sexta-feira, 30 de junho de 2023

A carga do O-fune-sama


[...]
Os barcos permaneceram ao redor do navio por algum tempo antes de começar a transportar o que parecia ser a carga do navio para a praia. Essa atividade se tornou mais intensa à medida que os barquinhos faziam o percurso entre a praia e o navio.
As velas sem vida foram removidas e o mastro cortado e lançado na água. Um dos barcos se dirigiu para o ponto onde o mastro flutuava e o rebocou para a praia. A carga foi empilhada na praia e parecia realmente ser composta de fardos de arroz.
Sentindo fome, Isaku comeu alguns dos feijões que tinha trazido.
É uma carga e tanto — disse Gonsuke, a voz trêmula enquanto olhava para baixo.
Isso é mais do que outros O-fune-sama do passado? — perguntou Isaku.
Houve alguns navios bem grandes, mas esse volume de carga não é comum. Há muita coisa ali na praia, e ainda não tiraram tudo do navio.
Os olhos de Gonsuke brilhavam de excitação. Sem dúvida, ele sabia o que estava falando, já que exercia a função de vigia toda vez que O-fune-sama aparecia. Isaku sentiu o excitamento crescer dentro de si ao pensar na excepcional quantidade de carga.
O que você acha que tem a bordo? — perguntou ele.
Bem, antes de mais nada, deve haver arroz, e talvez mercadorias como feijão, tecidos, louça, tabaco, papel para escrever, óleo e açúcar. Uma vez houve um barco que carregava vinte caixas de vinho — disse ele, mostrando os dentes lascados ao sorrir.
Por volta da hora do pôr-do-sol, finalmente pareceu a Isaku que a carga do navio fora toda removida. A atividade na baía começou a diminuir, a maioria dos barcos foi empurrada para a areia, e os habitantes da aldeia começaram a carregar os volumes da praia para a casa do chefe.
A neve nas montanhas que se erguiam atrás da aldeia ficaram tingidas de púrpura antes de dar lugar à noite. Lá embaixo na praia a luz do fogo subitamente piscou, e a aldeia mergulhou na escuridão.
Isaku ajudou Gonsuke a cavar na neve profunda que se acumulara por trás de uma pedra enorme, forrando o interior com folhas secas e grama. Depois eles cruzaram varetas por cima do buraco e colocaram casca de árvore por cima, então entraram no buraco e deitaram um de costas para o outro.
Apesar da temperatura fria, o ar dentro do buraco foi ficando cada vez mais quente. Gonsuke começou a roncar.
Isaku ficou ali deitado no escuro, os olhos bem abertos. Sem dúvida o chefe da aldeia faria com que os presentes de O-fune-sama fossem distribuídos igualmente entre todas as famílias, de acordo com o número de pessoas em cada uma. Como a maior parte da carga com certeza consistia em arroz, Isaku ficou imensamente feliz com a ideia de saborear tal delícia. Seu irmão e irmã menores nunca tinham experimentado arroz, e ele mal podia esperar o momento de servir a eles sopa de arroz. Podia imaginar como o delicioso gosto adocicado da sopa branca os deixaria surpresos.
Gonsuke devia estar certo quanto ao teor da carga, e naturalmente isso queria dizer que cada família poderia esperar receber uma quantidade generosa de alimento e outras coisas. Sem quantidade excedente de saury para vender, e com a fraca pesca de polvos no outono, que permitira que comprassem apenas uns poucos grãos, a chegada de O-fune-sama era a salvação da aldeia, e significava o fim do medo da fome. Se usado de forma adequada, o presente duraria por dois ou até três anos. Não haveria necessidade de mais pais de família se venderem como servos, e todos poderiam viver em paz e em segurança por um bom tempo. Tami ficaria com a família, e Takichi continuaria a passar seus dias como pescador e pai de seu filho.
Isaku colocou a mão no peito. A chegada de O-fune-sama devia-se à intervenção divina, e Isaku queria oferecer uma oração de gratidão, do fundo do coração.
O som das ondas quebrando ao pé do promontório parecia reverberar até o centro da terra. Antes que se desse conta, ele já estava dormindo.
Isaku acordou sendo sacudido pelo ombro.
Gonsuke se levantou e afastou os galhos e casca de árvore que cobriam o buraco. Isaku sentiu o ar frio entrar. Ainda havia estrelas no céu, mas estavam perdendo o brilho.
Isaku rastejou para fora do buraco. Gonsuke estava assoprando para reavivar as brasas do fogo, e em pouco tempo mais galhos estavam queimando.
Isaku se aqueceu ao fogo enquanto olhava para o mar. O dia nascia, o mar estava calmo. Lá embaixo, na baía, o trabalho já havia começado; ele via o que deviam ser tochas instaladas nos barcos que se moviam na água, assim como no navio naufragado.
Gonsuke cozinhou dois saury salgados no fogo, entregando um para Isaku. A gordura pingava do peixe quente, e ele o comeu com os feijões, o que neutralizou o sabor salgado do saury, produzindo um gosto incrivelmente bom.
O dia raiou, e o mar foi envolto na claridade da manhã. Borrifos de água subiam uns atrás dos outros no costado do navio enquanto pranchas de madeira e toras eram lançadas na água.
Parece que eles estão desmontando O-fune-sama — disse Isaku, forçando os olhos para ver o que estava acontecendo.
É porque o barco é feito de madeira boa. Pode ser usada para qualquer coisa. Há pregos e dobradiças ali também. E todas as panelas e jarros da cozinha, sem falar nas facas, baldes e cuias de arroz. Às vezes eles têm até armários ou baús — disse Gonsuke, entusiasmado.
Agora Isaku compreendia por que os mais velhos tinham se preocupado em pegar serras, machados e enxadas. O navio estava sendo desmontado e a madeira era lançada na água.
Os barcos rebocavam a madeira para a praia, onde era empilhada na areia. Dali seria carregada para a floresta atrás da aldeia.
Isaku e Gonsuke olharam para o mar; não havia sinal de barcos. Ao leste podiam ver agora grupos de aves marinhas circulando no ar como flocos de neve, e os reflexos de um cardume de peixes subindo à superfície logo abaixo deles. Não se via nenhuma fumaça do outro lado da baía tampouco, na Ponta da Maré.
Dois barcos pequenos começaram a se mover, afastando-se do navio e seguindo na direção do promontório onde Isaku e Gonsuke se encontravam.
Eles estão levando os corpos para longe — explicou Gonsuke.
Isaku prestou atenção. Podia ver claramente um volume coberto com esteiras de palha no fundo dos barcos. Finalmente, os barcos sumiram de vista, um depois do outro, lá embaixo ao pé do cabo.
O tumulto ao redor do navio continuava, e logo o barco perdeu seu aspecto original. O trabalho prosseguia depressa, e parte da popa, onde ficava o leme quebrado, já tinha desaparecido. Isaku viu um barco carregando as velas.
Logo depois da Hora do Cavalo, a única parte que restava nas pedras era o fundo do casco. Havia pessoas em pé no recife trabalhando no navio com velocidade impressionante.
Quando a madeira do que pareciam ser beliches foi rebocada, tudo que restou flutuando na água foram pedaços da quilha. Quando estes foram rebocados para a praia, os últimos destroços do navio desapareceram da baía rochosa, deixando nada além de um mar plácido.
Alguma vez você viu um barco vindo para cá quando estava de vigia? — perguntou Isaku, aos poucos perdendo o interesse na atividade lá embaixo.
Sim, eu vi. Dois em um mesmo dia — disse Gonsuke, olhando para o mar.
Um fio de fumaça ergueu-se no ar.
É o sinal de que eles terminaram. É para nós também — disse Gonsuke, jogando neve no fogo. — Vamos descer e dar uma olhada no que eles conseguiram. Parecia ser um casco de bom tamanho — acrescentou ele, balançando o machado que foi equilibrado no ombro.
Isaku seguiu Gonsuke pela floresta, contornando as árvores enquanto se esforçava para acompanhar os passos rápidos do outro. Animado, ele sentia como se estivesse flutuando no ar. Sem dúvida sua mãe e Isokichi tinham trabalhado o dia todo junto com os outros da aldeia.
Ele queria tomar parte na animação da vila o mais depressa possível. Quando chegaram à trilha na montanha, Gonsuke, com o machado no ombro, apressou o passo, começando a correr, com Isaku logo atrás, impaciente para ver os presentes que O-fune-sama havia trazido.
Saindo do meio das árvores, eles avistaram a praia lá embaixo, à direita. Esperavam ver as pessoas dançando e comemorando, mas em vez disso todos estavam imóveis perto da água. Surpreso, Isaku parou de correr por um segundo, mas, como Gonsuke continuou em frente encosta abaixo, ele o seguiu.
Gonsuke deixou a trilha e entrou na praia. Ofegante, Isaku caminhou até onde todos se encontravam.
Os habitantes da aldeia estavam reunidos ao redor do chefe, as palmas unidas, olhando para o mar. Isaku finalmente compreendeu que estavam oferecendo preces em agradecimento pelos presentes que o mar trouxera. Quando o chefe da aldeia terminou a oração, o velho parado ao lado dele virou-se para os outros e com a voz animada disse:
Muito bem. Seu trabalho deixou o chefe feliz. Agora vão para casa e passem o resto do dia orando para seus ancestrais. O presente de O-fune-sama será avaliado amanhã.
O chefe deixou o local perto da água, seguido pelos outros, sem que ninguém dissesse uma palavra, mas o brilho em seus olhos e o largo sorriso diziam tudo. Empurrado por Gonsuke, Isaku deu um passo, parando diante do velho. O velho ficou satisfeito quando Gonsuke disse que não tinha havido sinal algum de navios se aproximando.
Isaku se curvou reverentemente e caminhou para casa. Quando afastou a esteira de palha pendurada à porta para entrar em casa, a mãe virou-se para ele sem parar de orar diante do ihai, a placa ancestral de sua família. Ela parecia completamente diferente, o rosto corado de felicidade, os cantos da boca virados para cima de um modo que Isaku nunca tinha visto antes.
Ele entrou, juntou as palmas diante da placa ancestral e sentou-se junto do fogo. Sentindo outra onda de felicidade, conteve-se para não pular e dançar pela sala.
O sol tinha começado a se pôr e a temperatura caía. A mãe começou a aquecer o jarro de água com as sementes de trigo-mouro, então pegou um pouco de saury salgado e colocou junto do fogo. Obviamente a refeição seria muito mais generosa que de costume.
O que havia em O-fune-sama? — perguntou Isaku à mãe.
Arroz, muito arroz — disse ela pausadamente, para aumentar o efeito.
E o que mais?
Havia algodão e também óleo de semente de coza. Cera, chá, vinho e molho de soja, vinagre e tapetes. Mas o arroz... Este O-fune-sama era um navio de arroz — disse a mãe, animada.
Que grande dia é este, pensou Isaku. Era uma alegria ver sua mãe tão falante, e ele sentia que a alegria dela estava contagiando não apenas a ele mas também seu irmão e a irmã; eles estavam sentados, sorrindo, ao seu lado. Quando as sementes de trigo começaram a boiar na água, a mãe acrescentou legumes e algas. A sala ficou escura e os rostos deles tinham reflexos vermelhos por causa das chamas. A fumaça começou a subir dos saury colocados no fogo. A mãe encheu as cuias uma a uma, serviu Isaku primeiro, depois o irmão e então a irmã, antes de se servir.
Isaku mordiscou um saury e tomou um gole da sopa de legumes. No dia seguinte o arroz seria distribuído, e ele se sentia nas nuvens com a ideia de ver a expressão do irmão e da irmã quando experimentassem sopa de arroz pela primeira vez.
Só mais um ano e um pouquinho agora — sussurrou a mãe quando pegou sua cuia.
Isaku olhou para ela, imaginando o que ela queria dizer, mas logo percebeu pelo brilho em seus olhos que ela estava pensando em seu pai. Ele tinha partido para um contrato de servidão de três anos, que terminaria mais ou menos na época em que a neve derretesse no ano seguinte ao próximo. Parte dos presentes de O-fune-sama sem dúvida ainda existiria, o que tiraria um peso da consciência de seu pai. Se os encontrasse passando fome, o pai poderia considerar a ideia de se vender como servo mais uma vez; mas agora tal medo estava afastado.
[…]

Akira Yoshimura, in Naufrágios

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