Meu querido Vermelindo,
Fiquei muito satisfeito com o que você
me contou sobre o relacionamento desse homem com a mãe. Mas você
deve tirar vantagem disso. O Inimigo irá trabalhar de dentro para
fora, gradualmente corrigindo a conduta do paciente cada vez mais
pelo novo padrão, e pode ser que ele mude o seu comportamento em
relação à senhora idosa a qualquer momento. Seria bom que você
entrasse em cena antes. Mantenha-se em contato íntimo com nosso
colega Maldadiposo, que está encarregado da mãe, e construam um
hábito consistente de irritação mútua, de pequenas azucrinações
diárias. Os seguintes métodos são de grande ajuda:
1. Mantenha a mente dele focada na
vida interior. Ele pensa que a sua conversão é algo que ocorreu
dentro dele e que sua atenção, por isso mesmo, está voltada
para os estados atuais do seu próprio espírito — ou, antes, para
a versão muito expurgada deles, que é tudo o que você deve
permitir que ele veja. Encoraje isso. Mantenha a mente dele longe dos
deveres mais elementares, direcionando-a para os mais avançados e
espirituais. Agrave essa característica mais humana, mais útil de
todas, o horror e a negligência ao óbvio. Você deve levá-lo a uma
condição em que ele possa praticar o autoexame por uma hora sem
descobrir nenhum desses fatos sobre si mesmo, que são perfeitamente
claros para qualquer um que já viveu na mesma casa que ele ou
trabalhou no mesmo escritório.
2. Sem dúvida, é impossível evitar
que ele ore pela mãe, mas temos meios de tornar essas orações
inócuas. Certifique-se de que elas sejam sempre muito “espirituais”,
que ele sempre se preocupe com o estado da alma da mãe, e nunca com
o reumatismo dela. Há duas vantagens nisso. Em primeiro lugar, sua
atenção ficará concentrada no que ele considera serem os pecados
dela, pelo que, com um pouco de orientação da sua parte, ele poderá
ser induzido a considerar pecado as ações da mãe que julga
inconvenientes ou irritantes. Assim, você pode continuar a esfregar
as feridas do dia de forma um pouco mais forte, mesmo enquanto ele
estiver de joelhos; a operação é muito fácil e você vai achá-la
bastante divertida. Em segundo lugar, já que as ideias dele sobre a
alma da mãe serão muito rudimentares e muitas vezes errôneas, ele
estará, até certo ponto, orando por uma pessoa imaginária, e a sua
tarefa será tornar essa pessoa imaginária todos os dias cada vez
menos parecida com a mãe real — a senhora idosa de língua afiada
à mesa do café da manhã. Com o passar do tempo, a divisão que
você causou entre eles será tamanha que nenhum pensamento ou
sentimento de suas orações pela mãe imaginária alcançará ou
servirá de ajuda à mãe verdadeira. Eu já tive tamanho controle
sobre alguns de meus pacientes que era possível fazê-los levantar
da oração pela alma da esposa ou do filho para ir bater na esposa
ou no filho reais ou mesmo insultá-los sem o menor escrúpulo.
3. Quando dois seres humanos vivem
juntos por muitos anos, é comum que cada um adquira tons de voz e
expressões faciais que são quase insuportavelmente irritantes para
o outro. Explore bem isso. Faça-o ficar prestando atenção nas
sobrancelhas erguidas da mãe, que ele aprendeu a detestar na
infância, e faça com que ele fique refletindo sobre o quanto isso o
aborrece. Faça-o partir do pressuposto de que ela sabe o quanto isso
é irritante e que o faz para irritá-lo — se você souber fazer o
seu serviço direitinho, ele não notará a imensaimprobabilidade de
sua suposição. E, é claro, nunca o deixe suspeitar de que ele
mesmo tenha tons, caras e bocas que também são capazes de
irritá-la. Como ele não pode ver ou ouvir a si mesmo, isso é fácil
de conseguir.
4. Na vida civilizada, o ódio
doméstico usualmente se expressa dizendo coisas que pareceriam bem
inofensivas no papel (as palavras em si não são ofensivas),
mas que, ditas naquele tom de voz, ou naquele momento, não estarão
longe de parecer um tapa na cara. Para manter esse jogo em andamento,
você e Maldadiposo devem cuidar para que cada um desses tolos tenham
dois pesos e duas medidas. Seu paciente deve demandar que todos os
seus pronunciamentos sejam tomados literalmente e julgados
simplesmente com base nas palavras reais; ao mesmo tempo, ele deve
julgar todos os pronunciamentos da mãe com a interpretação mais
completa e supersensível do tom, do contexto e da intenção
suspeita. Ela deve ser encorajada a fazer o mesmo com ele. Assim,
eles podem sair de toda briga convencidos, ou bem perto de estarem
convencidos, de que eles são os inocentes da história. Você
conhece bem esse tipo de coisa: “Basta perguntar quando o jantar
ficará pronto, que ela logo tem um chilique”. Uma vez que esse
hábito estiver bem consolidado, você terá a prazerosa situação
em que um ser humano diz coisas com o propósito expresso de ofender
e, ainda assim, queixa-se quando é ele o ofendido.
Enfim, conte-me algo sobre o
posicionamento religioso da velha senhora. Será que ela está com
alguma espécie de ciúme do novo fator na vida do filho? — no
caso, sentindo-se ofendida pelo fato de ele aprender com outros, e
tão tarde, aquilo que ela acha que deu a ele oportunidades de
aprender na infância? Será que ela sente que ele está fazendo
muito fuzuê em torno disso — ou que ele está aceitando tudo
tranquilo demais? Você se lembra do irmão mais velho na história
do Inimigo, não é mesmo?
Com carinho,
Seu tio, Maldanado
C. S. Lewis, em Cartas de um diabo a seu aprendiz

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