Os
fatos só são verdadeiros depois de serem inventados.
Crença
de Tizangara
A
primeira vez que escutei os rebentamentos acreditei que a guerra
regressava em suas tropas e tropéis. Meu pensamento tinha uma só
ideia: fugir. Passei pelas últimas casas de Tizangara, minha pequena
vila natal. Ainda vi, se silhuetando longe, a minha casa natal,
depois, já mais perto, a residência de Dona Hortênsia, a torre da
igreja. A vila parecia em despedida do mundo, tristonha como
tartaruga atravessando o deserto.
Escapei
nos matos onde ninguém nunca se apessoara. Sim, era certo: aquela
floresta nunca havia recebido nenhuma humanidade. Fiz um abrigo, de
galhos e folhas. Pouca coisa, com discrição de bicho: não seria
bom ser visto ali alguém em estado de pessoa. Eu tinha abrigo, não
tinha morada. Fiquei nesse recôndito, conselhado pelo medo.
Regressaria à vila quando me garantisse que a guerra não tinha
regressado. Logo na primeira noite, porém, me amedrontaram os sons
dos bichos e mais ainda as sombras do escuro. Estremeci de medo: não
saltara eu da boca da quizumba para entrar na garganta do leão?
Sentei-me
a esclarecer. Minha alma parecia ter-me saído e flutuava como nuvem
por cima de mim. A guerra tinha terminado, fazia quase um ano. Não
tínhamos entendido a guerra, não entendíamos agora a paz. Mas tudo
parecia correr bem, depois que as armas se tinham calado. Para os
mais velhos, porém, tudo estava decidido: os antepassados se
sentaram, mortos e vivos, e tinham acordado um tempo de boa paz. Se
os chefes, neste novo tempo, respeitassem a harmonia entre terra e
espíritos, então cairiam as boas chuvas e os homens colheriam
gerais felicidades. Precauteloso, disso eu mantinha minhas dúvidas.
Os novos chefes pareciam pouco importados com a sorte dos outros. Eu
falava do que assistia ali, em Tizangara. Do resto não tinha
pronunciamento. Mas, na minha vila, havia agora tanta injustiça
quanto no tempo colonial. Parecia de outro modo que esse tempo não
terminara. Estava era sendo gerido por pessoas de outra raça.
Talvez
fosse um grande cansaço que me fazia, afinal, ficar por aquela
lonjura. Secretamente, eu deixara de amar aquela vila. Ou, se calhar,
não era a vila, mas a vida que nela vivia. Eu já não tinha crença
para converter a minha terra num lugar bem assombrado. Culpa do
vigente regime de existirmos. Aqueles que nos comandavam, em
Tizangara, engordavam a espelhos vistos, roubavam terras aos
camponeses, se embebedavam sem respeito. A inveja era seu maior
mandamento.” Mas a terra é um ser: carece de família, desse tear
de entrexistências a que chamamos ternura. Os novos-ricos se
passeavam em território de rapina, não tinham pátria. Sem amor
pelos vivos, sem respeito pelos mortos. Eu sentia saudade dos outros
que eles já tinham sido. Porque, afinal, eram ricos sem riqueza
nenhuma. Se iludiam tendo uns carros, uns brilhos de gasto fácil.
Falavam mal dos estrangeiros, durante o dia. De noite, se ajoelhavam
a seus pés, trocando favores por migalhas. Queriam mandar, sem
governar. Queriam enriquecer, sem trabalhar.
Agora,
na margem da floresta, eu via o tempo desfilando sem nada nunca
acontecer. Esse era um gosto meu: pensar sem nunca ter nenhuma ideia.
Seria, afinal, que me convertia em bicho, em lógica de unha e garra?
A guerra o que havia feito de nós? O estranho era eu não ter sido
morto em quinze anos de tiroteiros e sucumbir agora em meio da paz.
Não falecera da doença, morria do remédio?
Foi
numa dessas manhãs de retiro que senti vozes. Surgiam camufladas.
Segui os sons com as mil cautelas. Aquilo era gente que se cuidava
não ser vista. Espreitei entre as moitas. Entrevi os vultos. Havia
pretos e brancos. Se debruçavam no chão, pareciam escavar na berma
de um atalho. Às tantas, um falou alto, bem audível. O grito, em
inglês de fora:
—
Attention!
E
os outros estacaram. Depois, se retiraram, sem pressa. De quando em
quando, se voltavam a debruçar em roda de outra qualquer coisa. Que
procuravam? Mas eles se foram e eu voltei a ficar só. Dei um tempo
para que se afastassem e me dirigi para onde haviam estado a
coscuvilhar. Foi quando um braço me travou o intento.
— Não
vá que é perigoso!
Me
virei: era minha mãe. Ou seria, antes, a visão dela. Pois ela já
há muito passara a fronteira da vida, para além do nunca mais.
Naquele momento, porém, ela surgia das folhagens, envolta em seus
panos escuros, seus habituais. Não me saudou, simplesmente me
orientou para junto do meu abrigo. Ali se sentou, aconchegando-se na
capulana. Fiquei mudo e miúdo, à espera. Se temos voz é para vazar
sentimento. Contudo, sentimento demasiado nos rouba a voz. Agora, que
ela transitara de estado, eu acedia, completo, às vistas dela.
— Como
é, filho: vive no lugar dos bichos?
Devolvi
pergunta com pergunta:
— Há
lugar, hoje, que não seja de bichos?
Ela
sorriu, triste. Podia ter respondido: há, onde eu venho é lugar de
gente. Porém, ela permaneceu calada. Rodou pelos arbustos e desfez
folhinhas entre os dedos. Apurava perfumes e levava-os lentamente
junto ao rosto. Matava saudades dos cheiros.
— A
guerra já chegou outra vez, mãe?
— A
guerra nunca partiu, filho. As guerras são como as estações do
ano: ficam suspensas, a amadurecer no ódio da gente miúda.
— E
a mãe anda fazer o quê por essas bandas?
Eu
queria saber se tinha terminado sua tarefa de morrer. Ela
explicou-se, lenta e longa. Andava com uma bilha a recolher as
lágrimas de todas as mães do mundo. Queria fazer um mar só delas.
Não responda com esse sorriso, você não sabe o serviço do choro.
O que faz a lágrima? A lágrima nos universa, nela regressamos ao
primeiro início. Aquela gotinha é, em nós, o umbigo do mundo. A
lágrima plagia o oceano. Pensava ela por outras, quase nenhumas,
palavras. E suspirou:
— Haja
Deus!
Lembrou-me
como ela despertava, antes, toda alagada. Não houve, depois que meu
pai nos deixou, uma manhã em que o sol a encontrasse em panos secos.
Sempre e sempre ela e os choros. Todavia, isso fora antes, quando ela
padecia da doença de estar viva.
— Não
fique aqui que esses caminhos ainda têm o pé da guerra. A pegada
está viva!
— Estou
tão bem aqui, mãe. Nem me apetece regressar.
Ficamos
ali horas trocando nadas, simplesmente adiando o tempo. Alongando o
milagre de estarmos ali, na margem da floresta. Já entardecia, ela
me avisou:
— Volte
para a vila, há-de acontecer tantíssima coisa.
— Antes
de ir, mãe, me lembre a estória do flamingo.
— Ah,
essa estória está tão gasta...
— Me
conte, mãe, que é para a viagem. Me falta tanta viagem.
—
Então, senta, meu filho. Vou contar.
Mas primeiro me prometa: nunca siga pelos carreiros onde seguiam
aqueles homens que você espreitava há um bocadito.
—
Prometo.
Então,
ela contou. Eu repetia palavra por palavra, decalcando sobre a voz
cansada dela. Rezava: havia um lugar onde o tempo não tinha
inventado a noite. Era sempre dia. Até que, certa vez, o flamingo
disse:
— Hoje
farei meu último voo!
As
aves, desavisadas, murcharam. Tristes, contudo, não choraram.
Tristeza de pássaro não inventou lágrima. Dizem: lágrima dos
pássaros se guarda lá onde fica a chuva que nunca cai.
Ao
aviso do flamingo, todas as aves se juntaram. Haveria uma assembleia
para se conversar o assunto. Enquanto o flamingo não chegava, se
escutavam os pios em rodopios. Se acreditava em tais ditos? Podia-se
e não. Fosse ou não fosse, todos se demandavam:
— Mas
vai voar para onde?
— Para
um sítio onde não há nenhum lugar.
O
pernalta, enfim, chegou e explicou — que havia dois céus, um de
cá, voável, e um outro, o céu das estrelas, inviável para voação.
Ele queria passar essa fronteira.
— Por
que essa viagem tão sem regresso?
O
flamingo desvalorizava seu feito:
— Ora,
aquilo é longe, mas não é distante.
Depois
ele foi internando-se nas árvores sombrosas do mangal. Demorou. Só
apareceu quando a paciência dos outros já envelhecia. Os bichos de
asa se concentraram na clareira do pântano. E todos olharam o
flamingo como se descobrissem, apenas então, a sua total beleza.
Vinha altivo, todo por cima da sua altura. Os outros, em fila, se
despediam. Um ainda pediu que ele desfizesse o anúncio.
— Por
favor, não vá!
— Tenho
que ir!
A
avestruz se interpôs e lhe disse:
— Veja,
eu, que nunca voei, carrego as asas como duas saudades. E, no
entanto, só piso felicidades.
— Não
posso, me cansei de viver num só corpo.
E
falou. Queria ir lá onde não há sombra, nem mapa. Lá onde tudo é
luz. Mas nunca chega a ser dia. Nesse outro mundo ele iria dormir,
dormir como um deserto, esquecer que sabia voar, ignorar a arte de
pousar sobre a terra.
— Não
quero pousar mais. Só repousar.
E
olhou para cima. O céu parecia baixo, rasteiro. O azul desse céu
era tão intenso que se vertia líquido, nos olhos dos bichos.
Então,
o flamingo se lançou, arco e flecha se crisparam em seu corpo. E
ei-lo, eleito, elegante, se despindo do peso. Assim, visto em voo,
dir-se-ia que o céu se vertebrara e a nuvem, adiante, não era senão
alma de passarinho. Dir-se-ia mais: que era a própria luz que voava.
E o pássaro ia desfolhando, asa em asa, as transparentes páginas do
céu. Mais um bater de plumas e, de repente, a todos pareceu que o
horizonte se vermelhava. Transitava de azul para tons escuros, roxos
e liliáceos. Tudo se passando como se um incêndio. Nascia, assim, o
primeiro poente. Quando o flamingo se extinguiu, a noite se estreou
naquela terra.
Era
o ponto final. No escurecer, a voz de minha mãe se desvaneceu. Olhei
o poente e vi as aves carregando o sol, empurrando o dia para outros
aléns.
Aquela
era minha última noite desse retiro nos matos. Manhã seguinte eu já
entrava na vila, como quem regressa a seu próprio corpo depois do
sono.
Mia
Couto, in O último voo do flamingo