Morar é muito mais que se abrigar ou
viver sob um teto. O abrigo, o refúgio, a toca e o subsolo são
arquiteturas destinadas a certos animais, ou a seres humanos em tempo
de guerra.
Milhões de pessoas parecem repetir a
triste sina de uma personagem kafkiana, que constrói túneis e
passagens debaixo da terra e sobrevive acuado com temor e fome,
sempre ameaçado. Esse personagem, um homem-bicho, ou um ser humano
grotesco, está à espera de algo terrível, uma catástrofe ou
invasão, algo que não sabemos precisar. Ironicamente, o nome desse
relato de Kafka é A construção.
Sobre a terra, na superfície do imenso
território do Brasil, dezenas de milhões de brasileiros sobrevivem
em favelas. Grande paradoxo de um país com dimensão continental:
aos pobres e marginalizados não sobra espaço para morar. Só na
Grande São Paulo, mais de 1 milhão de pessoas moram em casas
pequenas, ou barracos amontoados em lugares com infraestrutura urbana
precária. Algo semelhante ocorre em outras grandes capitais: Manaus,
Belém, Rio, Belo Horizonte, Recife, Salvador, Porto Alegre…
Uma terrível ironia da história, da
nossa história recente: menos de dois anos depois do golpe militar,
o então presidente Humberto de Alencar Castelo Branco fez uma visita
a Manaus, onde inaugurou um conjunto de casas populares financiadas
pelo BNH. O carrancudo marechal entrou numa das casas e, quando saiu,
sufocado pelo calor e decepcionado com a visita, declarou à imprensa
que aquelas casinhas não eram propícias para seres humanos.
Pouca coisa mudou nos projetos de
habitação social depois da redemocratização. Recentemente,
construíram-se casas populares em Parintins — no Médio Amazonas
—, numa área desmatada, antes ocupada por castanheiras seculares.
Transformar a floresta equatorial em
deserto ou pasto já é uma burrice e uma ganância sem tamanho.
Construir casas nesse deserto é uma insanidade dos construtores e um
martírio para os moradores. Mas não é apenas na Amazônia que isso
acontece. Já vi conjuntos habitacionais construídos em áreas
devastadas na periferia de cidades do Paraná e de São Paulo, e
também na região do cerrado, próxima a Brasília, a capital
desfigurada, cercada por favelas.
O modelo Cingapura — uma favela
vertical — mostra a falência de certo tipo de projeto de habitação
social, que ainda é predominante. Revela também que a grandeza e a
riqueza do Brasil não se traduzem em moradias dignas nem em
qualidade de vida para uma parte expressiva de sua população.
“Construir, não como ilhar e prender”,
diz um verso do poeta João Cabral de Melo Neto. A sociedade e o
Estado brasileiro podem e devem reparar essa injustiça histórica e
dar a milhões de brasileiros uma moradia humana, e não abrigo ou
teto precário. Porque morar é muito mais do que sobreviver em
estado precário e provisório.
Milton Hatoum, in Um solitário
à espreita
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