sexta-feira, 30 de junho de 2023
Névoa
کره
اسبی سفید،
از
مه میآید
و
ناپدید میشود
در
مه.
Um
potro branco
vem
da névoa
e
se esvai
na
névoa.
Abbas Kiarostami, in Nuvens de algodão
Capítulo 77 | Entrevista
Virgília
entrou risonha e sossegada. Os tempos tinham levado os sustos e
vexames. Que doce que era vê-la chegar, nos primeiros dias,
envergonhada e trêmula! Ia de sege, velado o rosto, envolvido numa
espécie de mantéu, que lhe disfarçava as ondulações do talhe. Da
primeira vez deixou-se cair no canapé, ofegante, escarlate, com os
olhos no chão; e, palavra! em nenhuma outra ocasião a achei tão
bela, talvez porque nunca me senti mais lisonjeado.
Agora,
porém, como eu dizia, tinham acabado os sustos e vexames; as
entrevistas entravam no período cronométrico.
A
intensidade de amor era a mesma; a diferença é que a chama perdera
o tresloucado dos primeiros dias para constituir-se um simples feixe
de raios, tranquilo e constante, como nos casamentos.
– Estou
muito zangada com você, disse ela sentando-se.
– Porquê?
– Porque
não foi lá ontem, como me tinha dito. O Damião perguntou muitas
vezes se você não iria, ao menos, tomar chá. Por que é que não
foi?
Com
efeito, eu havia faltado à palavra que dera, e a culpa era toda de
Virgília. Questão de ciúmes. Essa mulher esplêndida sabia que o
era, e gostava de o ouvir dizer, fosse em voz alta ou baixa. Na
antevéspera, em casa da baronesa, valsara duas vezes com o mesmo
peralta depois de lhe escutar as cortesanices, ao canto de uma
janela. Estava tão alegre! tão derramada! tão cheia de si! Quando
descobriu, entre as minhas sobrancelhas, a ruga interrogativa e
ameaçadora, não teve nenhum sobressalto, nem ficou subitamente
séria; mas deitou ao mar o peralta e as cortesanices.
Veio
depois a mim, tomou-me o braço, e levou-me até outra sala, menos
povoada, onde se me queixou de cansaço, e disse muitas outras
coisas, com o ar pueril que costumava ter, em certas ocasiões, e eu
ouvi-a quase sem responder nada.
Agora
mesmo, custava-me responder alguma coisa, mas enfim contei-lhe o
motivo da minha ausência... Não, eternas estrelas, nunca vi olhos
mais pasmados. A boca semiaberta, as sobrancelhas arqueadas, uma
estupefação visível, tangível, que se não podia negar, tal foi a
primeira réplica de Virgília; abanou a cabeça com um sorriso de
piedade e ternura, que inteiramente me confundiu.
– Ora
você!
E
foi tirar o chapéu, lépida, jovial, como a menina que torna do
colégio; depois veio a mim, que estava sentado, deu-me pancadinhas
na testa, com um só dedo, a repetir: - Isto, isto; – e eu não
tive remédio senão rir também, e tudo acabou em galhofa. Era claro
que me enganara.
Machado de Assis, in Memórias Póstumas de Brás Cubas
A carga do O-fune-sama
[...]
Os
barcos permaneceram ao redor do navio por algum tempo antes de
começar a transportar o que parecia ser a carga do navio para a
praia. Essa atividade se tornou mais intensa à medida que os
barquinhos faziam o percurso entre a praia e o navio.
As
velas sem vida foram removidas e o mastro cortado e lançado na água.
Um dos barcos se dirigiu para o ponto onde o mastro flutuava e o
rebocou para a praia. A carga foi empilhada na praia e parecia
realmente ser composta de fardos de arroz.
Sentindo
fome, Isaku comeu alguns dos feijões que tinha trazido.
— É
uma carga e tanto — disse Gonsuke, a voz trêmula enquanto olhava
para baixo.
— Isso
é mais do que outros O-fune-sama do passado? — perguntou
Isaku.
— Houve
alguns navios bem grandes, mas esse volume de carga não é comum. Há
muita coisa ali na praia, e ainda não tiraram tudo do navio.
Os
olhos de Gonsuke brilhavam de excitação. Sem dúvida, ele sabia o
que estava falando, já que exercia a função de vigia toda vez que
O-fune-sama aparecia. Isaku sentiu o excitamento crescer
dentro de si ao pensar na excepcional quantidade de carga.
— O
que você acha que tem a bordo? — perguntou ele.
— Bem,
antes de mais nada, deve haver arroz, e talvez mercadorias como
feijão, tecidos, louça, tabaco, papel para escrever, óleo e
açúcar. Uma vez houve um barco que carregava vinte caixas de vinho
— disse ele, mostrando os dentes lascados ao sorrir.
Por
volta da hora do pôr-do-sol, finalmente pareceu a Isaku que a carga
do navio fora toda removida. A atividade na baía começou a
diminuir, a maioria dos barcos foi empurrada para a areia, e os
habitantes da aldeia começaram a carregar os volumes da praia para a
casa do chefe.
A
neve nas montanhas que se erguiam atrás da aldeia ficaram tingidas
de púrpura antes de dar lugar à noite. Lá embaixo na praia a luz
do fogo subitamente piscou, e a aldeia mergulhou na escuridão.
Isaku
ajudou Gonsuke a cavar na neve profunda que se acumulara por trás de
uma pedra enorme, forrando o interior com folhas secas e grama.
Depois eles cruzaram varetas por cima do buraco e colocaram casca de
árvore por cima, então entraram no buraco e deitaram um de costas
para o outro.
Apesar
da temperatura fria, o ar dentro do buraco foi ficando cada vez mais
quente. Gonsuke começou a roncar.
Isaku
ficou ali deitado no escuro, os olhos bem abertos. Sem dúvida o
chefe da aldeia faria com que os presentes de O-fune-sama
fossem distribuídos igualmente entre todas as famílias, de acordo
com o número de pessoas em cada uma. Como a maior parte da carga com
certeza consistia em arroz, Isaku ficou imensamente feliz com a ideia
de saborear tal delícia. Seu irmão e irmã menores nunca tinham
experimentado arroz, e ele mal podia esperar o momento de servir a
eles sopa de arroz. Podia imaginar como o delicioso gosto adocicado
da sopa branca os deixaria surpresos.
Gonsuke
devia estar certo quanto ao teor da carga, e naturalmente isso queria
dizer que cada família poderia esperar receber uma quantidade
generosa de alimento e outras coisas. Sem quantidade excedente de
saury para vender, e com a fraca pesca de polvos no outono, que
permitira que comprassem apenas uns poucos grãos, a chegada de
O-fune-sama era a salvação da aldeia, e significava o fim do
medo da fome. Se usado de forma adequada, o presente duraria por dois
ou até três anos. Não haveria necessidade de mais pais de família
se venderem como servos, e todos poderiam viver em paz e em segurança
por um bom tempo. Tami ficaria com a família, e Takichi continuaria
a passar seus dias como pescador e pai de seu filho.
Isaku
colocou a mão no peito. A chegada de O-fune-sama devia-se à
intervenção divina, e Isaku queria oferecer uma oração de
gratidão, do fundo do coração.
O
som das ondas quebrando ao pé do promontório parecia reverberar até
o centro da terra. Antes que se desse conta, ele já estava dormindo.
Isaku
acordou sendo sacudido pelo ombro.
Gonsuke
se levantou e afastou os galhos e casca de árvore que cobriam o
buraco. Isaku sentiu o ar frio entrar. Ainda havia estrelas no céu,
mas estavam perdendo o brilho.
Isaku
rastejou para fora do buraco. Gonsuke estava assoprando para reavivar
as brasas do fogo, e em pouco tempo mais galhos estavam queimando.
Isaku
se aqueceu ao fogo enquanto olhava para o mar. O dia nascia, o mar
estava calmo. Lá embaixo, na baía, o trabalho já havia começado;
ele via o que deviam ser tochas instaladas nos barcos que se moviam
na água, assim como no navio naufragado.
Gonsuke
cozinhou dois saury salgados no fogo, entregando um para
Isaku. A gordura pingava do peixe quente, e ele o comeu com os
feijões, o que neutralizou o sabor salgado do saury,
produzindo um gosto incrivelmente bom.
O
dia raiou, e o mar foi envolto na claridade da manhã. Borrifos de
água subiam uns atrás dos outros no costado do navio enquanto
pranchas de madeira e toras eram lançadas na água.
— Parece
que eles estão desmontando O-fune-sama — disse Isaku,
forçando os olhos para ver o que estava acontecendo.
— É
porque o barco é feito de madeira boa. Pode ser usada para qualquer
coisa. Há pregos e dobradiças ali também. E todas as panelas e
jarros da cozinha, sem falar nas facas, baldes e cuias de arroz. Às
vezes eles têm até armários ou baús — disse Gonsuke,
entusiasmado.
Agora
Isaku compreendia por que os mais velhos tinham se preocupado em
pegar serras, machados e enxadas. O navio estava sendo desmontado e a
madeira era lançada na água.
Os
barcos rebocavam a madeira para a praia, onde era empilhada na areia.
Dali seria carregada para a floresta atrás da aldeia.
Isaku
e Gonsuke olharam para o mar; não havia sinal de barcos. Ao leste
podiam ver agora grupos de aves marinhas circulando no ar como flocos
de neve, e os reflexos de um cardume de peixes subindo à superfície
logo abaixo deles. Não se via nenhuma fumaça do outro lado da baía
tampouco, na Ponta da Maré.
Dois
barcos pequenos começaram a se mover, afastando-se do navio e
seguindo na direção do promontório onde Isaku e Gonsuke se
encontravam.
— Eles
estão levando os corpos para longe — explicou Gonsuke.
Isaku
prestou atenção. Podia ver claramente um volume coberto com
esteiras de palha no fundo dos barcos. Finalmente, os barcos sumiram
de vista, um depois do outro, lá embaixo ao pé do cabo.
O
tumulto ao redor do navio continuava, e logo o barco perdeu seu
aspecto original. O trabalho prosseguia depressa, e parte da popa,
onde ficava o leme quebrado, já tinha desaparecido. Isaku viu um
barco carregando as velas.
Logo
depois da Hora do Cavalo, a única parte que restava nas pedras era o
fundo do casco. Havia pessoas em pé no recife trabalhando no navio
com velocidade impressionante.
Quando
a madeira do que pareciam ser beliches foi rebocada, tudo que restou
flutuando na água foram pedaços da quilha. Quando estes foram
rebocados para a praia, os últimos destroços do navio desapareceram
da baía rochosa, deixando nada além de um mar plácido.
— Alguma
vez você viu um barco vindo para cá quando estava de vigia? —
perguntou Isaku, aos poucos perdendo o interesse na atividade lá
embaixo.
— Sim,
eu vi. Dois em um mesmo dia — disse Gonsuke, olhando para o mar.
Um
fio de fumaça ergueu-se no ar.
— É
o sinal de que eles terminaram. É para nós também — disse
Gonsuke, jogando neve no fogo. — Vamos descer e dar uma olhada no
que eles conseguiram. Parecia ser um casco de bom tamanho —
acrescentou ele, balançando o machado que foi equilibrado no ombro.
Isaku
seguiu Gonsuke pela floresta, contornando as árvores enquanto se
esforçava para acompanhar os passos rápidos do outro. Animado, ele
sentia como se estivesse flutuando no ar. Sem dúvida sua mãe e
Isokichi tinham trabalhado o dia todo junto com os outros da aldeia.
Ele
queria tomar parte na animação da vila o mais depressa possível.
Quando chegaram à trilha na montanha, Gonsuke, com o machado no
ombro, apressou o passo, começando a correr, com Isaku logo atrás,
impaciente para ver os presentes que O-fune-sama havia
trazido.
Saindo
do meio das árvores, eles avistaram a praia lá embaixo, à direita.
Esperavam ver as pessoas dançando e comemorando, mas em vez disso
todos estavam imóveis perto da água. Surpreso, Isaku parou de
correr por um segundo, mas, como Gonsuke continuou em frente encosta
abaixo, ele o seguiu.
Gonsuke
deixou a trilha e entrou na praia. Ofegante, Isaku caminhou até onde
todos se encontravam.
Os
habitantes da aldeia estavam reunidos ao redor do chefe, as palmas
unidas, olhando para o mar. Isaku finalmente compreendeu que estavam
oferecendo preces em agradecimento pelos presentes que o mar
trouxera. Quando o chefe da aldeia terminou a oração, o velho
parado ao lado dele virou-se para os outros e com a voz animada
disse:
— Muito
bem. Seu trabalho deixou o chefe feliz. Agora vão para casa e passem
o resto do dia orando para seus ancestrais. O presente de O-fune-sama
será avaliado amanhã.
O
chefe deixou o local perto da água, seguido pelos outros, sem que
ninguém dissesse uma palavra, mas o brilho em seus olhos e o largo
sorriso diziam tudo. Empurrado por Gonsuke, Isaku deu um passo,
parando diante do velho. O velho ficou satisfeito quando Gonsuke
disse que não tinha havido sinal algum de navios se aproximando.
Isaku
se curvou reverentemente e caminhou para casa. Quando afastou a
esteira de palha pendurada à porta para entrar em casa, a mãe
virou-se para ele sem parar de orar diante do ihai, a placa
ancestral de sua família. Ela parecia completamente diferente, o
rosto corado de felicidade, os cantos da boca virados para cima de um
modo que Isaku nunca tinha visto antes.
Ele
entrou, juntou as palmas diante da placa ancestral e sentou-se junto
do fogo. Sentindo outra onda de felicidade, conteve-se para não
pular e dançar pela sala.
O
sol tinha começado a se pôr e a temperatura caía. A mãe começou
a aquecer o jarro de água com as sementes de trigo-mouro, então
pegou um pouco de saury salgado e colocou junto do fogo. Obviamente a
refeição seria muito mais generosa que de costume.
— O
que havia em O-fune-sama? — perguntou Isaku à mãe.
— Arroz,
muito arroz — disse ela pausadamente, para aumentar o efeito.
— E
o que mais?
— Havia
algodão e também óleo de semente de coza. Cera, chá, vinho e
molho de soja, vinagre e tapetes. Mas o arroz... Este O-fune-sama era
um navio de arroz — disse a mãe, animada.
Que
grande dia é este, pensou Isaku. Era uma alegria ver sua mãe tão
falante, e ele sentia que a alegria dela estava contagiando não
apenas a ele mas também seu irmão e a irmã; eles estavam sentados,
sorrindo, ao seu lado. Quando as sementes de trigo começaram a boiar
na água, a mãe acrescentou legumes e algas. A sala ficou escura e
os rostos deles tinham reflexos vermelhos por causa das chamas. A
fumaça começou a subir dos saury colocados no fogo. A mãe encheu
as cuias uma a uma, serviu Isaku primeiro, depois o irmão e então a
irmã, antes de se servir.
Isaku
mordiscou um saury e tomou um gole da sopa de legumes. No dia
seguinte o arroz seria distribuído, e ele se sentia nas nuvens com a
ideia de ver a expressão do irmão e da irmã quando experimentassem
sopa de arroz pela primeira vez.
— Só
mais um ano e um pouquinho agora — sussurrou a mãe quando pegou
sua cuia.
Isaku
olhou para ela, imaginando o que ela queria dizer, mas logo percebeu
pelo brilho em seus olhos que ela estava pensando em seu pai. Ele
tinha partido para um contrato de servidão de três anos, que
terminaria mais ou menos na época em que a neve derretesse no ano
seguinte ao próximo. Parte dos presentes de O-fune-sama sem
dúvida ainda existiria, o que tiraria um peso da consciência de seu
pai. Se os encontrasse passando fome, o pai poderia considerar a
ideia de se vender como servo mais uma vez; mas agora tal medo estava
afastado.
[…]
Akira Yoshimura, in Naufrágios
O amanhã | João Sérgio e Didi, 1978
Na
época em que este arrebatador samba-enredo foi apresentado na
avenida, no carnaval de 1978, pela União da Ilha do Governador, o
gênero já vivia sob o ataque de críticos, que reclamavam da
descaracterização, do ritmo acelerado e da vulgaridade dos refrões
levanta-povo.
“O
amanhã”, porém, mostrou que o samba-enredo tinha mudado, mas
atingia um de seus pontos mais altos. Não só nos desfiles e muito
além daquele carnaval. Puxado na avenida por Aroldo Melodia e também
gravado por Elizeth Cardoso, estourou no Brasil inteiro quatro anos
depois. Regravado por Simone no álbum Delírio e delícias,
ganhou as rádios, virando um dos maiores sucessos da cantora baiana.
Fundada
em 1953, a União da Ilha ascendeu ao grupo especial em 1975 e passou
a competir com as tradicionais Portela, Mangueira, Salgueiro e
Império Serrano. Seu ponto forte eram os enredos inusitados e os
sambas empolgantes, criados por um advogado e procurador federal,
Gustavo Adolfo de Carvalho Baeta Neves, que se escondia sob o
pseudônimo de Didi por pressão da família tradicional, contrária
ao seu envolvimento com o mundo do samba. Gustavo chegou a abrir mão
da autoria de alguns sambas, que foram atribuídos a outros
compositores, como “O amanhã”, assinado apenas pelo parceiro
João Sérgio.
Mas,
como contam os escritores Luiz Antonio Simas e Alberto Mussa,
sobrinho do compositor, no livro Samba de enredo: história e arte
(2010), “O amanhã” é um dos clássicos de Didi, incluindo a
riqueza melódica e a cadência das palavras que marcavam seu estilo.
Até
morrer, em 1987, aos 52 anos, de cirrose, o sambista-advogado venceu
24 disputas em escolas, sendo 16 na União da Ilha, quatro no
Salgueiro e quatro no Bloco do Boi da Freguesia. Em 1991 foi
homenageado pela União da Ilha com o enredo De bar em bar, Didi
um poeta.
Além
de “O amanhã”, Didi é autor de outro grande sucesso que
prosseguiu muito além da avenida, “É hoje” (parceria com
Mestrinho), popularizada por Caetano Veloso e Fernanda Abreu, um
clássico que poderia se alternar com “O amanhã” nesta lista.
Nelson Motta, in 101 canções que tocaram o Brasil
quinta-feira, 29 de junho de 2023
Fúria nas trevas o vento
Fúria
nas trevas o vento
Num
grande som de alongar
Não
há no meu pensamento
Senão
não poder parar
Parece
que a alma tem
Treva
onde sopre a crescer
Uma
loucura que vem
De
querer compreender.
Raiva
nas trevas o vento
Sem
se poder libertar.
Estou
preso ao meu pensamento
Como
o vento preso ao ar.
Fernando Pessoa, in Poesia
Aprender a Ver
Aprender
a ver — habituar os olhos à calma, à paciência, ao
deixar-que-as-coisas-se-aproximem-de-nós; aprender a adiar o juízo,
a rodear e a abarcar o caso particular a partir de todos os lados.
Este é o primeiro ensino preliminar para o espírito: não reagir
imediatamente a um estímulo, mas sim controlar os instintos que põem
obstáculos, que isolam. Aprender a ver, tal como eu o entendo, é já
quase o que o modo afilosófico de falar denomina vontade forte: o
essencial nisto é, precisamente, o poder não “querer”, o poder
diferir a decisão. Toda a não-espiritualidade, toda a vulgaridade
descansa na incapacidade de opor resistência a um estímulo — tem
que se reagir, seguem-se todos os impulsos. Em muitos casos esse ter
que é já doença, decadência, sintoma de esgotamento, — quase
tudo o que a rudeza afilosófica designa com o nome de “vício” é
apenas essa incapacidade fisiológica de não reagir. — Uma
aplicação prática do ter-aprendido-a-ver: enquanto discente em
geral, chegar-se-á a ser lento, desconfiado, teimoso. Ao estranho,
ao novo de qualquer espécie deixar-se-o-á aproximar-se com uma
tranquilidade hostil, — afasta-se dele a mão. O ter abertas todas
as portas, o servil abrir a boca perante todo o fato pequeno, o
estar sempre disposto a meter-se, a lançar-se de um salto para
dentro de outros homens e outras coisas, em suma, a famosa
“objetividade” moderna é mau gosto, é algo não-aristocrático
par excellence.
Friedrich Nietzsche, in Crepúsculo dos Ídolos
O meio e os meios
Não
me espantam esses escritores que são, evidentemente, o genuíno
produto do meio. Mas os que são um produto contra o meio. Exemplo?
Um Edgar Allan Poe. E, entre nós, Machado de Assis.
Quanto
ao velho Machado, direis que o seu temário, a sua vivência, que o
seu meio, em suma, nada podia ser mais brasileiro.
O
seu meio, sim; mas os seus meios, não. O próprio estilo dele
(delícia minha) decerto que se afigurava, aos frondosos escritores
da época, um verdadeiro antiestilo. Cruzes! Seria ele o Anticristo?
E
fico a imaginar o que teria dito, então, o Coelho Netto para o Graça
Aranha:
— Não
há de ser nada, meu velho, não há de ser nada... A nossa salvação
é o Ruy Barbosa.
Mário Quintana, in Caderno H
As rãs | 5.
Minha
tia havia chegado fazia tempo à idade de se casar. Mas ela ganhava
seu próprio salário, ocupava função pública, comia grão
comercial* e tinha uma origem familiar tão gloriosa que nenhum rapaz
da aldeia nem sequer ousava pensar na possibilidade de pedir sua mão.
Aos cinco anos, eu já ouvia com frequência minha tia-avó e minha
avó conversarem sobre o casamento da minha tia. Minha tia-avó
dizia, aflita: “‘Tia’,** veja só, Coração já está com
vinte e dois anos. As outras moças dessa idade estão todas casadas,
com dois filhos, mas Coração não recebeu sequer um pedido de
casamento até agora. Como pode ser isso?”. E minha avó dizia:
“Cunhada, para que tanta pressa? Uma moça como ela ainda vai se
casar com um nobre, quem sabe, e virar imperatriz! Aí você vai ser
sogra do imperador e entramos todos para a casa imperial, com certeza
alguma benesse há de sobrar para nós!”. Minha tia-avó dizia:
“Bobagem! Faz tempo que a revolução derrubou o imperador, vivemos
na República Popular, quem manda agora é o presidente!”. Minha
avó dizia: “Se é o presidente que manda, então vamos casar
Coração com o presidente!”. Minha tia-avó dizia, furiosa: “Mas
você, hein, está de corpo presente numa nova era e a cabeça ficou
no passado, no tempo antes da Libertação”. Minha avó retrucava:
“Não sou como você, passei a vida inteira nesta aldeia, você foi
à Zona Liberada, foi a Pingdu”. Minha tia-avó dizia: “Nem me
fale de Pingdu, falar desse lugar me dá arrepios! Fui sequestrada
por aqueles demônios japoneses, o que passei lá foi um pesadelo e
não um recreio!”. As duas cunhadas falavam e falavam até
começarem a brigar. Minha tia-avó saía furiosa, como se nunca mais
fosse voltar. No dia seguinte, estava ali de novo. Quando via as duas
conversarem sobre esse assunto, minha mãe tinha de esconder o riso.
Lembro-me
daquele fim de tarde em que a vaca lá de casa pariu um bezerro. Não
sei se foi a vaca que imitou minha mãe, ou se foi o bezerro que
seguiu meu exemplo: pôs primeiro uma perna para fora e ficou
entalado. A vaca mugia desesperada, parecia sofrer terrivelmente.
Preocupadíssimos, meu avô e meu pai esfregavam as mãos, batiam os
pés, andavam em círculos sem saber o que fazer. A vaca é a menina
dos olhos dos camponeses, ainda mais se pertence à coletividade e
foi confiada aos nossos cuidados. Se morresse, aí sim estaríamos em
apuros. Minha mãe chamou minha irmã num canto e disse a ela:
“Filha, parece que sua tia já está de volta”. Minha irmã saiu
correndo antes mesmo que ela terminasse a frase. Meu pai lançou à
minha mãe um olhar atravessado: “Você não tinha nada que se
meter nisso! Ela trabalha com gente!”. E minha mãe respondeu:
“Gente ou bicho, a lógica é a mesma!”.
Minha
tia e minha irmã chegaram juntas.
Assim
que entrou pela porta, a tia explodiu: “Vocês querem me matar de
cansaço? Já ando ocupada demais com gente e vocês ainda me chamam
para cuidar de vaca!”.
“Irmãzinha”,
sorriu minha mãe, “quem mandou você ser da família? Quem mais
podíamos procurar? Não dizem que você é um bodisatva de carne e
osso? Pois um bodisatva ajuda todos os seres a atravessar o oceano da
existência, socorre tudo que é ser vivo, a vaca pode ser um animal,
mas também é um ser vivo, vai lhe negar socorro quando estiver à
beira da morte?”
“Cunhada”,
disse minha tia, “ainda bem que você não sabe ler, se soubesse
ler mais que duas cestas de palavras, quem é que poderia com você
nesta aldeia?”
“Mesmo
que eu soubesse oito cestas de palavras, nem chegaria aos seus pés,
irmãzinha”, respondeu minha mãe.
Minha
tia ainda estava de cara amarrada, mas era evidente que a raiva tinha
passado. Já estava escuro, minha mãe acendeu as lamparinas da casa,
aumentou os pavios e levou tudo para o estábulo.
Assim
que viu minha tia, a vaca dobrou as duas pernas dianteiras e
ajoelhou-se. Vendo o animal nessa posição, minha tia desatou a
chorar.
Todos
nós choramos com ela.
Minha
tia examinou a vaca e disse, misturando gozação e piedade: “Mais
um que quer nascer pela perna”.
Mandou
que a gente fosse para o pátio, receava que ficássemos muito
impressionados com a cena. Ouvíamos a tia dar ordens em voz alta e
imaginávamos nossos pais sob o seu comando, ajudando a vaca a parir.
Era o dia 15 do calendário lunar, quando a lua assoma pelo sudeste e
derrama no mundo um brilho imaculado. “Pronto, nasceu!”, gritou a
tia.
Entramos
empolgados no moinho, que servia de estábulo, e vimos ao lado da
vaca um bezerrinho coberto de um líquido viscoso. “Que bom, é uma
bezerrinha!”, disse meu pai, animado.
Minha
tia se zangou: “Que estranho, quando a mulher tem uma menina os
homens torcem o nariz, mas quando a vaca tem uma bezerra, ficam rindo
de orelha a orelha”.
Meu
pai falou: “Mas a bezerrinha quando crescer vai dar cria”.
“E
a gente? A menina quando cresce não vai ter filhos?”, questionou
minha tia.
“Mas
aí é diferente”, disse meu pai.
“Diferente
como?”, ela perguntou.
Percebendo
que minha tia se exaltava, meu pai encerrou a conversa por aí.
A
vaca virou a cabeça e começou a lamber o líquido viscoso da
bezerrinha. Sua língua parecia conter algum remédio milagroso,
distribuía vigor por onde passava. Assistíamos à cena
profundamente emocionados. Olhei minha tia pelo canto do olho, ela
estava com a boca entreaberta e os olhos cheios de ternura, como se
fosse ela que estivesse sendo lambida pela vaca, ou como se ela mesma
lambesse a cria. Depois de ter sido quase toda lambida pela mãe, a
bezerrinha se levantou, trêmula.
Fomos
buscar bacia, água, sabão e toalha para minha tia lavar as mãos.
Sentada
diante do fogão, minha avó atiçava o fogo com um fole. Minha mãe,
em pé na frente do kang, abria a massa de macarrão.
Minha
tia terminou de lavar as mãos e disse: “Estou morta de fome. Hoje
vou jantar aqui na sua casa”.
“Aqui
é sua casa também, não é?”, respondeu minha mãe.
“Pois
é”, emendou a avó, “até parece que não comemos da mesma
panela por tantos anos.”
Nisso,
minha tia-avó gritou do outro lado do muro chamando a tia para
comer. Minha tia gritou de volta: “Não posso trabalhar para eles
de graça, vou comer aqui”. Minha tia-avó preveniu: “Sua tia
vive na penúria, se você comer uma tigela de macarrão aí, ela vai
se lembrar disso para o resto da vida”. Minha avó correu para o
muro com o pau de atiçar fogo na mão: “Se está com tanta
vontade, venha comer conosco. Se não quiser, volte para o seu
canto”. Minha tia-avó desdenhou: “Não como dessa sua comida nem
morta”.
Quando
o macarrão ficou pronto, minha mãe serviu uma tigela bem cheia e
mandou minha irmã levar para minha tia-avó. Só muitos anos depois
fiquei sabendo que minha irmã, na pressa, tropeçou e caiu como um
cachorro que despenca na merda, derrubou todo o macarrão e ainda
quebrou a tigela. Para livrar a sobrinha-neta do puxão de orelha,
minha tia-avó pegou uma tigela de sua cozinha, deu à minha irmã e
mandou-a de volta para casa.
Minha
tia é muito conversadeira, sempre adoramos ouvi-la. Terminada a
refeição, sentou-se na beirada do kang com as costas
apoiadas na parede e começou a desfiar seu repertório. Ela cruzou o
batente de muitas casas, viu todo tipo de gente, ouviu muitas
histórias. Quando contava um caso, não economizava nas cores
fortes. Isso deixava sua narrativa tão envolvente quanto a de um
contador profissional. No início dos anos 1980, assistíamos ao
programa da contadora de histórias Liu Lanfang na televisão e minha
mãe comentou: “Não é igualzinha a sua tia? Se ela não fosse
médica, daria uma boa contadora de histórias!”.
A
conversa daquela noite, mais uma vez, começou com o choque de
inteligência e coragem entre minha tia e o comandante Sugitani em
Pingdu. “Eu tinha sete anos naquele tempo”, disse ela, me
lançando um olhar, “era mais ou menos do tamanho de Corre Corre
quando fui levada para Pingdu com sua tia-avó e sua bisavó. Ao
chegar lá, fomos trancadas num quarto escuro. A porta era guardada
por dois enormes cães-lobos acostumados a comer carne humana. Quando
viram a criança que eu era, lamberam os beiços. Sua tia-avó e sua
bisavó choraram a noite toda, mas eu não chorei, encostei a cabeça
e dormi até clarear o dia. Ficamos não sei quantos dias e quantas
noites trancadas naquele quarto escuro, até que nos levaram para um
pequeno pátio isolado onde crescia um pé de lilás. Ah, que
perfume! Até fiquei tonta. Uma autoridade local chegou de túnica e
chapéu para dizer que o comandante Sugitani queria oferecer um
banquete para a gente. Sua bisavó e sua tia-avó só sabiam chorar,
não se atreviam a sair do lugar. Aquele senhor então me disse:
‘Mocinha, tente convencer sua avó e sua mãe, diga a elas para não
ter medo. O comandante Sugitani não tem intenção de fazer mal a
vocês, ele só quer ficar amigo do dr. Wan Seis Vísceras’. Eu
disse: ‘Vó, mãe, parem de chorar, de que adianta chorar? O choro
vai fazer a gente criar asas? Vai derrubar a Grande Muralha?’. O
cavalheiro disse, batendo palmas: ‘Falou muito bem, a mocinha é
muito esperta, quando crescer será uma pessoa extraordinária’.
Assim eu convenci as duas a parar de chorar. Acompanhando o
cavalheiro, subimos numa charrete puxada por um burro preto e demos
não sei quantas voltas. Entramos numa mansão com um portão
imponente, duas sentinelas guardavam a entrada, à esquerda um
pele-amarela,*** à direita, um soldado japonês. A mansão era muito
comprida; passado o portão, atravessamos um pátio atrás do outro,
parecia que nunca chegaríamos até o final. Por fim, entramos num
pavilhão que tinha portas, janelas e divisórias finamente
entalhadas, e poltronas feitas de sândalo. O comandante Sugitani, de
quimono, segurava um leque dobrável, que abanava com elegância. Só
de olhar já dava para saber que era uma pessoa educada. Disse
algumas formalidades e nos convidou a tomar nossos lugares à mesa,
uma mesa redonda, enorme, forrada com as melhores iguarias. Sua
bisavó e sua tia-avó nem tinham coragem de tocar nos pauzinhos, mas
eu não fiz cerimônia, fui logo devorando tudo o que aquele cachorro
oferecia! Como os pauzinhos atrapalhavam, simplesmente comecei a usar
a ‘colher anatômica’, pegava grandes bocados de comida com a mão
e enfiava na boca. Sugitani segurava um cálice de bebida e assistia
a tudo sorrindo. Satisfeita, limpei as mãos na toalha da mesa e
senti o sono chegar. Ouvi a pergunta de Sugitani: ‘Senhorita, não
seria ótimo se seu pai pudesse se juntar a nós?’. Arregalei os
olhos: ‘Não seria, não’. Sugitani perguntou: ‘Por quê?’.
Eu disse: ‘Meu pai é da Oitava Rota, você é japonês, a Oitava
Rota luta contra os japoneses, não tem medo de que o meu pai lute
com você quando chegar aqui?’.”
Minha
tia levantou a manga da camisa para ver as horas. Naquela época,
havia menos de dez relógios de pulso em toda Gaomi, e um deles era
da minha tia. “Uau!”, exclamou meu irmão mais velho, a única
pessoa lá de casa que já tinha visto um relógio de pulso. Ele
frequentava o liceu número 1 do distrito e seu professor de russo,
que havia estudado na União Soviética, usava um relógio de pulso.
Quando terminou seu “uau”, meu irmão gritou: “Um relógio!”.
Minha irmã e eu gritamos juntos: “Um relógio!”.
Minha
tia fez cara de contrariada e puxou a manga de volta: “É só um
relógio, para que tanto alvoroço?”. Seu deliberado pouco-caso só
serviu para atiçar nossa curiosidade. Primeiro foi meu irmão mais
velho que disse, sondando o terreno: “Tia, até hoje só vi um
relógio de longe, o do professor Ji… a senhora me deixa dar uma
olhada?”. Nós fizemos coro ao meu irmão: “Tia, tia, deixa a
gente ver!”.
Minha
tia disse, sorrindo: “Que bando de moleques, o que é que tem para
ver num relógio velho?”. Mesmo assim, ela tirou o relógio e
entregou-o a meu irmão mais velho.
Minha
mãe, ao lado, advertiu em voz alta: “Cuidado com isso!”.
Meu
irmão pegou o relógio com todo o cuidado, pousou-o na palma da mão
para olhar e, em seguida, levou-o ao ouvido para escutar. Terminado o
exame, passou o relógio para minha irmã, que olhou e passou para
meu outro irmão. Ele deu uma olhada e nem teve tempo de encostar no
ouvido porque o mais velho tomou o relógio dele e devolveu a minha
tia. Senti uma pontinha de frustração e chorei.
A
mãe ralhou comigo.
Minha
tia disse: “Corre Corre, quando crescer, você irá longe, ainda
vai se importar de não ter relógio para usar?”.
“E
alguém como ele vai usar relógio? Qualquer hora dessas eu vou
desenhar um com tinta no pulso dele”, disse meu irmão.
“Não
se pode julgar alguém pela aparência, assim como não se pode medir
o mar com uma caneca. Não é por ser feio que Corre Corre não terá
chance de ser alguém na vida quando crescer”, disse minha tia.
“Se
até ele pode ser alguém na vida, então aquele porco no chiqueiro
também pode virar tigre!”, disse minha irmã.
“Tia,
em que país foi fabricado? Qual é a marca?”, perguntou meu irmão.
“É
um Enicar feito na Suíça”, ela respondeu.
“Uau!”,
exclamou meu irmão mais velho, seguido pelo outro irmão e pela
irmã.
Eu
esbravejei, furioso: “Seus metidos!”.
“Irmãzinha,
quanto custa isso?”, minha mãe perguntou.
“Não
sei, ganhei de presente”, respondeu a tia.
“Que
amigo tem coragem de dar um presente tão caro?”, e observando a
tia, minha mãe continuou: “Será que é o futuro tio deles,
hein?”.
“Já
é quase meia-noite”, disse minha tia se levantando, “hora de
dormir.”
“Graças
ao céu e à terra! A irmãzinha finalmente vai desencalhar!”,
exclamou minha mãe.
Não
vá sair por aí dando com a língua nos dentes, ainda não riscamos
nem o primeiro traço do oito.**** Minha tia virou-se para nós e
advertiu: “E eu esfolo vivo quem sair por aí falando bobagem,
ouviram bem?”.
Na
manhã seguinte, meu irmão mais velho, talvez com peso na
consciência por não ter me deixado ver o relógio da tia, pegou uma
caneta e desenhou um relógio no meu pulso. Ficou bem realista, lindo
mesmo. E eu era todo zelo e desvelo por aquele “relógio”,
cuidava para não o molhar ao lavar as mãos e, se chovia, escondia o
braço. Quando a cor esmaecia, pedia emprestada a caneta do meu irmão
para reforçar os traços. Assim o “relógio” durou uns três
meses no meu pulso.
………………………………….
*
Expressão indicativa de status social; quem “come grão comercial”
pertence à parcela da população que não precisa cultivar o
alimento que consome (funcionários públicos, militares, médicos).
[Todas as notas são do tradutor.]
**
Era comum na forma de tratamento popular se dirigir aos familiares
mencionando o parentesco em relação aos próprios filhos, e não o
parentesco direto. Assim, uma mulher pode chamar seu marido de “pai
da criança” e sua irmã ou cunhada de “tia da criança”, ou
“tia”.
***
Soldado chinês aliado dos japoneses.
****
O ideograma de “oito” em chinês se escreve com dois traços
diagonais à maneira de um V invertido. Dizer que nem foi feito “o
primeiro traço do oito” significa que não há nada certo, nada
definido.
Mo Yan, in As rãs
quarta-feira, 28 de junho de 2023
Soneto 1
Dos
seres ímpares ansiamos prole
Para
que a flor do Belo não se extinga,
E
se a rosa madura o Tempo colhe,
Fresco
botão sua memória vinga.
Mas
tu, que só com os olhos teus contrais,
Nutres
o ardor com as próprias energias
Causando
fome onde a abundância jaz,
Cruel
rival, que o próprio ser crucias.
Tu,
que do mundo és hoje o galardão,
Arauto
da festiva Natureza,
Matas
o teu prazer inda em botão
E,
sovina, esperdiças na avareza.
Piedade,
senão ides, tu e o fundo
Do
chão, comer o que é devido ao mundo.
William Shakespeare, in Sonetos
Uma senhora
Dona
Quinota não se importava com a aspereza do ano inteiro. Com ela era
ali no duro — trabalho, trabalho e mais trabalho. O ordenado das
empregadas, na verdade, era uma pouca-vergonha que a polícia devia
pôr um paradeiro. Não punha. Vivia metida com a maldita da
política. Falta duma boa revolução!... Ah, se ela fosse homem!...
Enquanto a revolução não vinha para botar tudo nos eixos,
obrigando-a a endireitar as empregadas, fazia de criada —
cozinhava, varria, cosia. Encerava a casa também, aos sábados,
depois que disseram pelo rádio ser higiênico e muito econômico. —
Econômico? Então se encera mesmo.
O
marido, que já estava acostumado àquelas resoluções, largou no
melhor pedaço o segundo volume de Os Miseráveis, meteu sobre o
pijama a gabardine cheirando a gasolina na gola e foi telefonar para
a loja de ferragens, pedindo duas latas de cera — da boa, vê lá!
— chorando um abatimentozinho na escova e na palha de aço: está
ouvindo, Seu Fernandes?
Estava
sempre para tudo que, graças a Deus, era mulher forte. Saíra à
mãe, que também o fora, morrendo velha de desastre, desastre
doméstico, uma chaleira de água fervendo para o escalda-pé do
marido, um coronel reformado, que lhe virou por cima do corpo.
Nunca
se queixava da vida. Não ia à cidade passear, as suas compras eram
em regra feitas pelo marido, precisava que a fita fosse muito falada
para ela se abalar até ao cinema do bairro, onde cochilava a bom
cochilar; contavam-se os domingos em que ia à missa, não fazia
visitas, nem recebia. Não reclamava o trabalho que lhe davam os
filhos, três desmazelados que andavam na escola pública, Elcio,
Élcia e Elcina, respectivamente quinze, quatorze e treze anos, o que
atesta bem a força do marido e dá ideia o que seria depois de dez
anos de casada, se depois da Elcina não tomasse as devidas
precauções.
— Não
se esqueçam de dar lembranças à Dona Margarida — aconselhava na
hora da saída, enquanto punha nas bolsas as bananas e o pão com
manteiga da merenda. Dona Margarida fora sua amiga no colégio das
Irmãs, uma bicha no francês, cearense, um talento! Mandar
lembranças para ela equivalia a dizer: Olha que são meus filhos,
Margarida; os filhos da tua amiga Quinota...
E
os exames estavam perto, com prêmios de cadernetas da Caixa
Econômica dados pelo prefeito, ridicularizados pelos jornais
oposicionistas, elogiados pelos do governo — a Folha dizia que era
um gesto de Mecenas, mas enfim fartamente anunciados em todos os
jornais para incentivo da meninada estudiosa. Ela queria ser mordida
por um macaco se não arranjasse três cadernetas para casa. Os
filhos é que não faziam fé.
Bordava
para fora, cuidava do Joli, o bichano para sujar a casa era um
desespero, e sobrava tempo ainda para ter ciúmes do marido com as
vizinhas, principalmente Dona Consuelo, uma descarada, é certo, mas
muito chique, confessava. Chegando o carnaval, tirava a forra.
As
economias acumuladas saíam do Banco Popular juntas com os juros. Não
ficava nada. Metia-se numa fantasia de baiana e inundava a capota do
automóvel com seus oitenta e cinco quilos honestíssimos. As meninas
iam de baianas também, menos saias, mais berloques, e o menino de
pierrô, cada ano de uma cor, porque não é para outra coisa que o
dono do Tinto! gasta aquele dinheirão em anúncios. Tirava do cabide
a casaca do casamento, dezesseis anos por isso (como o tempo corre!),
dava um jeito nas manchas: — No automóvel, ninguém repara, meu
filho — dizia com um sorriso, ora para a casaca, ora para o marido,
que se traduzia: lembras-te? Ele, então, com uma faixa vermelha na
cintura, brincos em forma de argola, pendentes das orelhas
demasiadas, enfiava na cabeça um turbante de seda branca com pérolas
em profusão, e ia em pé, no carro, de rajá diplomata. No terceiro
dia, graças a Deus não choveu em nenhum dos três, perguntava para
o marido: — Quanto temos ainda?
Ele
remexia a carteira (bolso de casaca é o tipo da coisa encrencada!),
fura-bolos trabalhava passado na língua, e cantava a quantia:
— Duzentos
e oitenta.
— E
os oitocentos do automóvel?
— Já
estão fora.
— Ah!
Bem... — Para fazer contas no ar era um assombro: ... pode gastar
mais cento e cinquenta.
O
resto ficava para gastar depois do carnaval — mas entrava na verba
dele — com o fígado do marido, porque depois da pândega (a
experiência de Dona Quinota é que falava) Seu Juca tinha
rebordosas, vômitos biliosos, uma dor do lado danada, de tanta
canseira, tanta serpentina e tanta cerveja gelada.
Não
faz mal. Não fazia não. A vida era aquilo mesmo: três dias —
falava. Mas pensava: por ano. Podia dizer, mas não dizia. Deixava
ficar lá dentro. O “lá dentro” de Dona Quinota era uma coisa
complicada, complícadíssima, que ninguém compreendia. Só ela
mesma e o marido, às vezes. Desciam do automóvel à porta de casa,
quando o vizinho veio vindo com o rancho da filharada.
— Brincaram
muito? — fez Seu Adalberto, com um jeito de despeitado. — Assim,
assim...
Dona
Quinota dizia aquele “assim-assim” de propósito. Que lhe
importava os outros saberem se ela tinha gozado ou não? Quem gozava
era ela. Mas gostava de ficar deliciando-se por dentro com a inveja
dos vizinhos: assim, assim... Ah! Ah! Ah! Seu Adalberto exultava:
— E
isso mesmo. Faz-se despesas enormes (e Dona Quinota sorria) e não se
diverte nada. (Dona Quinota olhava para o céu.) É sempre assim.
Pois olhe: nós fomos a pé mesmo. Estivemos ali na Avenida na
esquina do Derbi, apreciamos o baile do Clube Naval, muita fantasia
rica, muita, vimos perfeitamente as sociedades, tomamos refrescos,
brincamos à grande. Não foi? As mocinhas fizeram que sim,
humilhadas, mas os guris foram sinceros: — Aquele carro do girassol
que rodava, hem, papai! Seu Adalberto corrigiu logo: — Girassol,
não, Artur; crisântemo.
Depois
que corrigiu, ficou azul, sem saber ao certo se era crisântemo ou
crisantemo — quer ver que eu disse besteira?
Seu
Juca não havia meio de encontrar o raio da chave. Esses bolsos de
casaca!...
— O
ano que vem — Dona Quinota falou firme — nós iremos também a
pé.
O
marido até se virou. Ficou olhando, espantado. Que diabo é isto? —
ia perguntando. Por um triz que não perguntou. Mas ficou assim...
Compreendeu? Parece... Esta Quinota!...
Foi
quando Seu Adalberto, evidentemente mortificado, se refez e
sentenciou como experiente na matéria, apesar de nunca ter entrado
num automóvel pelo carnaval: é melhor mesmo.
A
tribo sumiu pela porta do 37. A maçaneta fechou por dentro. Torreco,
torreco. Agora foi a chave — duas voltas. O pigarro do seu
Adalberto, ainda com o acento do crisântemo a fuzilar-lhe na cabeça,
veio até cá fora se misturar com um resto de choro, pandeiro e
chocalhos, do bonde que passava mais longe. Passos apressados no
fundo da rua. O burro do inglês estava na janela do apartamento
fumando para a lua. Dona Quinota ficou olhando-o um pouco, depois
cerrou a porta bem e fixou o marido que dava por falta dum brinco:
Que cretinos!
Seu
Juca parou no meio do corredor, cara de ressaca, pernas abertas, o
turbante nas mãos e esperou mais. Mas Dona Quinota era hermética. O
resto ficou lá dentro onde ninguém ia buscar, porque o marido, o
único interessado na ocasião, mais morto do que vivo, preferiu
tirar o colarinho e a casaca. Dona Quinota atirou-se na cama
escangalhada e feliz, só acordando na quarta-feira de cinzas ao
meio-dia.
Quando
o resto da família se levantou, o almoço (feito por ela) já estava
na mesa, e Dona Quinota se desesperava porque tinha lido no Jornal do
Brasil que foram os Fenianos que pegaram o primeiro prêmio, quando
todo mundo viu perfeitamente que só o carro-chefe dos
Democráticos...
Marques Rebelo, in Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século
Susi
Pudesse
eu, e fecharia todos os zoológicos do mundo. Pudesse eu, e proibiria
a utilização de animais nos espectáculos de circo. Não devo ser o
único a pensar assim, mas arrisco o protesto, a indignação, a ira
da maioria a quem encanta ver animais atrás de grades ou em espaços
onde mal podem mover-se como lhes pede a sua natureza. Isto no que
toca aos zoológicos. Mais deprimentes do que esses parques, só os
espectáculos de circo que conseguem a proeza de tornar ridículos os
patéticos cães vestidos de saias, as focas a bater palmas com as
barbatanas, os cavalos empenachados, os macacos de bicicleta, os
leões saltando arcos, as mulas treinadas para perseguir figurantes
vestidos de preto, os elefantes mal equilibrados em esferas de metal
móveis. Que é divertido, as crianças adoram, dizem os pais, os
quais, para completa educação dos seus rebentos, deveriam levá-los
também às sessões de treino (ou de tortura?) suportadas até à
agonia pelos pobres animais, vítimas inermes da crueldade humana. Os
pais também dizem que as visitas ao zoológico são altamente
instrutivas. Talvez o tivessem sido no passado, e ainda assim duvido,
mas hoje, graças aos inúmeros documentários sobre a vida animal
que as televisões passam a toda a hora, se é educação que se
pretende, ela aí está à espera.
Perguntar-se-á
a que propósito vem isto, e eu respondo já. No zoológico de
Barcelona há uma elefanta solitária que está morrendo de pena e
das enfermidades, principalmente infecções intestinais, que mais
cedo ou mais tarde atacam os animais privados de liberdade. A pena
que sofre, não é difícil imaginar, é consequência da recente
morte de uma outra elefanta que com a Susi (este é o nome que
puseram à triste abandonada) partilhava num mais do que reduzido
espaço. O chão que ela pisa é de cimento, o pior para as sensíveis
patas destes animais que talvez ainda tenham na memória a macieza do
solo das savanas africanas. Eu sei que o mundo tem problemas mais
graves que estar agora a preocupar-se com o bem-estar de uma
elefanta, mas a boa reputação de que goza Barcelona comporta
obrigações, e esta, ainda que possa parecer um exagero meu, é uma
delas. Cuidar de Susi, dar-lhe um fim de vida mais digno que ver-se
acantonada num espaço reduzidíssimo e ter de pisar esse chão do
inferno que para ela é o cimento. A quem devo apelar? À direcção
do zoológico? À Câmara? À Generalitat?
José Saramago, in O caderno
O que é arte? | Capítulo VI
Vênus tirando a sandália (1852), de Ivan Vitali
Mas
como pôde acontecer que a mesma arte, que nos tempos antigos era ou
meramente tolerada ou totalmente rejeitada, tenha vindo a ser
considerada em nossos dias uma coisa invariavelmente boa, desde que
proporcione prazer?
Isso
aconteceu pelas razões apresentadas a seguir.
A
apreciação dos méritos da arte — isto é, dos sentimentos que
ela transmite — depende do entendimento que as pessoas têm do
significado da vida, do que elas veem como bom ou mau. O bem e o mal
da vida são determinados pelas assim chamadas religiões.
A
humanidade move-se incessantemente de um entendimento mais baixo,
mais parcial e menos claro da vida para um que seja mais alto, mais
amplo e mais claro. E, como em todo movimento, nesse também existem
líderes — aqueles que entendem o significado da vida mais
claramente do que outros —, e entre estes sempre há um que, em
suas palavras e em sua vida, tenha manifestado de forma mais vívida,
acessível e vigorosa esse significado da vida. A manifestação, por
esse homem, desse significado, juntamente com as tradições e ritos
que geralmente se formam em torno da memória de tal homem, é
denominado religião. As religiões são indicadores da mais alta
compreensão da vida acessível em uma dada época, em uma dada
sociedade, aos melhores líderes, o que é inevitável e
infalivelmente compartilhado por todo o restante da sociedade. E,
somente por causa disso, as religiões sempre serviram e servirão de
base para a avaliação do sentimento das pessoas. Se esses
sentimentos as aproximam do ideal para o qual sua religião aponta,
concordam com ele e não o contradizem, eles são bons; se as afastam
desse ideal, discordam dele ou o contradizem, eles são maus.
Se
a religião coloca o sentido da vida na adoração de um Deus único
e no cumprimento do que é considerado Sua vontade, como no judaísmo,
os sentimentos transmitidos pela arte e que resultam do amor a esse
Deus e à Sua lei — a poesia sagrada dos profetas, os Salmos, as
histórias no livro do Gênesis — constituem arte boa e elevada.
Tudo que se opõe a isso, como por exemplo transmitir o sentimento da
adoração a outros deuses ou sentimentos discordantes da lei de
Deus, será considerado arte ruim. Se a religião coloca o sentido da
vida na felicidade terrestre, na beleza e na força, a arte que
transmite o regozijo e o gozo da vida será considerada boa arte,
enquanto a que transmite sentimentos de fragilidade ou depressão
será arte ruim, como se pensava entre os gregos. Se o sentido da
vida está no bem da nação ou em continuar o modo de vida dos
ancestrais e reverenciá-los, a arte que transmite o sentimento de
alegria no sacrifício do bem pessoal pelo bem da nação ou pela
glorificação dos antepassados e manutenção da tradição será
considerada boa arte, enquanto a arte que expressa sentimentos
contrários a esses será considerada ruim, como entre os romanos e
chineses. Se o sentido da vida está em libertar-se do jugo da
animalidade, a arte que transmite sentimentos que elevam a alma e
humilham a carne será boa, como se considera no budismo, e tudo que
transmite sentimentos que acentuam as paixões do corpo será
considerada arte ruim.
Sempre,
em todas as épocas e em todos os grupamentos humanos, existiu essa
consciência religiosa, comum a todas as pessoas de uma sociedade,
sobre o que é bom e o que é mau, e é essa consciência que
determina o valor dos sentimentos transmitidos pela arte. E sempre,
portanto, em todas as nações, a arte que transmitia sentimentos
resultantes da consciência religiosa comum ao povo da nação era
considerada boa e incentivada, enquanto a que transmitia sentimentos
discordantes dessa consciência era reconhecida como má e rejeitada;
todo o enorme campo restante da arte pela qual o povo se comunicava
entre si não era nem um pouco valorizado e era rejeitado somente
quando contrariava a consciência religiosa de sua época. Assim foi
em todas as nações: gregos, judeus, hindus, egípcios, chineses.
Foi assim, também, quando apareceu o cristianismo.
O
cristianismo dos primeiros tempos reconhecia como boas obras de arte
somente as fábulas, vidas dos santos, sermões, orações e hinos
que invocavam no povo o sentimento de amor por Cristo e de ser tocado
por sua história, o desejo de seguir seu exemplo, a renúncia da
vida terrestre, a humildade e o amor ao próximo. Todas as obras que
transmitiam sentimentos de prazer pessoal eram consideradas más, e
portanto o cristianismo rejeitava toda a arte plástica pagã,
permitindo somente imagens plásticas simbólicas.
Assim
foi entre os cristãos dos primeiros séculos, que receberam o
ensinamento de Cristo, se não exatamente na sua verdadeira forma,
ainda não de uma forma pervertida, pagã, tal como foi aceito mais
tarde. Com a conversão de nações inteiras ao cristianismo, por
decreto de um governante, como ocorreu sob Constantino, Carlos Magno
e Vladimir, apareceu um cristianismo diferente, um cristianismo da
Igreja, mais próximo do paganismo do que dos ensinamentos de Cristo.
Esse cristianismo da Igreja, com base em sua própria doutrina,
começou a avaliar de maneira bem diferente os sentimentos dos homens
e as obras de arte que os transmitiam. Essa religião não apenas não
reconhecia as teses básicas e essenciais do verdadeiro cristianismo
— a relação direta de cada pessoa com o Pai e, a partir disso, a
fraternidade e igualdade de todos os homens, que resulta na
substituição de todas as formas de violência por humildade e amor
—, como, ao contrário, havendo estabelecido uma hierarquia celeste
similar à mitologia pagã e o seu culto, o culto de Cristo, da Mãe
de Deus, dos anjos, apóstolos, santos e mártires, e não somente
dessas divindades, como também de suas imagens, esse cristianismo
instaurou a fé cega na Igreja e em suas constituições como a
essência da doutrina.
Ainda
que essa doutrina fosse estranha ao verdadeiro cristianismo, ainda
que fosse degradada, não apenas em comparação àquele, mas também
em relação à visão de mundo de um romano como Juliano, ainda
assim, para os bárbaros que a seguiram, era uma doutrina mais
elevada do que seu culto anterior de deuses, heróis, espíritos bons
e maus. E, portanto, era uma religião para os bárbaros que a
acataram. E foi com base nessa religião que a arte da época foi
avaliada: a arte que retratava a piedosa veneração da Mãe de Deus,
Jesus, santos e anjos, a fé cega na Igreja e a obediência a ela, o
medo dos tormentos e a esperança de gozo na vida após a morte, era
considerada boa; a arte que se opunha a isso era considerada má.
A
doutrina com base na qual emergiu essa arte era uma deturpação do
ensinamento de Cristo, mas a arte que emergiu desse ensinamento
desfigurado ainda era verdadeira, porque correspondia à visão de
mundo religiosa do povo no seio do qual ela surgiu.
Os
artistas da Idade Média, que compartilhavam com as massas populares
a mesma religião, como base de seus sentimentos, enquanto
transmitiam na arquitetura, escultura, pintura, música, poesia e
drama os sentimentos e disposições que vivenciavam, eram
verdadeiros artistas, e a sua atividade, baseada no mais alto
entendimento acessível para aquele tempo e partilhada por todos,
ainda que pareça mais baixa para a nossa época, era entretanto arte
verdadeira, comum a todo o povo.
E
assim foi até que surgiu, entre as classes mais altas, ricas e
instruídas da sociedade europeia uma dúvida quanto à verdade da
compreensão da vida expressa pelo cristianismo da Igreja. Mas
quando, após as Cruzadas, depois que o poder papal se tornou
altamente desenvolvido e igualmente abusado, depois que as pessoas
das camadas ricas se familiarizaram com a sabedoria antiga e viram,
por um lado, a lucidez racional dos antigos sábios, e, por outro, a
falta de correspondência entre os ensinamentos da Igreja e o
ensinamento de Cristo, tornou-se impossível para elas acreditar,
como antes, na doutrina da Igreja.
Se,
ostensivamente, essas pessoas ainda obedeciam às formas da doutrina
da Igreja, elas já não eram capazes de acreditar nela e a seguiam
apenas por inércia, ou em nome do povo, que continuava a acreditar
cegamente no seu ensinamento e cuja crença as pessoas da
aristocracia consideravam necessário apoiar para o bem de seu
próprio lucro. Assim, a doutrina cristã da Igreja deixou de ser, a
certa altura, a doutrina geral de todo o povo cristão. Alguns — as
camadas superiores, aqueles em cujas mãos estavam o poder e a
riqueza, e portanto o tempo livre e os meios para produzir e
patrocinar a arte — pararam de acreditar na doutrina da Igreja,
enquanto o povo continuou a acreditar cegamente nela.
Com
relação à religião, as classes superiores na Idade Média se
viram na mesma situação dos romanos instruídos antes do
aparecimento do cristianismo — isto é, já não acreditavam
naquilo que o povo acreditava, mas não tinham eles mesmos nenhuma
crença que pudessem colocar no lugar da obsoleta doutrina cristã,
que tinha perdido o sentido para eles.
A
única diferença era que, enquanto os romanos que perderam a fé em
seus imperadores-deuses e em suas divindades domésticas, nada mais
tendo a extrair de toda a complexa mitologia que haviam tomado
emprestada de todos os povos que conquistaram, tiveram que adotar uma
visão de mundo totalmente nova, as pessoas da Idade Média que
questionavam a verdade da doutrina católica da Igreja não tiveram
que procurar um novo ensinamento. A mesma fé cristã, que
confessavam em sua forma deturpada como a doutrina católica da
Igreja, havia mapeado o caminho para a humanidade tão mais à frente
que eles só tiveram que descartar as perversões que obscureciam o
ensinamento descoberto por Cristo e adotá-lo, se não no todo, pelo
menos em uma pequena parcela de seu significado (maior, entretanto,
do que aquele adotado pela Igreja). Exatamente isso foi feito em
parte, não somente pela Reforma de Wyclif, Hus, Lutero e Calvino,
mas por todo o movimento dos cristãos sem Igreja, representado nos
primeiros tempos pelos paulicianos e os bogomilos, e mais tarde pelos
valdensianos e todos os outros — os chamados sectários. Isso só
podia ser feito, e o foi, por pessoas pobres, não pelos poderosos.
Apenas alguns poucos entre os ricos e fortes, como Francisco de Assis
e outros, aceitaram a doutrina cristã em seu sentido vital, ainda
que ela destruísse a sua posição superior. A maior parte das
pessoas da aristocracia, embora no fundo do coração também tivesse
perdido a fé na doutrina da Igreja, era incapaz ou não estava
disposta a fazer o mesmo, porque a essência da visão cristã de
mundo que teria que adotar, se renunciasse à fé da Igreja, era a de
fraternidade e, portanto, a de igualdade dos homens — e tal
doutrina lhe negaria as prerrogativas pelas quais vivia e nas quais
tinha crescido e sido educada, e com que estava acostumada. No fundo
do coração, não acreditavam na doutrina da Igreja, que havia
durado além de sua época e já não tinha nenhum sentido verdadeiro
para eles. E, como eram incapazes de adotar o verdadeiro
cristianismo, as pessoas das classes ricas dominantes — papas,
reis, duques e todo o poder deste mundo — viram-se sem qualquer
religião, com nada além de suas formas exteriores, que mantiveram,
considerando-as não somente lucrativas, mas necessárias a si
mesmos, pois essa doutrina justificava as vantagens de que
desfrutavam. Essencialmente, essas pessoas não acreditavam em nada,
tal como os romanos instruídos dos primeiros séculos. No entanto, o
poder e a riqueza estavam em suas mãos, e foram eles que
incentivaram a arte e a orientaram. E foi assim que, entre esses
povos, começou a se desenvolver uma arte que era avaliada não pelo
quão bem ela expressava sentimentos resultantes da consciência
religiosa do povo, mas somente considerando quão bela era — em
outras palavras, quanto prazer proporcionava.
Incapazes
agora de acreditar na religião da Igreja, que tinha traído sua
própria mentira, e incapazes de adotar o verdadeiro ensinamento
cristão, que negava toda a vida delas, essas pessoas ricas e
poderosas, vendo-se sem nenhuma compreensão religiosa da existência,
voltaram-se indecisas para a visão de mundo pagã, que coloca o
sentido da vida no prazer pessoal. E assim se deu, na aristocracia, o
movimento que é conhecido como “o Renascimento da ciência e da
arte”, que, em sua essência, não foi somente a negação de toda
a religião, mas também o reconhecimento de sua inutilidade.
A
doutrina da Igreja, especialmente da Igreja católica romana, é um
sistema tão coerente que não pode ser alterado ou corrigido sem
destruir o todo. Assim que emergia uma dúvida sobre a infalibilidade
dos papas — o que ocorria então a todas as pessoas instruídas —,
inevitavelmente questionava-se também a verdade da tradição
católica. E essa dúvida demolia não apenas o papado e o
catolicismo, mas toda a fé da Igreja, como todos os seus dogmas, a
divindade de Cristo, a ressurreição, a Trindade. Ela destruía
também a autoridade das Escrituras, porque estas eram reconhecidas
como sagradas somente porque a tradição tinha declarado assim.
E,
dessa forma, a maior parte daqueles que pertenciam às classes mais
altas daquela época, mesmo papas e clérigos, essencialmente não
acreditava em nada. Eles não acreditavam no ensinamento da Igreja
porque viam sua falsidade, nem podiam reconhecer o ensinamento moral
de Cristo, como fora reconhecido por Francisco de Assis, Kelchitsky e
a maior parte dos sectários, porque esse ensinamento destruiria sua
posição social. Portanto, essas pessoas ficaram sem visão
religiosa do mundo. E, não tendo essa visão, não podiam ter nenhum
outro padrão para avaliar a boa e a má arte, a não ser o prazer
pessoal. Tendo reconhecido o prazer — isto é, a beleza — como o
padrão do que é bom, a aristocracia europeia voltou-se, em sua
compreensão da arte, para o rude entendimento dos gregos primitivos,
já condenado por Platão. E, em correspondência a essa compreensão,
tomou forma entre eles uma teoria da arte.
Leon Tolstói, in O que é arte?
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