[...]
Os
barcos permaneceram ao redor do navio por algum tempo antes de
começar a transportar o que parecia ser a carga do navio para a
praia. Essa atividade se tornou mais intensa à medida que os
barquinhos faziam o percurso entre a praia e o navio.
As
velas sem vida foram removidas e o mastro cortado e lançado na água.
Um dos barcos se dirigiu para o ponto onde o mastro flutuava e o
rebocou para a praia. A carga foi empilhada na praia e parecia
realmente ser composta de fardos de arroz.
Sentindo
fome, Isaku comeu alguns dos feijões que tinha trazido.
— É
uma carga e tanto — disse Gonsuke, a voz trêmula enquanto olhava
para baixo.
— Isso
é mais do que outros O-fune-sama do passado? — perguntou
Isaku.
— Houve
alguns navios bem grandes, mas esse volume de carga não é comum. Há
muita coisa ali na praia, e ainda não tiraram tudo do navio.
Os
olhos de Gonsuke brilhavam de excitação. Sem dúvida, ele sabia o
que estava falando, já que exercia a função de vigia toda vez que
O-fune-sama aparecia. Isaku sentiu o excitamento crescer
dentro de si ao pensar na excepcional quantidade de carga.
— O
que você acha que tem a bordo? — perguntou ele.
— Bem,
antes de mais nada, deve haver arroz, e talvez mercadorias como
feijão, tecidos, louça, tabaco, papel para escrever, óleo e
açúcar. Uma vez houve um barco que carregava vinte caixas de vinho
— disse ele, mostrando os dentes lascados ao sorrir.
Por
volta da hora do pôr-do-sol, finalmente pareceu a Isaku que a carga
do navio fora toda removida. A atividade na baía começou a
diminuir, a maioria dos barcos foi empurrada para a areia, e os
habitantes da aldeia começaram a carregar os volumes da praia para a
casa do chefe.
A
neve nas montanhas que se erguiam atrás da aldeia ficaram tingidas
de púrpura antes de dar lugar à noite. Lá embaixo na praia a luz
do fogo subitamente piscou, e a aldeia mergulhou na escuridão.
Isaku
ajudou Gonsuke a cavar na neve profunda que se acumulara por trás de
uma pedra enorme, forrando o interior com folhas secas e grama.
Depois eles cruzaram varetas por cima do buraco e colocaram casca de
árvore por cima, então entraram no buraco e deitaram um de costas
para o outro.
Apesar
da temperatura fria, o ar dentro do buraco foi ficando cada vez mais
quente. Gonsuke começou a roncar.
Isaku
ficou ali deitado no escuro, os olhos bem abertos. Sem dúvida o
chefe da aldeia faria com que os presentes de O-fune-sama
fossem distribuídos igualmente entre todas as famílias, de acordo
com o número de pessoas em cada uma. Como a maior parte da carga com
certeza consistia em arroz, Isaku ficou imensamente feliz com a ideia
de saborear tal delícia. Seu irmão e irmã menores nunca tinham
experimentado arroz, e ele mal podia esperar o momento de servir a
eles sopa de arroz. Podia imaginar como o delicioso gosto adocicado
da sopa branca os deixaria surpresos.
Gonsuke
devia estar certo quanto ao teor da carga, e naturalmente isso queria
dizer que cada família poderia esperar receber uma quantidade
generosa de alimento e outras coisas. Sem quantidade excedente de
saury para vender, e com a fraca pesca de polvos no outono, que
permitira que comprassem apenas uns poucos grãos, a chegada de
O-fune-sama era a salvação da aldeia, e significava o fim do
medo da fome. Se usado de forma adequada, o presente duraria por dois
ou até três anos. Não haveria necessidade de mais pais de família
se venderem como servos, e todos poderiam viver em paz e em segurança
por um bom tempo. Tami ficaria com a família, e Takichi continuaria
a passar seus dias como pescador e pai de seu filho.
Isaku
colocou a mão no peito. A chegada de O-fune-sama devia-se à
intervenção divina, e Isaku queria oferecer uma oração de
gratidão, do fundo do coração.
O
som das ondas quebrando ao pé do promontório parecia reverberar até
o centro da terra. Antes que se desse conta, ele já estava dormindo.
Isaku
acordou sendo sacudido pelo ombro.
Gonsuke
se levantou e afastou os galhos e casca de árvore que cobriam o
buraco. Isaku sentiu o ar frio entrar. Ainda havia estrelas no céu,
mas estavam perdendo o brilho.
Isaku
rastejou para fora do buraco. Gonsuke estava assoprando para reavivar
as brasas do fogo, e em pouco tempo mais galhos estavam queimando.
Isaku
se aqueceu ao fogo enquanto olhava para o mar. O dia nascia, o mar
estava calmo. Lá embaixo, na baía, o trabalho já havia começado;
ele via o que deviam ser tochas instaladas nos barcos que se moviam
na água, assim como no navio naufragado.
Gonsuke
cozinhou dois saury salgados no fogo, entregando um para
Isaku. A gordura pingava do peixe quente, e ele o comeu com os
feijões, o que neutralizou o sabor salgado do saury,
produzindo um gosto incrivelmente bom.
O
dia raiou, e o mar foi envolto na claridade da manhã. Borrifos de
água subiam uns atrás dos outros no costado do navio enquanto
pranchas de madeira e toras eram lançadas na água.
— Parece
que eles estão desmontando O-fune-sama — disse Isaku,
forçando os olhos para ver o que estava acontecendo.
— É
porque o barco é feito de madeira boa. Pode ser usada para qualquer
coisa. Há pregos e dobradiças ali também. E todas as panelas e
jarros da cozinha, sem falar nas facas, baldes e cuias de arroz. Às
vezes eles têm até armários ou baús — disse Gonsuke,
entusiasmado.
Agora
Isaku compreendia por que os mais velhos tinham se preocupado em
pegar serras, machados e enxadas. O navio estava sendo desmontado e a
madeira era lançada na água.
Os
barcos rebocavam a madeira para a praia, onde era empilhada na areia.
Dali seria carregada para a floresta atrás da aldeia.
Isaku
e Gonsuke olharam para o mar; não havia sinal de barcos. Ao leste
podiam ver agora grupos de aves marinhas circulando no ar como flocos
de neve, e os reflexos de um cardume de peixes subindo à superfície
logo abaixo deles. Não se via nenhuma fumaça do outro lado da baía
tampouco, na Ponta da Maré.
Dois
barcos pequenos começaram a se mover, afastando-se do navio e
seguindo na direção do promontório onde Isaku e Gonsuke se
encontravam.
— Eles
estão levando os corpos para longe — explicou Gonsuke.
Isaku
prestou atenção. Podia ver claramente um volume coberto com
esteiras de palha no fundo dos barcos. Finalmente, os barcos sumiram
de vista, um depois do outro, lá embaixo ao pé do cabo.
O
tumulto ao redor do navio continuava, e logo o barco perdeu seu
aspecto original. O trabalho prosseguia depressa, e parte da popa,
onde ficava o leme quebrado, já tinha desaparecido. Isaku viu um
barco carregando as velas.
Logo
depois da Hora do Cavalo, a única parte que restava nas pedras era o
fundo do casco. Havia pessoas em pé no recife trabalhando no navio
com velocidade impressionante.
Quando
a madeira do que pareciam ser beliches foi rebocada, tudo que restou
flutuando na água foram pedaços da quilha. Quando estes foram
rebocados para a praia, os últimos destroços do navio desapareceram
da baía rochosa, deixando nada além de um mar plácido.
— Alguma
vez você viu um barco vindo para cá quando estava de vigia? —
perguntou Isaku, aos poucos perdendo o interesse na atividade lá
embaixo.
— Sim,
eu vi. Dois em um mesmo dia — disse Gonsuke, olhando para o mar.
Um
fio de fumaça ergueu-se no ar.
— É
o sinal de que eles terminaram. É para nós também — disse
Gonsuke, jogando neve no fogo. — Vamos descer e dar uma olhada no
que eles conseguiram. Parecia ser um casco de bom tamanho —
acrescentou ele, balançando o machado que foi equilibrado no ombro.
Isaku
seguiu Gonsuke pela floresta, contornando as árvores enquanto se
esforçava para acompanhar os passos rápidos do outro. Animado, ele
sentia como se estivesse flutuando no ar. Sem dúvida sua mãe e
Isokichi tinham trabalhado o dia todo junto com os outros da aldeia.
Ele
queria tomar parte na animação da vila o mais depressa possível.
Quando chegaram à trilha na montanha, Gonsuke, com o machado no
ombro, apressou o passo, começando a correr, com Isaku logo atrás,
impaciente para ver os presentes que O-fune-sama havia
trazido.
Saindo
do meio das árvores, eles avistaram a praia lá embaixo, à direita.
Esperavam ver as pessoas dançando e comemorando, mas em vez disso
todos estavam imóveis perto da água. Surpreso, Isaku parou de
correr por um segundo, mas, como Gonsuke continuou em frente encosta
abaixo, ele o seguiu.
Gonsuke
deixou a trilha e entrou na praia. Ofegante, Isaku caminhou até onde
todos se encontravam.
Os
habitantes da aldeia estavam reunidos ao redor do chefe, as palmas
unidas, olhando para o mar. Isaku finalmente compreendeu que estavam
oferecendo preces em agradecimento pelos presentes que o mar
trouxera. Quando o chefe da aldeia terminou a oração, o velho
parado ao lado dele virou-se para os outros e com a voz animada
disse:
— Muito
bem. Seu trabalho deixou o chefe feliz. Agora vão para casa e passem
o resto do dia orando para seus ancestrais. O presente de O-fune-sama
será avaliado amanhã.
O
chefe deixou o local perto da água, seguido pelos outros, sem que
ninguém dissesse uma palavra, mas o brilho em seus olhos e o largo
sorriso diziam tudo. Empurrado por Gonsuke, Isaku deu um passo,
parando diante do velho. O velho ficou satisfeito quando Gonsuke
disse que não tinha havido sinal algum de navios se aproximando.
Isaku
se curvou reverentemente e caminhou para casa. Quando afastou a
esteira de palha pendurada à porta para entrar em casa, a mãe
virou-se para ele sem parar de orar diante do ihai, a placa
ancestral de sua família. Ela parecia completamente diferente, o
rosto corado de felicidade, os cantos da boca virados para cima de um
modo que Isaku nunca tinha visto antes.
Ele
entrou, juntou as palmas diante da placa ancestral e sentou-se junto
do fogo. Sentindo outra onda de felicidade, conteve-se para não
pular e dançar pela sala.
O
sol tinha começado a se pôr e a temperatura caía. A mãe começou
a aquecer o jarro de água com as sementes de trigo-mouro, então
pegou um pouco de saury salgado e colocou junto do fogo. Obviamente a
refeição seria muito mais generosa que de costume.
— O
que havia em O-fune-sama? — perguntou Isaku à mãe.
— Arroz,
muito arroz — disse ela pausadamente, para aumentar o efeito.
— E
o que mais?
— Havia
algodão e também óleo de semente de coza. Cera, chá, vinho e
molho de soja, vinagre e tapetes. Mas o arroz... Este O-fune-sama era
um navio de arroz — disse a mãe, animada.
Que
grande dia é este, pensou Isaku. Era uma alegria ver sua mãe tão
falante, e ele sentia que a alegria dela estava contagiando não
apenas a ele mas também seu irmão e a irmã; eles estavam sentados,
sorrindo, ao seu lado. Quando as sementes de trigo começaram a boiar
na água, a mãe acrescentou legumes e algas. A sala ficou escura e
os rostos deles tinham reflexos vermelhos por causa das chamas. A
fumaça começou a subir dos saury colocados no fogo. A mãe encheu
as cuias uma a uma, serviu Isaku primeiro, depois o irmão e então a
irmã, antes de se servir.
Isaku
mordiscou um saury e tomou um gole da sopa de legumes. No dia
seguinte o arroz seria distribuído, e ele se sentia nas nuvens com a
ideia de ver a expressão do irmão e da irmã quando experimentassem
sopa de arroz pela primeira vez.
— Só
mais um ano e um pouquinho agora — sussurrou a mãe quando pegou
sua cuia.
Isaku
olhou para ela, imaginando o que ela queria dizer, mas logo percebeu
pelo brilho em seus olhos que ela estava pensando em seu pai. Ele
tinha partido para um contrato de servidão de três anos, que
terminaria mais ou menos na época em que a neve derretesse no ano
seguinte ao próximo. Parte dos presentes de O-fune-sama sem
dúvida ainda existiria, o que tiraria um peso da consciência de seu
pai. Se os encontrasse passando fome, o pai poderia considerar a
ideia de se vender como servo mais uma vez; mas agora tal medo estava
afastado.
[…]
Akira Yoshimura, in Naufrágios
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