53.
Quando, como uma noite de tempestade a
que o dia se segue, o cristianismo passou de sobre as almas, viu-se o
estrago que, invisivelmente, havia causado; a ruína, que causara, só
se viu quando ele passara já. Julgaram uns que era pela sua falta
que essa ruína viera; mas fora pela sua ida que a ruína se
mostrara, não que se causara.
Ficou, então, neste mundo de almas, a
ruína visível, a desgraça patente, sem a treva que a cobrisse do
seu carinho falso. As almas viram-se tais quais eram.
Começou, então, nas almas recentes
aquela doença a que se chamou romantismo, aquele cristianismo sem
ilusões, aquele cristianismo sem mitos, que é a própria secura da
sua essência doentia.
O mal todo do romantismo é a confusão
entre o que nos é preciso e o que desejamos. Todos nós precisamos
das coisas indispensáveis à vida, à sua conservação e ao seu
continuamento; todos nós desejamos uma vida mais perfeita, uma
felicidade completa, a realidade dos nossos sonhos e É humano querer
o que nos é preciso, e é humano desejar o que não nos é preciso,
mas é para nós desejável. O que é doença é desejar com igual
intensidade o que é preciso e o que é desejável, e sofrer por não
ser perfeito como se se sofresse por não ter pão. O mal romântico
é este: é querer a lua como se houvesse maneira de a obter.
“Não se pode comer um bolo sem o
perder.”
Na esfera baixa da política, como no
íntimo recinto das almas — o mesmo mal.
O pagão desconhecia, no mundo real,
este sentido doente das coisas e de si mesmo. Como era homem,
desejava também o impossível; mas não o queria. A sua religião
era e só nos penetrais do mistério, aos iniciados apenas, longe do
povo e dos eram ensinadas aquelas coisas transcendentes das religiões
que enchem a alma do vácuo do mundo.
Fernando Pessoa, em Livro do Desassossego
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