toda, cara – disse o garçom.
Eu disse: “Não me venha com essa merda!”
Eu não estou fazendo isso – disse o garçom. – Voltou-se para o bêbado na outra ponta do bar. – Escuta, Louie, você viu um esqueleto aqui dentro?
Um esqueleto? – perguntou Louie. – De que você está falando?
Diga a este homem que eu estive bem aqui atrás do balcão a noite toda – disse o garçom.
Billy esteve aqui a noite toda, cara. E nenhum de nós viu esqueleto algum.
Me dê outro uísque com gelo – disse Monk. – Depois eu me mando daqui.
O garçom trouxe o uísque on the rocks. Monk bebeu-o e depois se mandou.

Charles Bukowski, em Num Fria

A enigmática Laerte

1583 – Santiago do Chile

Foi livre por um instante

Ergue-se sobre as mãos e cai de bruços. Quer apoiar um cotovelo e escorrega. Consegue enterrar um joelho e afunda no barro.
De cara contra o barro, debaixo da chuva, chora.
Hernando Maravilla não tinha chorado durante os duzentos açoites que recebeu nas ruas de Lima a caminho do porto, e nem uma lágrima foi vista em sua cara enquanto recebia outras duzentas chibatadas aqui em Santiago.
Agora é açoitado pela chuva que arranca seu sangue seco e o barro dos tombos.
Desgraçado! Assim mordes a mão que te alimenta! – disse a dona, dona Antonia Nabía, viúva de longo luto, quando foi devolvido o escravo fugido.
Hernando Maravilla tinha escapado porque um dia viu uma mulher bela como uma bandeira e não teve mais remédio a não ser seguir seus passos. Foi agarrado em Lima e interrogado pela Inquisição. Foi condenado a quatrocentos açoites por ter dito que os casamentos os fez o diabo e que não era nada o bispo e que cagava para o bispo.
O que nasceu na África, neto de mago, filho de caçador, se retorce e chora, com as costas em carne viva, enquanto a chuva cai sobre Santiago do Chile.

Eduardo Galeano, em Os Nascimentos

Golden Slumbers | Paul McCartney e John Lennon




Once there was a way to get back homeward
Once there was a way to get back home
Sleep, pretty darling, do not cry
And I will sing a lullaby
Golden slumbers fill your eyes
Smiles awake you when you rise
Sleep, pretty darling, do not cry
And I will sing a lullaby

Pouca gente sabe, mas “Golden Slumbers” é uma velha canção vitoriana inspirada num poema do dramaturgo elisabetano Thomas Dekker. Um dia me deparei com essa letra numa partitura de piano quando eu estava em Liverpool. Meu pai tinha se casado de novo, com uma senhora que tinha uma filha, Ruth. A minha madrasta e Ruth tocavam um pouco de piano. Até mesmo naquela época, eu sempre espiava dentro do assento do piano, porque o pessoal guardava as partituras ali dentro. Foi ali que achei “Golden Slumbers” pela primeira vez.
Na época em que a canção original foi escrita, os discos não eram facilmente disponíveis, e o povo tinha que fazer seu próprio entretenimento. Você fica imaginando um salão vitoriano com uma bela jovem se erguendo para cantar, acompanhada de um bem-apessoado rapaz. Às vezes, podia ser o contrário. Por conta dessa tradição, muitas casas tinham piano, e as partituras de canções faziam sucesso incrível, como “Alexander’s Ragtime Band”, de Irving Berlin, que vendeu milhões. Por um bom tempo, as pessoas conheciam as canções novas por meio das partituras em volta do piano da família.
Meu pai era o pianista da família e, curiosamente, comprou o nosso piano vertical na loja de Harry Epstein, a North End Music Store – também conhecida como NEMS –, em Everton. O filho de Harry cresceu e se tornou Brian, o empresário dos Beatles. Aquele piano vertical ficava em nossa sala na Forthlin Road e foi onde eu compus coisas como “When I’m Sixty-Four”. Mas papai não queria me ensinar a tocar: ele queria que eu aprendesse piano de um modo mais formal. Ele não se achava bom o suficiente e, como meus pais nutriam aspirações para nós, ele queria que eu tivesse “aulas de verdade”. Frequentei umas aulas de tempos em tempos, mas acabei me tornando praticamente autodidata, assim como ele. Eu achava as aulas muito restritivas e chatas. Muito mais interessante que praticar escalas era inventar canções.
Que eu saiba, papai só compôs uma canção: “Walking in the Park with Eloise”. Nos anos 1970, nós a gravamos com o Wings em Nashville, para que eu pudesse tocá-la para ele, e a lançamos como um single sob o nome The Country Hams. Convidei amigos como Chet Atkins e Floyd Cramer para tocar. Mais tarde, contei a ele: “Pai, sabe aquela canção que o senhor escreveu?”. E ele falou: “Não escrevi canção alguma, filho”. Protestei: “Claro que escreveu. Sabe, ‘Walking in the Park with Eloise’?”. E ele disse: “Não, eu não a escrevi. Eu a inventei”.
Em nossa casa, a música era um grande acontecimento. Freddie Rimmer, o amigo do pai na bolsa de comércio de algodão, tocava piano na família dele. Então sempre tinha alguém por perto que sabia tocar piano, e isso era uma coisa maravilhosa, porque do nada as pessoas começavam a cantar, como nos musicais. Depois da Primeira Guerra Mundial, quando meu pai era jovem, a indústria fonográfica se ampliou, e os discos se popularizaram. E o modo como as pessoas ouviam música foi mudando. Mas a tradição se manteve nas festas de Ano-Novo, e sempre, na casa dos McCartney, era aquela “função”. A bebida e o som do piano fluíam com a mesma intensidade. Todos se reuniam em torno do piano enquanto a criançada corria pela casa.
Para um menino como eu, isso sempre foi uma coisa maravilhosa. Ao piano, alguém tocava aquelas canções antigas que todo mundo conhecia, principalmente as tias; as tias sabiam as letras na ponta da língua. E a camaradagem de todo o pessoal em pé numa sala, se embriagando e entoando essas canções! Era muito especial, uma atmosfera parecida com a do bailinho do conto “Os mortos”, de James Joyce. Em minha infância, sempre achei que a família McCartney era simples, mas agora percebo a sorte que eu tive de crescer nesse tipo de família, em que as pessoas eram decentes, boas e amigáveis. Não éramos ricos: ninguém tinha dinheiro, mas isso era quase uma vantagem, porque tinham que fazer tudo por conta própria.
Gostei muito da letra de “Golden Slumbers” naquela partitura, e comecei a elaborar uma melodia para ela. É o que podemos generosamente chamar de samplear, ou, possivelmente, roubar. Mas, como eu não leio partituras, eu não sabia a melodia original, então criei outra. É bem possível que eu estivesse me sentindo deprimido em Londres. Ali estava eu, no aconchego familiar de Liverpool, mas às voltas com os problemas dos Beatles lá no sul, talvez pensando: “Não seria bom voltar pra casa e ter de novo aquela sensação reconfortante?”. No fundo talvez tenha havido um pouco disso. Não descarto essa possibilidade.
Quando escrevi a canção, fazia muito tempo que eu não voltava para casa, em Liverpool. Mas agora lá estava eu, em casa, ou melhor, na casa do meu pai, uma casa que comprei para ele quando comecei a ganhar dinheiro – uma casa estilo Tudor, de cinco quartos, em Heswall, perto do rio Dee. Mesmo assim, era Liverpool e era “voltar pra casa”. Por isso, acrescentei: “Once there was a way to get back homeward/ Once there was a way to get back home”. A canção acabou se tornando muito emotiva, e acho que foi isto que me atraiu nesta letra: essa ideia de ninar um neném ou ler uma história para as crianças.
Sleep, pretty darling, do not cry/ And I will sing a lullaby”. Esses versos representam algo com um sentimento parecido – as falas que pais e mães costumam dizer aos filhos para acalmá-los na infância. Uma das coisas que eu adoro ao compor canções, e ao incluir versos assim, é assistir a um filme ou ouvir o rádio ou algo assim, e ser surpreendido com a canção sendo interpretada por outra pessoa. Sinal de que acharam a canção comovente. Eu simplesmente adoro isso. Um filme recente – um filme de animação chamado Sing: quem canta seus males espanta – usa “Golden Slumbers” na sequência inicial, e é muito poderoso, e depois a canção volta no final, quando você já viu a história toda e tudo deu certo.
Às vezes, o pessoal me pergunta se eu me importo que façam versões diferentes de minhas canções ou se estou preocupado que o significado original seja distorcido. E respondo: “Não, longe disso. Adoro ouvir outra interpretação de uma de minhas canções”. É um elogio o fato de alguém ter pensado o suficiente na canção para querer fazer uma cover. E o sensacional é que a próxima geração, se tiver assistido ao filme, agora vai conhecer “Golden Slumbers”.
Melhor ainda é saber que meu pai ouviu esta canção. Faleceu sete anos depois. Mas viveu o suficiente para saber a grande influência que exerceu em minha vida.

Paul McCartney, em As Letras: 1956 até o presente

quinta-feira, 28 de agosto de 2025

Marcelo Dai | Negro Gato

Inutensílio

O poema é antes de tudo um inutensílio.
Hora de iniciar algum
convém se vestir roupa de trapo.

Há quem se jogue debaixo de carro
nos primeiros instantes.

Faz bem uma janela aberta
uma veia aberta.

Pra mim é uma coisa que serve de nada o poema
enquanto vida houver.

Ninguém é pai de um poema sem morrer.

Manoel de Barros, em Meu quintal é maior do que o mundo 

A Copa e a Cópula




Bar da Maria, tarde I d.C. (depois da Copa). Ligeira depressão, aliviada pelas cervejinhas. Feito esses lenços que mágico vagabundo tira da cartola, uma historinha de casamento em crise puxava outra. Baiano resumiu o clima:
A dimensão da crise num casamento pode ser medida pela resposta que seu Ernesto deu pra cara-metade.
Môa suspirou:
De novo ?
Entende-se a falta de saco do Môa. É a pentelhésima vez que o Baiano conta esse troço, uma espécie de carro-chefe dele. Mas vale a pena ver de novo. A mulher do seu Ernesto fez uma sopa e perguntou ao marido, sujeito extremamente malhumorado, se ele queria um pouco. Recebeu como resposta um resmungo de assentimento. Na ânsia de agradar a pobrezinha fez a pergunta fatal : “Quer no prato?”.
Seu Ernesto virou a boca de bazuca na direção da infeliz e não perdoou:
Não. Quero no prato não. Joga no chão e vem varrendo.
Rimos pra não perder o amigo. Mas a história teve um efeito colateral. O Cascudo, um rapaz mineiro que só toma/a genebra e jamais abria a boca pra falar de si mesmo, fitou o pôster do Vasco e desfiou o seu drama, de mansinho:
Minha senhora vivia reclamando que a vida andava sem graça. Chorava pelos canto. Tinha uma dor de cabeça braba. Eu não sabia o que fazer. Ela descascava as batata gemeno de dar dó. Me olhava com os óio cheio de lágrima e dizia que nossa vidinha no dia-a-dia estava isfriando a paxão, arruinando o romantismo dos tempo de namoro. Quando o Brasil perdeu pra Argentina resolvi virar a mesa.Tomei uma canjibrina extra aqui na Maria, e fui pra casa antis da hora bitual. Miti a chave na fechadura e girei bem divagá.
Entrei em casa na pontinha dos pé. Ela tava no quarto, sentada na cama só com a parte de cima do beibidor, mexendo na caixa de custura. Aquele misto de trem doméstico e nudez buliu comigo, atiçou meus brio. Olhei os cabelo dela começano a ficar grisáio, as coxa mais grossa por causa de um aumentim de peso, os óculo meia-taça inquilibrado na ponta do nariz... Fiquei doidim. Ela sentiu minha presença, se assustou, começou a se levantar, mas eu dei um impurrão nos peito dela, joguei ela na cama, rasguei de cima baixo a brusa de um puxão só e pulei em cima dela que nem um gato. Ela gritou com uma voz que eu não cunhecia, uma coisa forte, doida. Tentou falar arguma coisa, mas eu tapei a boca dela anssim ó cum u travissêro e mandei ferro. Me senti um deus grego. Quanto mais ela tentava se sortá, mais eu abafava a cara dela gritano:
É isso que tu queria? Tá gostano? É por causa da minha vara macha que tu tá rebolano des’jeito, é?
E refresquei um pouco a pressão no travesseiro pra ouvir a resposta dela. Uma voz de gelo me disse:
Tô rebolano des’jeito porque tem alfinete demais da conta ispetado na minha bunda, só!

Aldir Blanc, em Brasil passado a sujo

O bom operário

Estava o beato Antônio em oração e jejum quando o sono venceu-o e ele sonhou que do céu descia uma voz que lhe dizia que seus méritos ainda não eram comparáveis aos do curtidor José, de Alexandria. Saiu andando Antônio e surpreendeu o simplório homem com sua presença respeitável. “Não me lembro de ter feito nada de bom — declarou o curtidor —. Sou um servo inútil. Diariamente, ao ver o sol raiar sobre esta grande cidade, penso que todos os seus moradores, do maior ao menos importante, entrarão no céu por sua bondade, menos eu que, por causa dos meus pecados, mereço o inferno. E o mesmo mal-estar me contrista quando vou deitar-me, e cada vez com mais veemência”. “Na verdade, meu filho — observou Antônio — tu, dentro de tua casa, como bom operário, ganhaste descansadamente o reino de Deus, enquanto que eu, irrefletido que sou, consumo minha solidão e ainda não cheguei a tua altura”. Isto posto, voltou Antônio ao deserto e, no primeiro sonho que teve, voltou a baixar a ele a voz de Deus: “Não te angusties; estás perto de mim. Mas não esqueças de que ninguém pode estar seguro nem do próprio destino nem do destino dos outros”.

Vida dos Padres Eremitas do Oriente, em Livro de Sonhos, de Jorge Luís Borges

Libertação

Não há maior euforia, numa orquestra, como a dos pratos — tlin! tlin! tlan!!! — quando se vingam, enfim, do seu longo, do seu forçado silêncio.

Mário Quintana, em Caderno H

Capítulo Segundo | Um certo pé de Laranja Lima



Lá em casa, cada irmão mais velho criava um mais moço. Jandira tomara conta de Glória e de outra irmã que fora dada para ser gente no Norte. Antônio era o quindim dela. Depois Lalá tomara conta de mim até bem pouco tempo. Até ela gostar de mim, depois parece que enjoou ou ficou muito apaixonada pelo namorado dela que era um almofadinha igualzinho ao da música: de calça larga e paletó curtinho. Quando a gente ia aos domingos fazer o footing (o namorado dela falava assim) na Estação, ele comprava bala pra mim que dava gosto. Era para eu não falar nada em casa. Nem também podia perguntar a Tio Edmundo o que era aquilo, senão descobriam…
Meus outros dois irmãozinhos morreram pequenos e eu só ouvi falar deles. Contavam que eram dois bugrezinhos Pinagés. Bem queimadinhos e de cabelos negros e lisos. Por isso que a menina se chamou Aracy e o menino, Jurandyr.
Depois então vinha o meu irmãozinho Luís. Esse quem tomava mais conta dele era Glória e depois eu. Ninguém precisava tomar conta dele, porque menininho mais lindo, bonzinho e quietinho não existia.
Foi por isso que quando ele falou com aquela falinha toda sem errar, e eu que já ia ganhar o mundo da rua, mudei de ideia.
Zezé, você vai me levar ao Jardim Zoológico? Hoje não está ameaçando chuva, não é?
Mas que gracinha, como ele falava tudo direitinho. Aquele menino ia ser gente, ia longe.
Olhei o dia lindo todo de azul no céu. Fiquei sem coragem de mentir. Porque às vezes eu não estava com vontade e dizia:
Tá doido, Luís. Veja só o temporal que vem!…
Dessa vez agarrei a mãozinha e saímos para a aventura do quintal.
O quintal se dividia em três brinquedos. O Jardim Zoológico. A Europa que ficava perto da cerca bem-feitinha da casa de seu Julinho. Por que Europa? Nem meu passarinho sabia. Lá que a gente brincava de bondinho de Pão de Açúcar. Pegava a caixa de botão e enfiava todos eles num barbante (Tio Edmundo falava cordel). Eu pensei que cordel fosse cavalo. E ele explicou que era parecido, mas cavalo era corcel. Depois a gente amarrava uma ponta na cerca e a outra na ponta dos dedos de Luís. Subia todos os botões e soltava devagarzinho um por um. Cada bonde vinha cheio de gente conhecida. Tinha um bem pretão que era o bonde do negro Biriquinho. Não raro ouvia uma voz do outro quintal:
Você não está estragando a minha cerca, Zezé?
Não senhora, D. Dimerinda. Pode ver.
É assim que eu gosto. Brincando bonitinho com o irmão. Não é melhor assim?
Podia ser mais bonito, mas no momento que o meu “padrinho”, o capeta, me empurrava, não podia haver nada mais gostoso do que fazer artes…
A senhora vai me dar uma folhinha no Natal, como no ano passado?
O que você fez da que eu dei?
Pode ir lá dentro ver, D. Dimerinda. Está em cima do saco do pão.
Ela riu e prometeu. O marido dela trabalhava no armazém de Chico Franco.
O outro brinquedo era Luciano. Luís, no começo, tinha um medo danado dele e pedia pra voltar puxando as minhas calças. Mas Luciano era amigo. Quando me via, soltava guinchos fortes. Glória também não queria aquilo, dizendo que morcego é vampiro e chupa sangue de criança.
É não, Godóia. Luciano não é desses. É amigo. Ele me conhece.
Você com essa mania de bicho e de falar com as coisas…
Foi um custo a convencer que Luciano não era um bicho. Luciano era um avião voando no Campo dos Afonsos.
Olhe só, Luís.
E Luciano rodava em volta da gente todo feliz como se compreendesse o que se falava. E compreendia mesmo.
Ele é um aeroplano. Está fazendo…
Embatucava. Precisava pedir de novo para Tio Edmundo repetir aquela palavra. Não sabia se era acorbacia, acrobacia ou arcobacia. Era uma daquelas. Só que não devia ensinar errado ao meu irmãozinho.
Mas agora ele estava querendo o Jardim Zoológico.
Chegamos até perto do galinheiro velho. Dentro, as duas frangas claras estavam ciscando, e a velha galinha preta era tão mansa que a gente até coçava a cabeça dela.
Primeiro vamos comprar os bilhetes de entrada. Dê-me a mão que a criança pode se perder nessa multidão. Viu como está cheio aos domingos?
Ele olhava e começava a enxergar gente por toda a parte e apertava mais minha mão.
Na bilheteria empinei a barriga para a frente e dei um pigarro para ter importância. Meti a mão no bolso e perguntei à bilheteira:
Até que idade criança não paga?
Até cinco anos.
Então uma de adulto, faz favor.
Peguei as duas folhinhas de laranjeira de bilhete e fomos entrando.– Primeiro, meu filho, você vai ver que beleza são as aves. Olhe papagaios, periquitos e araras de todas as cores. Aquelas bem cheias de penas diferentes são as araras arco-íris.
E ele arregalava os olhos extasiado.
Caminhávamos devagar, vendo tudo. Vendo tanta coisa que até eu vi por trás de tudo que Glória e Lalá estavam sentadas no tamborete e descascavam laranjas. Os olhos de Lalá me olhavam de um jeito... Será que já tinham descoberto? Se já, aquele Jardim Zoológico ia acabar em grandes chineladas na bunda de alguém. E só quem podia ser esse alguém era eu.
E agora, Zezé, o que nós vamos visitar?
Novo pigarro e pose.
Vamos passar nas jaulas dos macacos. Tio Edmundo diz sempre, os símios.
Compramos algumas bananas e atiramos aos bichos. A gente sabia que aquilo era proibido, mas como tinha muita multidão, os guardas nem davam conta.
Não se chegue muito perto que eles atiram cascas de banana em você, pequerrucho.
Eu queria era chegar logo nos leões.
Já vamos lá.
Relanceei a vista onde as duas “símias” chupavam laranja. Da jaula dos leões, daria para escutar a conversa.
Chegamos.
Apontei as duas leoas amarelas, bem africanas. Quando ele quis alisar a cabeça da pantera negra…
Que ideia, pequerrucho. Essa pantera negra é o terror do Jardim. Ela veio pra cá porque arrancou dezoito braços de domadores e comeu.
Luís fez uma cara de medo e retirou o braço apavorado.
Ela veio do circo?
Veio.
De que circo, Zezé? Você nunca me contou antes.
Pensei e pensei. Quem que eu conhecia que tinha nome pra circo?
Ah! Veio do circo Rozemberg.
Mas lá não é padaria?
Já estava ficando difícil enganar ele. Começava a ficar muito sabido.
É outro. É melhor sentarmos um pouco e comer a merenda. Andamos muito.
Sentamos e fingimos que comíamos. Mas meu ouvido estava lá, escutando as conversas.
A gente devia aprender com ele, Lalá. Veja só a paciência que ele tem com o irmãozinho.
É, mas o outro não faz o que ele faz. Isso já é maldade. Não é arte.
Tá certo que ele tem o diabo no sangue, mas mesmo assim é engraçado. Ninguém fica com raiva dele na rua, por mais que pinte…
Aqui ele não passa sem tomar umas chineladas. Um dia ele aprende.
Joguei uma flecha de piedade nos olhos de Glória. Ela sempre me salvara e eu sempre prometia a ela que não ia fazer nunca mais…
Mais tarde. Agora não. Eles estão brincando tão quietinhos…
Ela já sabia de tudo. Sabia que eu tinha ido pelo valão e entrado nos fundos do quintal de D. Celina. Fiquei fascinado com a corda de roupa balançando ao vento uma porção de pernas e braços. Aí o diabo me disse que eu podia dar uma queda ao mesmo tempo em todos os braços e pernas. Eu concordei com ele que ia ser muito engraçado. Procurei no valão um caco de vidro bem afiado e subi na laranjeira e cortei a corda com paciência.
Eu quase que caí ao mesmo tempo que aquilo tudo veio abaixo. Um grito e todo mundo correu.
Acode minha gente, que a corda rebentou.
Mas uma voz, não sei de onde, gritou mais alto.
Foi aquela peste do menino de seu Paulo. Eu vi ele trepando na laranjeira com um caco de vidro…
Zezé?
Que é, Luís?
Conte pra mim como é que você sabe tanta coisa do Jardim Zoológico?
Já visitei muitos na vida.
Mentia, tudo o que eu sabia era Tio Edmundo quem me contara e até me prometera me levar lá um dia. Mas ele andava tão devagarzinho que quando a gente chegasse lá, já não existia mais nada. Totoca fora uma vez com Papai.
O que eu gosto mais é o da Rua Barão de Drummond, na Vila Isabel. Você sabe quem foi o Barão de Drummond? Claro que você não sabe. É muito criança para saber dessas coisas. O tal Barão devia ser muito amigo de Deus. Porque foi ele que ajudou Deus a criar o jogo de bicho e o Jardim Zoológico. Quando você ficar maiorzinho…
As duas continuavam lá.
Quando eu ficar maiorzinho o quê?– Ai que criança perguntadeira. Quando você chegar lá, eu ensino os bichos e o número dos bichos. Até o número vinte. Do número vinte até o número vinte e cinco, eu sei que tem vaca, touro, urso, veado e tigre. Não sei direito o lugar deles, mas vou aprender para não ensinar errado.
Ele estava se cansando do brinquedo.
Zezé, cante pra mim a Casinha Pequenina.
Aqui no Jardim Zoológico? Tem muita gente.
Não. A gente já veio s’imbora…
É muito grande a letra. Vou cantar só o pedaço que você gosta.
Sabia que era onde falava de cigarras.
Abri o peito.

Você sabe de onde eu venho
É de uma casinha que tenho
Fica junto de um pomar…
É uma casa pequenina
Lá no alto da colina
E se vê ao longe, o mar…

Pulei uma porção de versos.

Entre as palmeiras bizarras
Cantam todas as cigarras
Ao pôr de oiro do sol.
Do beiral vê-se o horizonte.
No jardim canta uma fonte
E na fonte um rouxinol…

Parei. Elas continuavam firmes lá me esperando. Tive uma ideia; ficava cantando ali até chegar de noite. Elas iam acabar desistindo.
Mas qual o quê. Cantei a Casinha toda, repeti, cantei “Por teu afeto passageiro” e até Ramona. As duas letras diferentes que eu sabia de Ramona... e nada. Aí me deu um desespero danado. Era melhor acabar com aquilo. Fui lá.
Pronto, Lalá. Pode me bater.
Virei as costas e ofereci o material. Trinquei os dentes porque a mão de Lalá tinha uma força danada no chinelo.
[…]

José Mauro de Vasconcelos, em O meu pé de laranja lima