Dos
lados do riacho, terra sua, Iô Bom da Ponte plantava o melancial.
Eram melancias de cada ano não se ver como essas, para negócio e
maispreço.
Iô
Bom, porfiante esforços, viera a obtê-las sós a primor, nem
lembrado mais de que jeito. Na estação do tempo, porém,
inquietava-se de que as furtassem. Em fato, furtadas.
De
defendê-las no diário das noites, três deles sucessivos não dando
conta, Iô Bom trejurou que cachorros ao angu por mão de moça
solteira relaxavam o vigiar.
Porquanto,
calejado viúvo, tinha filha, que pelas costas o odiava: — Cujo
quem, para espreitar alguém! — a Doló ambicionava vida maior
que dez alqueires.
Dureza
de ouvido pejando-o, pensava o pai que ela o quisesse auxiliar com
conselho. Ele para si não ousava abrir nem uma daquelas sem iguais
melancias — o que seria esperdício da fartura de Deus, que em puro
dinheiro se solve.
Concebeu
remédio: declarado inventar que, numas ou noutras, botara veneno
para ladrões. Disse-o, no arraial, afetando-se legítimo capaz de
suas posses.
Doló,
de banda, entanto a todos delatava a mentira daquilo, embustes de
pirrônico. Iô Bom, no engano, sorridículo aprovava-a com a cabeça
e cãs. Ele a queria pesada, à brutalha, ombreando-o no rijo da
semana; mas prazia-lhe aos domingos ficasse faceira, vistosa. Ela
ficava.
O
escarmento da estricnina não surtindo feito, Iô Bom teve-se a
recurso. Trouxe para a chácara o diabo paupérrimo Quequéo,
fiou-lhe em mão, sem carga, a espingarda. Esse já então era um
estropiado, manquejando endurecido, devido a ataque de congestão.
Mas fora circunspecto jagunço, por nome trovão Estrulino, havia de
os vadios repelir. Além de que nada quase custava, só por
misericórdia o de comer e fumo para pitar.
Iô
Bom desobrigado esperou: a vida recobrava ordem, ele no trabalho e
repousos; a Doló breve se casava, moraria lá, mais netinhos; as
melancias formosas se repetiam entre os milhos e os feijões. Tanto
para o pobre, também, cada dissabor prefaz o medido consolo.
— Pobre
por avarezas? — Doló tomava-o de ponta, segura de sua
semi-surdez.
Iô
Bom arranjava de achar: que a mocidade está criando o carecido
juízo. Ia ver as melancias, como o verde é cor de coisas:
sobrepintadas de escuro, semelhando couro de cobra. Dentro, refrescas
vermelhas doçuras; mas apreciava-as assim era o comprador.
Iô
Bom, após chuva, curava-as do respingado barro e ciscos, pudesse
escorá-las, não pesassem a toque nu com o chão, e revirá-las para
pegarem redondo o sol de dezembro. Dia viria, tudo melhor se
rematava, em retidão de razão.
Voltavam
eram os gatunos, por agravo à regra de Deus. Para que é que aí,
então, esse o Quequéo, à pança bem servida, nem prestando para
bom espantante? — Doló dema... Ela socorria o indiaço.
Mas
não devendo ser de pique, senão por movido coração. E fato se
mostrou: agora as frutas faltadas consistindo nas de menos valor?
Iô
Bom decidia passar noites, socapo, à esparrela. Isso ele calou. Inda
que estranhando-o o olhassem — o Quequéo, afeiurado, inteiriço, e
a Doló, cara ingrata, mocetona.
Saiu,
ao se esconder da lua, não causando rumor; nada de insensato notou,
na madrugada seca. Ele e o Quequéo, sofismudo do outro lado do
riacho, davam-se as costas ou a frente.
Até
que um assovio se desferiu. Só o estarrecimento. Era, de boné à
cabeça e arma ao ombro, o moço Valvinos: noticiou-se esse que por
uma paca, se tanto que sem cachorro. Mau-grado cujo, não podia ter
advindo anonimamente; rico, filho de pai acreditado. Iô Bom,
bulindo-se, àquela hora achou de lhe oferecer café. O Quequéo
estragado tossia, para se ter raiva ou pena. Deveras a Doló
acordara, mas a janela não abriu. A lua esteve incerta reaparecida.
Disso
Iô Bom tirava a lembrança, só aperfeiçoando seu desgosto;
tristeza avisava-o de coisas, neste mundo de por-de-trás. Rogava
paz, preceitos, para todos; sozinho, consigo passava vergonha. Supriu
a espingarda do Quequéo com cartuchos de chumbo mortal. Diligenciava
ou dormia; nunca bocejara.
Foi
uma manhã. Foi forte o que viu. Quequéo a se arrastar, em desamparo
de agonias, cólicas, deitado de bruços, de chegar com a boca à
água do riacho não alcançava. A logro: o que cuspia não era
sangue, baba rosada, mas mascas de melancias.
— Bem
querido, mal fazido... — Iô Bom sumido disse, lambia-se o gume
dos dentes, como que por pedaços de gelos engolidos. Ele quisesse um
pouco mais ensurdecer, a Doló culpando-o de maldades.
Jurou
— nem envenenara plantação nenhuma.
Tinha
de gerir o enterro, puxar as remendadas calças do outro,
emprestar-lhe seu terno bom de roupa — a Doló impunha. Malentendia
acerca do defunto. Apanhou a espingarda, deu tiro para cima: os
pássaros das árvores exatos revoaram.
Desde
a morte não teve sono.
Fez
fora uma coberta de palmas, deitado lá pendurado se encolhia, como
cachorro em canoa.
Imaginasse
aumentado o melancial, tresdobro tamanho — porém louco o alheio
sem-lei o saqueando. Norma de bem-procedido sossego, pautas para
sempre, a vida não dava? Nem aquele Quequéo fora nunca um jagunço
cristão Estrulino, só falso.
Iô
Bom sentia-se descompor. Da Doló, de algum tempo, precatava as
vistas, nela não queria doer o pensamento.
A
noite era invencioneira, às vezes. Despregou olho: havia era o
latejo escuro, ninguém no redor ocupava lugar. Chegou a estimar que
viessem os ladrões, caso comum, costumadamente. Temia o dia, que
amanhecesse. Do furtivo aparecer mesmo do moço caçador sedutor
Valvinos sentiu falta.
Doló,
da porta, insultava-o, na manhã demais clara. Vestida de domingo,
ela chamava desgraças.
Iô
Bom levantou pé, coiceando o ar, ia cair da rede, se agarrou com as
duas mãos. Sem querer, então, viu-lhe: a barriga, redondeada,
desforme crescida, de cobra que comeu sapo. Isto entendeu —
purgatórias horas.
Doló,
doidivinda, arrancava agora melancias, rachava, mastigava-as, a
grandes dentes, pelo queixo e sujando a boa roupa corria o caldo. O
mundo se acabou. Careteava ela caretejos. Fez-lhe ouvir: — Desejos
meus! — e aquilo ria, mostrava, gozosa, grossa se apalpava. —
Quem havera de direito casar com filha de doito pai?! —
ainda escarrou dos lados. Entrava em casa, a enrolar trouxa, ia-se
embora, para vida.
Iô
Bom andou, sem sustância para soluço, urinara na calça, aí panhou
do chão e provou das despedaçadas frutas, não achou gosto.
Mas
o mundo se acabava e ele persistia cuidando, melancia por melancia,
nem lhe restasse amor outro, ouro do ouro, perfeitamente. Da Doló os
gritos, pios dos passarinhos, o marulho, vez nenhuma ouvia,
indesditoso surdo de todo, desperto.
Parava,
pernas muito abertas, velho e só como Adão quando era completo,
pisava bem o fundo pedregulhento do riacho.
Guimarães
Rosa, in Ave, palavra
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