A
casa da fazenda do velho Manuel Querino era separada do chiqueiro das
cabras por uma porteirinha que dava para o cercado da roça. Vicência
Querino abaixou-se para passar entre os dois paus da porteira e
ficou, curvada, com um pé descansando no pau e outro mal apoiado no
chão, escutando um aboio longínquo que se perdia no meio do mato.
De
quem seria aquele aboio sonoro, saudoso, tão diferente de todos os
aboios já decorados pelos seus ouvidos espertos? De Manuelzinho, seu
irmão? De Tiúba, o vaqueiro das Lavras? De Quincas, de Leonilo, de
João de Souza? Não, aquele aboio não saía de nenhuma boca sua
conhecida. Era com certeza de alguém estranho, conduzindo alguma rês
rebelde pelas terras do pai dela. Algum vaqueiro das bandas de lá do
Grotão ou do Toquinho, do lado de lá daquelas serras azuis por onde
ela nunca andara. Aquelas serras azuladas, distantes, no meio das
quais se distinguia uma pequenina mancha branca que diziam ser a
igreja de Buíque. E como seriam aqueles lugares? Que haveria por lá
de estranho para os seus olhos tão ignorantes e ao mesmo tempo tão
ansiosos de novas paisagens?
O
aboio foi despertando o pensamento de Vicência e ela aos poucos se
perdia com ele, como de hábito, em indagações curiosas—como
seria isto, como seria aquilo. Esquecida, a perna curvada adormecia
sobre o pau da porteira. O formigueiro dominava o pé, já inerte, e
subia perna acima, como se lhe dessem um número sem conta de
espetadelas de alfinete. Vicência fez uma careta, puxou a perna
devagarinho e saiu manquejando, fazendo uma cara de riso enjoado,
praguejando sem raiva:
—Diabo
leve essa dormência! Estou que nem velha de juntas travadas!
Adiante
Vicência estacou, dando palmadinhas na perna. E enquanto soltava
pragas tolas contra a dormência, o aboio se aproximava, varando a
caatinga. Às vezes, quando o vento mudava de direção, o aboio
chegava aos seus ouvidos como um apito de cigarra, triste como os
cantos de fim de tarde. Era antes um gemido do que um canto.
Variações de notas sem palavras, sem significação, mas tão
expressivas no seu sentido de tristeza e de saudade. E o aboio
tristonho vinha vindo pelo meio do mato, ora mais perto, ora mais
longe, enchendo de curiosidade os ouvidos espertos de Vicência
Querino. Ela ajeitava a mão no ouvido para ouvir melhor; entortava o
pescoço, espichava-o; voltava-se para uma direção, para outra e
fazia-se perguntas mentais: “De quem será, meu Deus? De quem será
essa voz tão bonita?” Apertava os olhos, prendia a respiração,
esquecia os outros sentidos para aguçar o do ouvido.
Seria
para pressentir, para adivinhar alguma coisa, todo esse interesse?
Não. Vicência Querino não ouvia daquele aboio nenhuma nota pela
qual a lembrança de outra se despertasse. Aquela curiosidade nascera
de repente, sem causas anteriores, simplesmente pelo gosto do
desconhecido, do ignorado. Talvez a mesma curiosidade que lhe
despertavam as serras azuladas lá distante. Apenas, como via as
serras desde que se entendera de gente, e por elas tinha uma estranha
curiosidade, ela mesma fantasiava o que de grandioso pudesse haver do
lado de lá: fazendas sempre verdes, gado sempre gordo, cavalos
bonitos, corredores, e a vida fácil entre vaquejadas alegres e cocos
bem cantados.
Uma
figura de vaqueiro, apagada, indistinta, entrava a mais nessa
fantasia, superando as qualidades de outros vaqueiros, de outros
homens seus conhecidos; essa figura era o melhor cavaleiro, o mais
corajoso, o mais bonito de todos. Vicência Querino porém não
personificava em ninguém conhecido o herói dos seus devaneios de
sertaneja de vinte e cinco anos. Era uma figura, um ser existente
apenas no seu pensamento sonhador. Por isso o dono daquela voz não
lhe despertava a lembrança, mesmo involuntária, de nenhum homem
conhecido. Era somente uma voz desconhecida, como lhe eram
desconhecidos o herói dos seus sonhos e a vida do lado de lá das
serras. No entanto, a curiosidade de Vicência era cada vez maior, à
proporção que o canto se aproximava.
Não
tardou que várias reses aparecessem correndo no fim do pátio,
defronte de casa, tangidas pelo caminho do Vaquejador. Vicência
destacou entre elas um boiato de oito arrobas, raposo, de cabeça
levantada, espantadiço, incerto na carreira por estranhar talvez as
paragens em que pisava. Certamente era aquela rês que o dono da voz
buscava no meio do gado. Os chocalhos das vacas despertaram a atenção
do velho Manuel Querino. O velho veio então ao alpendre, acompanhado
da Anália, a filha mais nova. Olharam o gado. Comentaram.
Dois
homens a pé, de varas na mão, arrebanhavam as reses. Atrás, meio
envolvida na poeira, distinguia-se a figura dum cavaleiro. Visto de
longe, esfumado no pó, lembrava o vulto de um toco queimado. As
reses estacaram, cercadas. O cavaleiro chegou as esporas no cavalo,
contornou de longe o rebanho e dirigiu-se a galope para a casa do
velho Manuel Querino.
Vicência,
encostada num esteio do alpendre, observava a figura do desconhecido,
falando com o velho. Seus ouvidos guardaram estas palavras: “Como
vai você, João Toté?” “Que rês é essa?” “De que morreu a
finada?” Guardara somente algumas perguntas do pai, feitas aos
berros, porque ele era surdo, mas as respostas do desconhecido lhe
escaparam. Ouvira uma ou outra articulação, sem sentido, lembrando
o mesmo timbre do aboio.
Quando
o vaqueiro se dirigia ao rebanho, o velho Querino gritou para a
filha:
—Abre
ali a porteira do curral, Vicência, que Toté vai prender o gado pra
botar um cambão no boiato!
Vicência
correu, satisfeita por prestar aquele serviço. Abriu a porteira e
trepou-se na cerca, um pouco afastada para não espantar o gado.
João
Toté vinha atrás do rebanho, dirigindo o cavalo para um lado, para
outro, cercando-o. Usava paletó preto, camisa preta e perneiras de
couro. Batendo com o chapéu de couro nas perneiras, a cabeleira
preta, basta, certinha atrás como a de uma imagem de santo,
sacudia-se toda na cadência das pancadas. Vicência achava-a bonita.
As
primeiras reses transpuseram a porteira e João Toté levou a mão à
boca, ajudando o aboio. Assim de perto o aboiar do vaqueiro ainda era
mais bonito. As notas não se perdiam, não se destorciam pelo vento.
Eram firmes, sonoras, tristonhas.
Vicência
Querino não tirava os olhos de cima dele. Além da cabeleira achava
bonitos os olhos pretos, grandes; o pescoço bem feito, folgado na
camisa aberta; o jeito mole do corpo em cima do cavalo fogoso, o
bigodinho descaído nos cantos da boca.
Com
o gado preso, o velho Querino aproximou-se, gritando:
—Reimosinho,
o malvado do boiato! E a pinta é boa, Toté! É pra carro?
João
Toté explicou que o boiato era manhoso, tendente a embrabecer,
arredio de curral e de gado manso. Era para vender em S. Caetano,
porque dali sempre para pior. Para touro não servia. Procedia de
vaca cachecha e pingadeira de leite. E nove arrobinhas por cento e
oitenta, em tempos daqueles, eram na verdade um bom negócio.
—E
se não fosse o seu curral, “seu” Querino,—disse João Toté,
terminando a história do boi,—o garrote valentão me deixava no
mato. Fizemos até um estragozinho num descampado que tem aqui
embaixo, perto já do seu cercado. O bichinho corre! Mas corre mais
este castanho que o senhor está vendo!—e alisou as crinas do
cavalo, agradando-o.
Deram
um dedo de prosa sobre outros assuntos. Por fim João Toté pediu:
—Agora,
enquanto Severiano laça o bicho, queria que vosmecê me emprestasse
uma foice. É pra cortar um cambãozinho pro malcriado.
—Pegue
se aqui com essa menina—respondeu o velho apontando Vicência,—
que é o homem da casa!
E
explicou porque ela era o homem, fazendo cara de riso:
—Esta,
a mais nova, é achacada que nem a mãe. Os meus dois homens, Quinca
e Manuelzinho, são plantação de fim de safra: não dão pra nada!
Se essa não amofinar—insistia, apontando Vicência—é quem vai
continuar a raça. Porque o resto, Toté, só tem vista como melancia
de beira de riacho: dentro é aguada que só miolo de facheiro!
O
velho ria-se da própria mangação e João Toté protestou por
delicadeza:
—É
assim o que, “seu” Querino! O galho pode ser torto, mas brota de
tronco linheiro. E quem dá valor à madeira é o nome.
O
velho voltou-se, ainda rindo, e insistiu:
—Não
é tanto assim não, Toté! No telhado lá da meia-água tem até
sucupira dando cupim!
—É
porque tem madeira ruim junto dela!
—Pode
ser!—disse o velho.—Mas eu já não posso cortar madeira nova,
estou de dias contados e os dois homens cá de casa só cuidam de
caça.
Vicência
apresentou-se a João Toté, estirando-lhe a mão, meio acanhada. E
indagou, espantando-o com a experiência que tinha das coisas
práticas, dos serviços de homem, como insinuara o velho:
—Se
o boiato é brabo mesmo, o melhor é um cambão novo. A gente tem aí
alguns deles, mas secos, umas penas. O senhor não acha melhor cortar
um novo, mais pesado porque a madeira é verde?
João
Toté aceitou esse conselho, dando razão à moça, mas teria aceito
qualquer outro por acanhamento. Vicência correu à casa, apanhou a
foice e amolou-a às pressas na pedra. Depois convidou o vaqueiro:
—O
senhor pode me acompanhar. Aqui bem detrás da casa tem uma imburana
boa.
Leia
o final surpreendente desse belo conto do pernambucano Luís Jardim
aqui.