domingo, 30 de julho de 2017

Uma dose caprichada


Eu tinha uma janela que dava para a rua e terminei de escrever meu primeiro romance em dezenove dias. Podia encher a cara à vontade e não precisava dar satisfações no serviço, agora era meu patrão. Ali eu estava, aos cinquenta anos, um escritor profissional, talvez. Lia meus poemas em diversas universidades, bêbado, batendo boca com a plateia. Meu treinamento com os caras da pesada no correio estava valendo a pena. Era quase impossível me insultar e eu contra-atacava com enorme eficiência. As Artes eram um pão-doce, uma mamata.
Coloquemos mais uns anos na conta. Progredi. As mulheres chegavam, eu pulava na cama com elas, saía da cama, brigava com elas, era terrível e incomum para mim e elas eram mais espertas do que eu, sabiam como lutar no corner, me enganavam, me encurralavam, mas eu arrumava um jeito de seguir escrevendo. Meu sucesso estava quase todo na Europa, por meio de traduções. Nos Estados Unidos, seguiam as histórias de que eu espancava minhas mulheres, odiava homossexuais e que era um cara hediondo e uma pessoa horrível. Os dândis da universidade me passavam o serviço. Um estudante apareceu certa noite e, após algumas cervejas, me disse:
Meu profe diz que você é um nazista e que venderia sua mãe por um níquel.
Isso não é verdade – eu lhe disse –, minha mãe está morta.
Deixemos tudo como está. Continuei escrevendo e a sorte não me abandonou. Agora estamos chegando perto. Meu editor, Larkin, leu uma entrevista que eu dei não sei onde em que falava de minhas influências: Céline, Turguêniev e John Bante.
Bante? – ele me telefonou – Já o ouvi mencionar o nome antes nos seus textos, mas achei que fosse invenção sua, sabe, uma piada.
Não, ele está lá.
Lá aonde?
Deve estar ainda na biblioteca. Não sei. Espero que sim. Há apenas seus primeiros livros. Parece que já não escreve mais. Talvez esteja morto.
Ele é tão bom assim?
É o melhor.
Por que ninguém nunca fala dele?
Me diga você. Se encontrar os livros dele, comece por Sporting Times? Yeah?
Algum tempo se passou. Uma mulher tentou me matar. Fracassou. Então naquela noite o telefone tocou, ela adorava teledramatizações, e eu atendi e disse:
Escute aqui, quero que você fique FORA da minha vida!
Aqui é o Larkin – ouvi.
Ah...
Escute, li Sporting Times. É realmente poderoso! Vou republicá-lo!
Ótimo. Ótimo...
O livro original vendeu 632 cópias. Bante ainda está vivo e mora em Malibu...
Malibu? Oh, oh...
Ele entrou para a indústria cinematográfica...
Caralho...
Era a Depressão, ele tinha que sobreviver. Você sabe bem como foi. É preciso perdoá-lo.
Claro. Não se pode escrever se você está morto.
E a maioria de nós não consegue escrever de outro jeito. Seja como for, vou republicar o livro e achei que talvez você quisesse escrever o prefácio.
Amanhã estará no correio.
Ótimo!
Aí estava: um dos grandes romances de nosso tempo prestes a ser retirado das trevas em que esteve imerso por mais de quarenta anos depois de eu ter, com muita sorte, puxado o volume daquela prateleira. Avancei em direção à máquina de escrever para pronunciar o milagre de uma época, sentindo-me bem com a bondade que estava por vir apesar de tudo.
O telefone voltou a tocar.
Alô – eu disse.
A voz veio num tom monótono, cada palavra medida, sem qualquer alteração de registro. Era como uma gravação: não havia paixão, apenas esta finalidade certeira a cumprir:
Tentei matar você, mas não estou certa de que não vou tentar de novo.
Mas a gente tinha chegado a um acordo, que se eu não desse queixa na polícia, você ia parar com esse tipo de coisa.
Não posso ter certeza de nada – ela disse.
Será que você não consegue entender isso?
Ela desligou.
Sporting Times? Yeah?
Afastei-me da máquina, dei a volta ao redor da cozinha e me servi uma dose caprichada…
Charles Bukowski, in Pedaços de um caderno manchado de vinho

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