O
conselho de família não durou muito tempo. Discutiam na mesa de um
restaurante na Baixa dos Sapateiros. Pela rua movimentada passava a
multidão, álacre e apressada. Bem em frente, um cinema. O cadáver
ficara entregue aos cuidados de uma empresa funerária, propriedade
de um amigo do tio Eduardo. Vinte por cento de abatimento. Tio
Eduardo explicava:
– Caro
mesmo é o caixão. E os automóveis, se for acompanhamento grande.
Uma fortuna. Hoje não se pode nem morrer.
Ali
por perto haviam comprado uma roupa nova, preta (a fazenda não era
grande coisa, mas, como dizia Eduardo, para ser comida pelos vermes
estava até boa demais), um par de sapatos também pretos, camisa
branca, gravata, par de meias. Cuecas não eram necessárias. Eduardo
anotava num caderninho cada despesa feita. Mestre na economia, seu
armazém prosperava.
Nas
mãos hábeis dos especialistas da agência funerária, Quincas Berro
Dágua ia voltando a ser Joaquim Soares da Cunha, enquanto os
parentes comiam peixada no restaurante e discutiam sobre o enterro.
Discussão mesmo só houve em torno de um detalhe: de onde sair o
caixão.
Vanda
pensara levar o cadáver para casa, realizar o velório na sala,
oferecendo café, licor e bolinhos aos presentes, durante a noite.
Chamar padre Roque para a encomendação do corpo. Realizar o enterro
pela manhã cedo, de tal maneira que pudesse vir muita gente, colegas
de Repartição, velhos conhecidos, amigos da família. Leonardo
opusera-se. Para que levar o defunto para casa? Para que convidar
vizinhos e amigos, incomodar um bocado de gente? Só para que todos
eles ficassem recordando as loucuras do finado, sua vida
inconfessável dos últimos anos, para expor a vergonha da família
ante todo mundo? Como sucedera naquela manhã na Repartição. Não
se havia falado noutra coisa. Cada um sabia uma história de Quincas
e a contava entre gargalhadas. Ele próprio, Leonardo, nunca
imaginara que o sogro houvesse feito tantas e tais. Cada uma de
arrepiar... Sem levar em conta que muitas daquelas pessoas
acreditavam Quincas morto e enterrado ou bem vivendo no interior do
Estado. E as crianças? Veneravam a memória de um avô exemplar,
descansando na santa paz de Deus, e, de repente, chegariam os pais
com o cadáver de um vagabundo debaixo do braço, atiravam com ele no
nariz dos inocentes. Sem falar na trabalheira que iam ter, na despesa
a aumentar, como se já não bastasse a do enterro, da roupa nova, do
par de sapatos. Ele, Leonardo, estava necessitando de um par de
sapatos, no entanto mandara botar meia-sola nuns velhíssimos para
economizar. Agora, com aquele desparrame de dinheiro, quando poderia
pensar em sapatos novos?
Tia
Marocas, gordíssima, adorando a peixada do restaurante, era da mesma
opinião:
– O
melhor é espalhar que ele morreu no interior, que chegou um
telegrama. Depois a gente convida para a missa de sétimo dia. Vai
quem quiser, a gente não é obrigada a dar condução.
Vanda
suspendeu o garfo:
–
Apesar dos pesares, é meu pai. Não
quero que seja enterrado como um vagabundo. Se fosse seu pai,
Leonardo, você gostava?
Tio
Eduardo era pouco sentimental:
– E
o que ele era senão um vagabundo? E dos piores da Bahia. Nem por ser
meu irmão posso negar…
Tia
Marocas arrotou, o bucho farto, o coração também:
–
Coitado do Joaquim... Tinha bom gênio.
Não fazia nada por mal. Gostava dessa vida, é o destino de cada um.
Desde menino era assim. Uma vez, tu lembra, Eduardo?... quis fugir
com um circo. Levou uma surra de arrancar o pêlo – bateu na coxa
de Vanda a seu lado, como a desculpar-se. – E tua mãe, minha
querida, era um bocado mandona. Um dia ele arribou. Me disse que
queria ser livre como um passarinho. A verdade é que ele tinha
graça. Ninguém achou graça. Vanda fechara o rosto, obstinava-se:
– Não
estou defendendo ele. Muito nos fez sofrer, a mim e a minha mãe, que
era mulher de bem. E a Leonardo. Mas nem por isso quero que seja
enterrado como um cão sem dono. O que é que iriam dizer quando
soubessem? Antes de dar pra doido, era pessoa considerada. Deve ser
enterrado direito.
Jorge
Amado, in A morte e a morte de Quincas Berro Dágua
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