E
toda a ilha fugiu, e os montes não foram encontrados. (Apocalipse,
XVI, 20)
Não
era apreensão. Simples rancor. Bastava vê-los sair, encaminharem-se
ao campo, para que o ódio me transtornasse:
— Você
o põe louco, Bruma!
Ela
nunca respondia. Passava os braços pela cintura do meu irmão e
afastavam-se rápidos.
Na
hora do almoço, Og chegava correndo, ansioso por contar-me detalhes
de novos astros que vira durante o passeio. A qualquer demonstração
de dúvida de minha parte, ele apelava para o testemunho de Bruma:
— Não
era uma linda estrela? Tão vermelha que parecia o sol!
— Pois
era mesmo o sol, seu imbecil! — retrucava eu, irritado com a
morbidez da sua imaginação.
Ela
discordava. Com o mais meigo dos gestos e exibindo uma compreensão
que atingia diretamente os meus nervos, pedia-me que acreditasse
nele.
Tínhamos
que discutir asperamente todas as manhãs, após os enervantes giros
dos dois pela várzea da fazenda. Og, jurando ter divisado astros
azuis, verdes, amarelos, rubros, enquanto eu, cada vez mais
convencido de que era Bruma que lhe enfiava aquelas tolices na
cabeça, exaltava-me:
— Não
existem.
Ele
insistia:
— Você
ainda os verá, Godô.
— Godô,
não, sua anta! Godofredo!
Jamais
se magoava com a minha agressividade, se bem que demonstrasse alguma
pena por não lhe ser possível convencer-me. Os olhos vagos,
distantes, como se dirigisse as palavras aos campos ou aos animais
pastando ao longe, prosseguia:
— Como
são lindos pela manhã! A violência das cores, no primeiro momento,
assusta-nos. Depois, as tonalidades se amaciam, as nossas pupilas
absorvem os raios...
—
Raios! Só o médico acabará com essa
loucura!
Geralmente
acompanhava a frase com um murro no rosto dele.
Bruma
chamava-me covarde e o conduzia para o interior da casa.
Nem
sempre me arrependia das minhas bruscas reações. Mas,
constantemente, após os atritos, procurava mamãe e tentava
convencê-la da necessidade de levar meu irmão a um psiquiatra.
Ela
ladeava o assunto, vencida pelo estranho carinho que dedicava ao
filho mais moço.
—
Godofredo, você está amando Dora.
(Bruma era o apelido de nossa irmã de criação.) Por que você não
se aproxima dela, em vez de martirizar Og, que só cuida dos astros?
Mais
irritado eu ficava, ouvindo-a falar daquele modo, sem que acreditasse
estar agindo sob a inspiração do despeito.
Não
amava Bruma. O que me perturbava era o seu corpo. Ao certificar-me,
mais tarde, de que há muito uma paixão me rondava, já me
encontrava tolhido por sentimentos contraditórios, e nenhum impulso
generoso poderia levar-me a confessar um amor que se turvara ao
contato do rancor. Em vez de atrair Bruma, conforme aconselhava minha
mãe, agarrei-me à ideia de separá-los. E a oportunidade surgiu
mais breve do que esperava. Foi na volta de um dos passeios matinais
que os dois faziam. Eu estava lendo os jornais, na varanda, e quase
não dei pela aproximação de Og, pois, contrariando suas normas de
procedimento, entrara silencioso. Caminhava devagar, indo e vindo
pela minha frente, até que, não mais se aguentando, entregou-se ao
entusiasmo da última descoberta:
— Este
tem todas as cores, Godô. É o mais belo que já vi. Olha, olha! —
E arrastava-me para fora, apontando o firmamento. Abstive-me de
qualquer comentário e apressei-me em chamar por nossa mãe. Levei-a
ao terreiro, mal ela me atendeu. Pedi que olhasse o céu, limpo como
nunca estivera.
Não
foi sem relutância que ela autorizou a ida de Og ao médico.
Impossibilitada de negar o progresso da demência do filho, ainda
reagia:
— Só
consulta, nada de hospício!
Bruma
seguiu-nos. Caminhava em silêncio e só na entrada da cidade rompeu
o seu mutismo:
— Você
sabe que ele não está louco.
No
fundo, talvez desejasse me dizer que eu não agia em razão de um
impulso fraternal. Mas, por lhe faltar a coragem ou por saber-me
ciente do verdadeiro sentido de suas palavras, tergiversava.
Evitei
uma resposta direta, que poderia desnudar meus sentimentos, torcendo
o rumo da conversa:
— E
você, Bruma, consegue ver esse astro?
— Ainda
não — respondeu, erguendo a cabeça em direção às grossas
nuvens que cobriam o céu.
Alguns
quarteirões antes de chegarmos ao edifício, onde iríamos procurar
o médico, Og nos deteve:
—
Repare, Godô! É impossível que você
não o veja. Quantas cores!
Pupilas
dilatadas, o rosto transfigurado, Og parecia mesmo contemplar um
espetáculo único, que a ninguém mais seria dado ver. Estive para
propor o nosso regresso a casa. Controlei-me. Não a avassalante
ternura que me tomara. Abracei-o, procurando esconder as lágrimas
que desciam:
— Sim,
é lindo. Não o perca de vista, que esta será a última vez que
você o contemplará.
Barba
ruiva, cortada rente, o olhar inamistoso, dr. Sacavém tinha uma
fisionomia grave.
Contei-lhe
as manias de Og, suas visões, o motivo da consulta. Não o
impressionei nem tampouco despertei o interesse dele para as minhas
informações. Limitou-se a pedir a meu irmão que falasse dos seus
astros prediletos. Og acedeu prontamente ao pedido, satisfeito com o
tratamento que lhe dispensavam. Repetiu, com o ardor de costume, as
histórias que nos contava diariamente.
Aborrecido
com aquele gasto inútil de tempo, aparteei:
— Não
acredito em estrelas durante o dia!
Até
então calada, Bruma riu:
—
Acredita em porcos, não é?
Embora
um pouco descontente, ao ver-se interrompido por nós, meu irmão
continuou, a voz ligeiramente alteada pelo entusiasmo, a enumerar
constelações, contando-lhes os hábitos, cores e formas. Quando
chegou a vez do astro policrômico, o psiquiatra demonstrou sádica
curiosidade pela narração, numa atitude que julguei indecorosa para
um profissional. Parecia mais um astrônomo inexperiente do que um
clínico.
Para
desfazer certas dúvidas, experimentei a reação do dr. Sacavém:
—
Francamente, não entendo o seu método.
A
minha intervenção lhe desagradou e respondeu-me rispidamente:
—
Entenderá mais tarde quando tratarmos do
seu caso.
— Do
meu caso?! Então o senhor não percebe que somente um louco pode ver
astros coloridos?!
— Não,
nada vejo de anormal nisso.
Já
mais calmo, limpou os óculos com a gravata e indagou de Bruma se eu
reagia sempre daquela maneira — irritado e agressivo.
Por
ser afirmativa a resposta, o psiquiatra caminhou para mim,
prendendo-me os braços. Examinou-me atentamente e balançou,
desalentado, a cabeça.
Libertei-me
das suas mãos com um gesto brusco e, correndo, abandonei o
consultório.
Minha
mãe esperava-me no alpendre da fazenda.
—
Ficaram lá e não quero vê-los mais —
gritei, subindo a escada.
Abrigando
somente duas pessoas, a nossa casa parecia ter ficado maior. Também
a quietude crescia lá dentro, onde apenas o olhar de mamãe
formulava perguntas. Perguntas que ficavam sem respostas e me
obrigavam a escapar para o campo, a vagar pelas estradas. Não ia
longe. A lembrança de Bruma feria-me. Tinha a impressão de que, a
qualquer momento, surgiria na minha frente. Porque ela havia passado
por todos aqueles caminhos e as sebes me falavam dos contornos do seu
corpo.
A
resolução veio lenta, conformada em saudade e remorso. E até
chegar à cidade não sabia o que desejava fazer. De súbito, tudo se
aclarou. Resoluto, tomei a direção do consultório do dr. Sacavém.
Sentia-me,
no entanto, bastante confuso, pois não encontrava o edifício
procurado. No lugar em que ele deveria erguer-se havia um lote vago.
Parei um instante, a fim de orientar-me. Em vão. Não atinava com
outro percurso. A rua era mesmo aquela. Restava informar-me, mas as
pessoas a quem recorri não sabiam da existência de prédios com dez
andares mencionados por mim. O maior da cidade possuía dois
pavimentos. Nem ao menos, entre os cinco médicos do lugar, conheciam
um com o nome de Sacavém. Percorri novamente o lugarejo, fiz outras
perguntas. Inútil e angustiante busca.
Voltei
ao lote. Sentei-me na grama e me abandonei ao desespero, sabendo que
jamais reencontraria Bruma. Sobre os braços, chorei longamente. Ao
me levantar, prestes a findar a tarde, estendia-se na minha frente
uma estrela vermelha. Pouco a pouco, ela se desdobrou em cores. Todas
as cores.
Murilo
Rubião,
in Obra
completa