Vênus tirando a sandália (1852), de Ivan Vitali
Mas
como pôde acontecer que a mesma arte, que nos tempos antigos era ou
meramente tolerada ou totalmente rejeitada, tenha vindo a ser
considerada em nossos dias uma coisa invariavelmente boa, desde que
proporcione prazer?
Isso
aconteceu pelas razões apresentadas a seguir.
A
apreciação dos méritos da arte — isto é, dos sentimentos que
ela transmite — depende do entendimento que as pessoas têm do
significado da vida, do que elas veem como bom ou mau. O bem e o mal
da vida são determinados pelas assim chamadas religiões.
A
humanidade move-se incessantemente de um entendimento mais baixo,
mais parcial e menos claro da vida para um que seja mais alto, mais
amplo e mais claro. E, como em todo movimento, nesse também existem
líderes — aqueles que entendem o significado da vida mais
claramente do que outros —, e entre estes sempre há um que, em
suas palavras e em sua vida, tenha manifestado de forma mais vívida,
acessível e vigorosa esse significado da vida. A manifestação, por
esse homem, desse significado, juntamente com as tradições e ritos
que geralmente se formam em torno da memória de tal homem, é
denominado religião. As religiões são indicadores da mais alta
compreensão da vida acessível em uma dada época, em uma dada
sociedade, aos melhores líderes, o que é inevitável e
infalivelmente compartilhado por todo o restante da sociedade. E,
somente por causa disso, as religiões sempre serviram e servirão de
base para a avaliação do sentimento das pessoas. Se esses
sentimentos as aproximam do ideal para o qual sua religião aponta,
concordam com ele e não o contradizem, eles são bons; se as afastam
desse ideal, discordam dele ou o contradizem, eles são maus.
Se
a religião coloca o sentido da vida na adoração de um Deus único
e no cumprimento do que é considerado Sua vontade, como no judaísmo,
os sentimentos transmitidos pela arte e que resultam do amor a esse
Deus e à Sua lei — a poesia sagrada dos profetas, os Salmos, as
histórias no livro do Gênesis — constituem arte boa e elevada.
Tudo que se opõe a isso, como por exemplo transmitir o sentimento da
adoração a outros deuses ou sentimentos discordantes da lei de
Deus, será considerado arte ruim. Se a religião coloca o sentido da
vida na felicidade terrestre, na beleza e na força, a arte que
transmite o regozijo e o gozo da vida será considerada boa arte,
enquanto a que transmite sentimentos de fragilidade ou depressão
será arte ruim, como se pensava entre os gregos. Se o sentido da
vida está no bem da nação ou em continuar o modo de vida dos
ancestrais e reverenciá-los, a arte que transmite o sentimento de
alegria no sacrifício do bem pessoal pelo bem da nação ou pela
glorificação dos antepassados e manutenção da tradição será
considerada boa arte, enquanto a arte que expressa sentimentos
contrários a esses será considerada ruim, como entre os romanos e
chineses. Se o sentido da vida está em libertar-se do jugo da
animalidade, a arte que transmite sentimentos que elevam a alma e
humilham a carne será boa, como se considera no budismo, e tudo que
transmite sentimentos que acentuam as paixões do corpo será
considerada arte ruim.
Sempre,
em todas as épocas e em todos os grupamentos humanos, existiu essa
consciência religiosa, comum a todas as pessoas de uma sociedade,
sobre o que é bom e o que é mau, e é essa consciência que
determina o valor dos sentimentos transmitidos pela arte. E sempre,
portanto, em todas as nações, a arte que transmitia sentimentos
resultantes da consciência religiosa comum ao povo da nação era
considerada boa e incentivada, enquanto a que transmitia sentimentos
discordantes dessa consciência era reconhecida como má e rejeitada;
todo o enorme campo restante da arte pela qual o povo se comunicava
entre si não era nem um pouco valorizado e era rejeitado somente
quando contrariava a consciência religiosa de sua época. Assim foi
em todas as nações: gregos, judeus, hindus, egípcios, chineses.
Foi assim, também, quando apareceu o cristianismo.
O
cristianismo dos primeiros tempos reconhecia como boas obras de arte
somente as fábulas, vidas dos santos, sermões, orações e hinos
que invocavam no povo o sentimento de amor por Cristo e de ser tocado
por sua história, o desejo de seguir seu exemplo, a renúncia da
vida terrestre, a humildade e o amor ao próximo. Todas as obras que
transmitiam sentimentos de prazer pessoal eram consideradas más, e
portanto o cristianismo rejeitava toda a arte plástica pagã,
permitindo somente imagens plásticas simbólicas.
Assim
foi entre os cristãos dos primeiros séculos, que receberam o
ensinamento de Cristo, se não exatamente na sua verdadeira forma,
ainda não de uma forma pervertida, pagã, tal como foi aceito mais
tarde. Com a conversão de nações inteiras ao cristianismo, por
decreto de um governante, como ocorreu sob Constantino, Carlos Magno
e Vladimir, apareceu um cristianismo diferente, um cristianismo da
Igreja, mais próximo do paganismo do que dos ensinamentos de Cristo.
Esse cristianismo da Igreja, com base em sua própria doutrina,
começou a avaliar de maneira bem diferente os sentimentos dos homens
e as obras de arte que os transmitiam. Essa religião não apenas não
reconhecia as teses básicas e essenciais do verdadeiro cristianismo
— a relação direta de cada pessoa com o Pai e, a partir disso, a
fraternidade e igualdade de todos os homens, que resulta na
substituição de todas as formas de violência por humildade e amor
—, como, ao contrário, havendo estabelecido uma hierarquia celeste
similar à mitologia pagã e o seu culto, o culto de Cristo, da Mãe
de Deus, dos anjos, apóstolos, santos e mártires, e não somente
dessas divindades, como também de suas imagens, esse cristianismo
instaurou a fé cega na Igreja e em suas constituições como a
essência da doutrina.
Ainda
que essa doutrina fosse estranha ao verdadeiro cristianismo, ainda
que fosse degradada, não apenas em comparação àquele, mas também
em relação à visão de mundo de um romano como Juliano, ainda
assim, para os bárbaros que a seguiram, era uma doutrina mais
elevada do que seu culto anterior de deuses, heróis, espíritos bons
e maus. E, portanto, era uma religião para os bárbaros que a
acataram. E foi com base nessa religião que a arte da época foi
avaliada: a arte que retratava a piedosa veneração da Mãe de Deus,
Jesus, santos e anjos, a fé cega na Igreja e a obediência a ela, o
medo dos tormentos e a esperança de gozo na vida após a morte, era
considerada boa; a arte que se opunha a isso era considerada má.
A
doutrina com base na qual emergiu essa arte era uma deturpação do
ensinamento de Cristo, mas a arte que emergiu desse ensinamento
desfigurado ainda era verdadeira, porque correspondia à visão de
mundo religiosa do povo no seio do qual ela surgiu.
Os
artistas da Idade Média, que compartilhavam com as massas populares
a mesma religião, como base de seus sentimentos, enquanto
transmitiam na arquitetura, escultura, pintura, música, poesia e
drama os sentimentos e disposições que vivenciavam, eram
verdadeiros artistas, e a sua atividade, baseada no mais alto
entendimento acessível para aquele tempo e partilhada por todos,
ainda que pareça mais baixa para a nossa época, era entretanto arte
verdadeira, comum a todo o povo.
E
assim foi até que surgiu, entre as classes mais altas, ricas e
instruídas da sociedade europeia uma dúvida quanto à verdade da
compreensão da vida expressa pelo cristianismo da Igreja. Mas
quando, após as Cruzadas, depois que o poder papal se tornou
altamente desenvolvido e igualmente abusado, depois que as pessoas
das camadas ricas se familiarizaram com a sabedoria antiga e viram,
por um lado, a lucidez racional dos antigos sábios, e, por outro, a
falta de correspondência entre os ensinamentos da Igreja e o
ensinamento de Cristo, tornou-se impossível para elas acreditar,
como antes, na doutrina da Igreja.
Se,
ostensivamente, essas pessoas ainda obedeciam às formas da doutrina
da Igreja, elas já não eram capazes de acreditar nela e a seguiam
apenas por inércia, ou em nome do povo, que continuava a acreditar
cegamente no seu ensinamento e cuja crença as pessoas da
aristocracia consideravam necessário apoiar para o bem de seu
próprio lucro. Assim, a doutrina cristã da Igreja deixou de ser, a
certa altura, a doutrina geral de todo o povo cristão. Alguns — as
camadas superiores, aqueles em cujas mãos estavam o poder e a
riqueza, e portanto o tempo livre e os meios para produzir e
patrocinar a arte — pararam de acreditar na doutrina da Igreja,
enquanto o povo continuou a acreditar cegamente nela.
Com
relação à religião, as classes superiores na Idade Média se
viram na mesma situação dos romanos instruídos antes do
aparecimento do cristianismo — isto é, já não acreditavam
naquilo que o povo acreditava, mas não tinham eles mesmos nenhuma
crença que pudessem colocar no lugar da obsoleta doutrina cristã,
que tinha perdido o sentido para eles.
A
única diferença era que, enquanto os romanos que perderam a fé em
seus imperadores-deuses e em suas divindades domésticas, nada mais
tendo a extrair de toda a complexa mitologia que haviam tomado
emprestada de todos os povos que conquistaram, tiveram que adotar uma
visão de mundo totalmente nova, as pessoas da Idade Média que
questionavam a verdade da doutrina católica da Igreja não tiveram
que procurar um novo ensinamento. A mesma fé cristã, que
confessavam em sua forma deturpada como a doutrina católica da
Igreja, havia mapeado o caminho para a humanidade tão mais à frente
que eles só tiveram que descartar as perversões que obscureciam o
ensinamento descoberto por Cristo e adotá-lo, se não no todo, pelo
menos em uma pequena parcela de seu significado (maior, entretanto,
do que aquele adotado pela Igreja). Exatamente isso foi feito em
parte, não somente pela Reforma de Wyclif, Hus, Lutero e Calvino,
mas por todo o movimento dos cristãos sem Igreja, representado nos
primeiros tempos pelos paulicianos e os bogomilos, e mais tarde pelos
valdensianos e todos os outros — os chamados sectários. Isso só
podia ser feito, e o foi, por pessoas pobres, não pelos poderosos.
Apenas alguns poucos entre os ricos e fortes, como Francisco de Assis
e outros, aceitaram a doutrina cristã em seu sentido vital, ainda
que ela destruísse a sua posição superior. A maior parte das
pessoas da aristocracia, embora no fundo do coração também tivesse
perdido a fé na doutrina da Igreja, era incapaz ou não estava
disposta a fazer o mesmo, porque a essência da visão cristã de
mundo que teria que adotar, se renunciasse à fé da Igreja, era a de
fraternidade e, portanto, a de igualdade dos homens — e tal
doutrina lhe negaria as prerrogativas pelas quais vivia e nas quais
tinha crescido e sido educada, e com que estava acostumada. No fundo
do coração, não acreditavam na doutrina da Igreja, que havia
durado além de sua época e já não tinha nenhum sentido verdadeiro
para eles. E, como eram incapazes de adotar o verdadeiro
cristianismo, as pessoas das classes ricas dominantes — papas,
reis, duques e todo o poder deste mundo — viram-se sem qualquer
religião, com nada além de suas formas exteriores, que mantiveram,
considerando-as não somente lucrativas, mas necessárias a si
mesmos, pois essa doutrina justificava as vantagens de que
desfrutavam. Essencialmente, essas pessoas não acreditavam em nada,
tal como os romanos instruídos dos primeiros séculos. No entanto, o
poder e a riqueza estavam em suas mãos, e foram eles que
incentivaram a arte e a orientaram. E foi assim que, entre esses
povos, começou a se desenvolver uma arte que era avaliada não pelo
quão bem ela expressava sentimentos resultantes da consciência
religiosa do povo, mas somente considerando quão bela era — em
outras palavras, quanto prazer proporcionava.
Incapazes
agora de acreditar na religião da Igreja, que tinha traído sua
própria mentira, e incapazes de adotar o verdadeiro ensinamento
cristão, que negava toda a vida delas, essas pessoas ricas e
poderosas, vendo-se sem nenhuma compreensão religiosa da existência,
voltaram-se indecisas para a visão de mundo pagã, que coloca o
sentido da vida no prazer pessoal. E assim se deu, na aristocracia, o
movimento que é conhecido como “o Renascimento da ciência e da
arte”, que, em sua essência, não foi somente a negação de toda
a religião, mas também o reconhecimento de sua inutilidade.
A
doutrina da Igreja, especialmente da Igreja católica romana, é um
sistema tão coerente que não pode ser alterado ou corrigido sem
destruir o todo. Assim que emergia uma dúvida sobre a infalibilidade
dos papas — o que ocorria então a todas as pessoas instruídas —,
inevitavelmente questionava-se também a verdade da tradição
católica. E essa dúvida demolia não apenas o papado e o
catolicismo, mas toda a fé da Igreja, como todos os seus dogmas, a
divindade de Cristo, a ressurreição, a Trindade. Ela destruía
também a autoridade das Escrituras, porque estas eram reconhecidas
como sagradas somente porque a tradição tinha declarado assim.
E,
dessa forma, a maior parte daqueles que pertenciam às classes mais
altas daquela época, mesmo papas e clérigos, essencialmente não
acreditava em nada. Eles não acreditavam no ensinamento da Igreja
porque viam sua falsidade, nem podiam reconhecer o ensinamento moral
de Cristo, como fora reconhecido por Francisco de Assis, Kelchitsky e
a maior parte dos sectários, porque esse ensinamento destruiria sua
posição social. Portanto, essas pessoas ficaram sem visão
religiosa do mundo. E, não tendo essa visão, não podiam ter nenhum
outro padrão para avaliar a boa e a má arte, a não ser o prazer
pessoal. Tendo reconhecido o prazer — isto é, a beleza — como o
padrão do que é bom, a aristocracia europeia voltou-se, em sua
compreensão da arte, para o rude entendimento dos gregos primitivos,
já condenado por Platão. E, em correspondência a essa compreensão,
tomou forma entre eles uma teoria da arte.
Leon Tolstói, in O que é arte?
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