— Lá
vem Abdalah, o monhé da Muchatazina.
Sabia-se
que era ele, o próprio, pelo tilintar que saía do cuecão dele.
Diziam que o gajo tinha ouro dentro dos tomates. Me desculpem a
descortesia da palavra. Dizem, quem pode jurar? Os boatos viajam à
velocidade do escuro. Façamos o gosto à voz: aceitemos que o monho
tinha a tomatada recheada. Suponhamos que os ditos dele pesavam uns
quilates. Se acredito, eu? Sei lá. Minha crença é um pássaro. Sou
crente só em chuva que cai e esvai sem deixar prova.
Aceitei
assim perseguir essa estória do Abdalah. Sou metido em alheiação,
gosto do dito e do não dito. Me deram o caso para que lhe
desvendasse os acasos. Cada crime mortífero esconde quantas vidas?
Sempre
que há sangue as versões correm, em inventanias. O povo fabricou as
mais múltiplas explicações. O monhé, sabendo da revolução,
tinha transferido sua riqueza para os órgãos. Melhor banco que
aquele? Outra versão: tinha sido feitiço. Suspeitas maiores
inclinavam em Sarifa Daúdo. Ela, com certeza. Mulher estranha,
fechada em duas paredes, ela era origem da desformidade do indiano.
Me
aconselharam começar por Sarifa, com quem o fulano tinha estreado
amores. Sarifa era sua primeira prima, a quem ele deitou olho de mel.
Dizem que primeiro namorisco vem sempre de primo e prima. Também eu
rimei com elas, também as primas me deram primazias.
Me
endereço a casa da moça. Continua solteira, é uma dor ver tal
beleza sem prova nem proveito. Acompanho seus magros gestos, servindo
o chá com que me anfitriou. Em certas mulheres nos encanta a concha,
noutras o mar. Sarifa se tinha desmulherado, ela retirara o gosto do
gesto. Agora, nem concha, nem mar.
Lhe
peço, enfim, que fale de Abdalah. Agora, até seus olhos se vazam,
negras espirais se enrolando em búzios. Mas a lembrança lá veio,
chegada em vozícula quase insonora. Afinal, o namoro correra às
maravilhas. O amor é como a vida: começa antes de ter iniciado. Mas
o que é bom tem pressa de terminar. Sombra eterna só dentro do
caracol. A moça era conflituosa, uma escaramoça? Nem por isso, ela
tinha grandes habilidades de silêncio. O nó gordo estava nele, o
Abdalah.
— Mas
porquê, Sarifa? Qual o motivo dele se desmotivar?”
Ela
corrigiu uma lágrima no convexo da mão. O indiano batia— lhe?
Lombava-a? Não, pelo menos não aparentava violências. Homem que
morde não ladra? O senhor é capaz de encostar sofrimento em mulher?
— Vou
perguntar de novos modos: o senhor já amou uma mulher, com paixão
de verdade e jura?”
Não
me saiu nenhuma voz. Eu vinha ali despachar pergunta. Posto perante o
espelho de uma interrogação me sentia como o lagarto que acha que
os outros bichos é que são animais. Já à saída ainda escutei:
— Foi
tudo por causa do dinheiro.
Desfiz
um passo atrás. Mas ela não voltou a falar. Lavava as chávenas com
espantável lentidão. Suas mãos acariciavam o vidro por onde eu
havia bebido. Senti como se ela me tocasse os lábios e me retirei
nesse embalo de ilusão.
Me
dirigi para casa, sem vontade de caminho. Demorei em coisas nenhumas.
Nisto,
uma estrelícia, simples flor, me deflagra os olhos. O vendedor me
cativa a atenção, agitando a crista laranja da flor. Comprar? Para
quê, para quem? Mas, sem saber, inexplicável, eu desbolso
dinheiros. As mãos se ridicularizam com a intransitiva flor. Chego a
casa e a flor se extravaganta ainda mais. Nunca eu tinha encenado
flor em jarra.
Sentado,
frente a uma cerveja deixo entrar em mim a voz: preciso é de mulher.
Necessito de um acontecimento de nascência, uma lucinação. Careço
de um lugar para esperar, sem tempo, sem mim. Devia haver um feminino
para ombro. Porque ombra era o nome único que merecia o encosto
daquela mulher.
Manhã
seguinte, regressei a casa de Sarifa movido não sei se por gosto de
a rever se por obrigação de profissão. A mulher nem levantou
cabeça: assim, olhos no chão me revelou sobre Abdalah. O homem só
fazia amor, depois de espalhar por debaixo dos lençóis uma matilha
de notas. ãs vezes, eram meticais, outras randes. Só lhe vinham as
quenturas quando, previamente, cumpria este ritual. Se deitava de
costas, as mãos a acariciar o lençol, os olhos cifrando-se no
infinito. Sarifa ficava com sentimento de que ela não existia. Com a
desvalorização da moeda o ardor dele variava. ãs vezes, demorava a
ser homem, másculo e maiúsculo.
Uma
noite, porém, não conseguiu. Começou-se a enervar. Levantou os
lençóis, inspecionou as notas. Lhe nasceu, então, a lancinante
suspeita: as notas eram falsas. Alguém havia retirado as verdadeiras
para, em seu lugar, espalhar imitações.
—
Sarifa, foi você?”
A
prima, ao princípio, nem entendeu. Um murro carregado de raiva lhe
enegreceu as vistas e aclarou o pensamento: havia suspeita sobre os
dinheiros. O indiano bateu, rebateu. Sarifa ficou estendida. Vaziando
sangue. Quem a apanhou no chão foi o tio Banzé, homem dado a
espiritações. Refez a sobrinha, passou-lhe uma demão nas mazelas e
correu a engasganar o indiano. Você foi longe e de mais, meu velho.
Você mistura amor e cifrão?” Lhe espetou o indicador na costela e
ameaçou:
— Pois
eu lhe vou seguir os sonhos a ver o que vai sair deles!”
O
desafio era o seguinte: tio Banzé iria visitar os próximos sonhos
do indiano, nas dez seguintes noites. Caso dinheiro somasse mais que
mulher então uma maldição recairia sobre Abdalah.
— De
Abdalah te transformo em abadalado!”
Não
chegou a haver dez noites. Na sétima já o indiano sofria de um peso
extra no baixo do ventre. O homem nunca mais visitou Sarifa, nunca
mais amou nenhuma mulher. E agora, que ele perdeu acesso a namoros,
seus sonhos se destinam unicamente em mulheres. O ouro lhe entrou nos
ditos, a mulher lhe saiu dos devaneios. A punição do sonho é
aquela que mais dói. Pergunte-se a Abdalah, o indiano dos ovos de
ouro.
Mia
Couto, in Contos do Nascer da Terra