Fernando
tinha forçado a janelinha com a chave de fenda e abrira a porta do
Renault. Depois, apagara a luz vermelha do freio e ligara o motor com
um fio de arame. Com fita isolante e esparadrapo, pedacinhos negros e
pedacinhos brancos, Pancho mudara os números da chapa: o cinco virou
três, o oito virou seis, o seis virou nove.
O
vento empurrava as ondas violentamente contra o cais e multiplicava o
ruído da maré alta por toda a Cidade Velha. Uivou a sirena de um
barco; por alguns segundos, vocês ficaram paralisados e com os
nervos à flor da pele. O Gato Romero olhou o relógio. Eram duas e
meia da manhã – em ponto.
Você
não tinha comido nada desde o meio-dia e sentia borboletas no
estômago. O Gato explicara que é melhor com a barriga vazia, e que
convém também esvaziar os intestinos, porque pode entrar chumbo, e
você sabe... O vento, vento de janeiro, soprava quente, como saído
da boca de um forno, e todavia um suor gelado grudava a camisa em seu
corpo. A sonolência paralisava sua língua e os braços e as pernas,
mas não era sonolência de sono. A boca tinha ficado seca, e você
sentia uma moleza tensa, uma doçura carregada de eletricidade. Do
espelinho do Renault pendia um diabinho de arame, que dançava com o
tridente na mão.
Depois,
você não reconheceu a própria voz quando escutou-a dizer: “Se
mexe, e eu te queimo”, deixando cair como marteladas uma sílaba
atrás da outra, nem seu próprio braço quando afundou o cano da
Beretta no pescoço do guarda, nem suas próprias pernas quando foram
capazes de sustentá-lo sem tremer e de correr sem perceberem que uma
delas, a perna esquerda, tinha um furo calibre trinta e oito que
atravessava o músculo e jorrava sangue. Você foi o último a sair,
esvaziou três pentes de balas antes de se meter no automóvel em
movimento e a cada curva tudo caía e levantava e tornava a cair e a
levantar, os pneus mordiam as sarjetas, ficavam atrás as fileiras de
árvores e as caras dos edifícios e os brilhos dos faróis;
arrastados pelo vento, os pedaços do mundo se atropelavam e se
confundiam e voavam em rajadas escuras. E só então, quando você
ficou enrolado como um novelo, arquejando no banco de trás,
descobriu, extenuado e sem assombro, que a primeira vez da violência
é como a primeira vez em que se faz o amor.
Eduardo
Galeano,
in Vagamundo
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