quarta-feira, 1 de novembro de 2017

Kakânia

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Na idade em que ainda se levam a sério coisas como alfaiate e barbeiro e se gosta de olhar no espelho, muitas vezes nos imaginamos em algum lugar onde gostaríamos de passar a vida, ou pelo menos um lugar onde é elegante viver, mesmo sentindo que, pessoalmente, não seria tão bom estar lá. Uma dessas obsessões é há muito tempo uma espécie de cidade superamericana, onde todo mundo corre ou pára com cronômetro na mão. Céu e terra formam um formigueiro varado pelos diversos andares de ruas sobrepostas. Trens aéreos, trens terrestres, trens subterrâneos, pessoas transportadas por correio pneumático, comboios de automóveis disparam na horizontal, ascensores rápidos bombeiam verticalmente massas humanas de um nível de trânsito a outro; salta-se de um meio locomotor a outro nos pontos de junção, sem pensar, sugado e arrebatado pelo ritmo dos veículos, que entre duas corridas trovejantes fazem uma síncope, uma pausa, uma pequena brecha de vinte segundos; trocam-se algumas palavras nos intervalos desse ritmo geral. Perguntas e respostas articulam-se como peças de máquina, cada pessoa tem apenas tarefas bem determinadas, as profissões estão agrupadas em lugares certos, come-se em pleno movimento, as diversões estão reunidas noutras partes da cidade, e em outros locais encontram-se as torres onde ficam esposa, família, gramofone e alma. Tensão e distensão, atividade e amor são minuciosamente separadas no tempo, e equilibradas segundo experiências de laboratório. Caso haja alguma dificuldade em qualquer dessas ações, simplesmente se larga tudo; pois encontra-se outra coisa, ou eventualmente algum caminho melhor, ou outro encontrará o caminho que nós não achamos; não tem nenhuma importância, uma vez que nada causa tanto desperdício da força comum quanto presumir que se tem missão de não largar determinado objetivo pessoal. Numa comunidade através da qual correm energias, todo caminho leva a um bom objetivo, desde que não se hesite nem reflita demais. Os objetivos são a curto prazo; mas também a vida é curta, e assim conseguimos arrancar dela um máximo de realização. A pessoa não precisa mais que isso para ser feliz, pois aquilo que se obtém modela a alma, enquanto aquilo que se deseja, sem conseguir, apenas a deforma; para a felicidade importa muito pouco o que se deseja, mas apenas que seja obtido. Além disso, a zoologia ensina que de uma soma de indivíduos reduzidos pode resultar um todo genial.
Não é certo que tudo tenha de acontecer dessa maneira, mas esse tipo de ideias faz parte dos sonhos de viagem, nos quais se espelha a impressão de movimento incessante que nos arrebata. São superficiais, inquietas e breves. Sabe Deus o que virá. A cada minuto pensamos ter na mão um começo, e achamos que deveríamos traçar um plano para todos nós. Se as velocidades não nos agradam, inventemos outra coisa! Por exemplo, algo bem lento, uma felicidade nevoenta como uma serpente marinha misteriosa e com o profundo olhar bovino com que já os gregos sonhavam. Mas não é nada disso. A marcha do tempo nos domina. Andamos com ela dia e noite, e fazemos dentro dela todo o resto; nos barbeamos, comemos, amamos, lemos livros, exercemos nossa profissão, como se as quatro paredes estivessem imóveis; e o inquietante é saber que as paredes se movem, sem notarmos nada, lançam seus trilhos à frente como longos fios sinuosos, tateiam, sem que se saiba para onde. Além disso queremos se possível fazer parte das forças que determinam o curso do tempo. É um papel obscuro, e acontece, quando olhamos para fora após um intervalo mais longo, que a paisagem mudou; o que passa voando o faz porque só pode ser assim, mas apesar da resignação cresce a sensação incômoda de que seguimos além de nossa meta ou entramos por um caminho errado. E um dia, surge a necessidade urgente: desembarcar! Saltar! Ânsia de parar, de não avançar mais, de ficar atolado, de voltar a um ponto antes daquela encruzilhada falsa! Nos bons velhos tempos do Império Austríaco podia-se saltar do trem do tempo, entrar num trem comum e voltar à terra natal.
Na Kakânia, esse país desaparecido, incompreendido, em tantas coisas exemplar mas não reconhecido, havia dinamismo, mas não demais. Sempre que, indo para o exterior, se pensava naquela terra, pairava diante dos olhos a imagem das estradas alvas, largas e nobres do tempo das caminhadas e diligências, cortando o país em todas as direções como rios ordenados, claras fitas de tecido riscado, rodeando as terras com o alvo braço de papel da administração. Que províncias aquelas! Havia geleira e mar, aluvião e trigais da Boêmia, noites do Adriático cricrilando com a inquietação dos grilos, aldeias eslovacas onde a fumaça sobe de chaminés como de narinas arrebitadas e a aldeia se agacha entre duas colinas baixas como se a terra abrisse os lábios para soprar calor em sua filha. Naturalmente também corriam automóveis nessas estradas, mas não muitos; também ali se preparavam para conquistar os ares, mas não com muita ênfase. Aqui e ali mandava-se um navio para a América do Sul ou Ásia Oriental, mas não muito seguidamente. Não se tinham ambições de economia mundial nem potência mundial; estávamos instalados no centro da Europa onde se cruzam os velhos eixos do mundo; as palavras “colônia” e “além-mar” pareciam algo novo e remoto. Apreciava-se o luxo, mas nem de longe tão sofisticado como o dos franceses. Praticavam- se esportes, mas não com a loucura dos anglo-saxões. Gastavam-se imensas somas com o exército, mas só o suficiente para continuar sendo a penúltima das grandes potências. Também a capital era um pouquinho menor do que todas as demais maiores cidades do mundo, mas um pouquinho maior do que são as meras grandes cidades. Esse país era governado de maneira esclarecida, quase imperceptível, limando prudentemente toda as arestas, pela melhor burocracia da Europa, que só se podia acusar de um erro: o gênio e o espírito genial de iniciativa em indivíduos particulares, que não tinham por nascimento aristocrático ou missão oficial esse privilégio, eram considerados por ela um comportamento petulante e presunçoso. Mas quem gosta de deixar que incompetentes se metam em sua vida? E na Kakânia só se tomava um gênio por patife, nunca se tomava um patife por gênio, como acontecia em outras partes.
Aliás, quanta coisa singular se podia dizer sobre essa Kakânia submersa! Por exemplo, ela era kaiserlich-königlich e kaiserlich und königlich, ou seja, imperial e real; um dos dois sinais, K.K. ou K. e K., marcava cada pessoa e coisa, mas mesmo assim era preciso uma sabedoria secreta para poder distinguir sempre com segurança que instituição ou pessoa se devia chamar K.K. ou K. e K. Por extenso, chamava-se Monarquia Austro- Húngara, mas popularmente era chamada Áustria, com um nome, portanto, a que havia renunciado com um solene juramento de estado, mas que mantinha em todos os assuntos sentimentais, para mostrar que sentimentos são tão importantes quanto o direito público, e que regulamentos não são a coisa realmente séria da vida. A constituição era liberal, mas o regime era clerical. O regime era clerical, mas se vivia de forma liberal. Todos os cidadãos eram iguais diante da lei, mas nem todos eram cidadãos. Havia um parlamento que fazia tamanho uso de sua liberdade, que habitualmente o mantinham fechado; mas também havia um parágrafo de exceção com ajuda do qual passavam sem o Parlamento, e quando todos já estavam contentes com o absolutismo, a Coroa invariavelmente determinava a volta do regime parlamentar. Havia muitas dessas singularidades naquele país, e entre elas estavam as brigas nacionais, que chamavam justamente a atenção da Europa, e hoje são descritas de maneira tão errada. Eram tão fortes, que por sua causa a máquina do estado parava várias vezes ao ano, mas nos intervalos e pausas de governo todos se davam magnificamente bem, fazendo de conta que nada acontecera. E não acontecera mesmo nada de real. Apenas a resistência de todo ser humano contra os esforços de outro ser humano, que hoje é geral, tinha naquele país já muito cedo se desenvolvido; podemos mesmo dizer que se tornara um cerimonial sublimado, que poderia ter consequências bem maiores se sua evolução não tivesse sido interrompida antes do tempo por uma catástrofe.
Pois não apenas a repulsa aos concidadãos ascendera ali à condição de sentimento comunitário: também a desconfiança com relação à própria pessoa e destino assumira caráter de profunda convicção. Naquele país, sempre se pensava uma coisa e fazia outra — e isso até mesmo de forma extremamente apaixonada, sem medir consequências — ou se fazia uma coisa e pensava outra. Observadores desinformados julgavam isso cortesia, ou até fraqueza do que pensavam ser o caráter austríaco. Mas era falso; e sempre é falso explicar os fenômenos de um país através do caráter de seus habitantes. Pois um habitante tem no mínimo nove caráteres, o profissional, o nacional, o estatal, o de classe, o geográfico, o sexual, o consciente e o inconsciente, e talvez ainda um caráter particular: reúne todos em si, mas eles o desagregam; na verdade, ele não passa de uma pequena cova lavada por muitos riachinhos, que desaparecem nela, para depois voltarem a brotar e, junto com outros riachinhos, encherem outra cova. Por isso, todo habitante da terra tem ainda um décimo caráter, que não é senão a fantasia passiva de espaços não preenchidos; este permite tudo ao ser humano, menos uma coisa: levar a sério aquilo que seus outros nove — no mínimo — caráteres fazem, e o que acontece com eles; em outras palavras, exatamente aquilo que o deveria preencher. Esse espaço que, como se vê, é de difícil descrição, varia na cor e na forma, por exemplo da Itália para a Inglaterra, na medida em que variam a cor e a forma daquilo que dele se destaca, mas, de fato, é sempre idêntico, um aposento vazio e invisível, no qual se posta a realidade como uma cidadezinha de blocos, de brinquedo, que a fantasia tenha abandonado.
Na medida em que possa ser visível aos olhos de todos, isso acontecera na Kakânia, e nesse ponto, sem que o mundo soubesse, a Kakânia era o estado mais adiantado; era o estado que de alguma forma ia apenas se levando; nele, as pessoas eram negativamente livres, constantemente envoltas na consciência dos motivos insuficientes da própria existência, e banhadas pela grande fantasia do não-acontecido, ou do ainda-não- definitivamente-acontecido, como pelo sopro dos oceanos dos quais surgiu a humanidade.
Passou-se”, diziam lá, quando outras pessoas, de outros lugares, acreditavam ter acontecido não se sabe que milagre; era uma expressão singular, que não aparece em nenhum outro lugar de língua alemã, nem em outros idiomas; em seu sopro, fatos e golpes do destino se tornavam leves como plumas e pensamentos. Sim, apesar de muita coisa que depõe em contrário, a Kakânia talvez ainda fosse um país para gênios; e provavelmente foi isso que a arruinou.
Robert Musil, in O homem sem qualidade

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