Foi
em sonho que revi a longamente amada; sentada numa velha canoa, na praia, ela
me sorria com afeto. Com sincero afeto – pois foi assim que ela me dedicou
aquela fotografia com sua letra suave de ginasiana.
Lembro-me do dia em que fui perto de sua
casa apanhar o retrato, que me prometera na véspera. Esperei-a junto a uma
árvore; chovia uma chuva fina. Lembro-me que tinha uma saia escura e uma blusa de
cor viva, talvez amarela; que estava sem meias. Os leves pelos de suas pernas
lindas queimados pelo sol de todo o dia na praia estavam arrepiados de frio.
Senti isso mais do que vi, e, entretanto, esta é a minha impressão mais forte
de sua presença de 14 anos: as pernas nuas naquele dia de chuva, quando a
grande amendoeira deixava cair na areia grossa pingos muito grandes. Falou
muito perto de mim, e perguntei se tomara café; seu hálito cheirava a café.
Riu, e disse que sim, com broas. Broas quentinhas, eu queria uma? Saiu
correndo, deu a volta à casa, entrou pelos fundos, voltou depois (tinha dois ou
três pingos de água na testa) com duas broas ainda quentes na mão. Tirou do
seio a fotografia e me entregou.
Dei uma volta pela praia e pelas pedras
para ir para casa. Lembro-me do frio vento sul, e do mar limpo, da água
transparente, em maré baixa. Duas ou três vezes tirei do bolso a fotografia,
protegendo-a com as mãos para que não se molhasse, e olhei. Não estava, como
neste sonho de agora, sentada em uma canoa, e não me lembro como estava, mas
era na praia e havia uma canoa. “Com sincero afeto…” Comi uma broa devagar como
uma espécie de unção.
Foi isso. Ninguém pode imaginar por que
sonha as coisas, mas essa broa que quente que recebi de sua mão vinte anos
atrás me lembra alguma coisa que comi ontem em casa de minha irmã. Almoçamos os
dois, conversamos coisas banais da vida e da cidade grande em que vivemos. Mas
na hora da sobremesa a empregada trouxe melado. Melado da roça, numa garrafa
tampada com um pedaço de sabugo de milho – e veio também um prato de aipim
quente, de onde saia fumaça. O gosto desse melado com aipim era um gosto de
infância. Lembra-me a mão longa de uma jovem empregada preta de minha casa:
lembro-me quando era criança, ela me servia talvez aipim, então pela primeira
vez eu reparei em sua mão, e como era muito mais clara na palma do que no
dorso; tinha os dedos pálidos e finos, como se fosse uma princesa negra.
Foi no tempo da descoberta da beleza das
coisas: a paisagem vista de cima do morro, uma pequena caixa de madeira escura,
o grande tacho de cobre areado, o canário-belga, uma comprida canoa de rio de
um só tronco, tão simples, escura, as areias do córrego sob a água clara,
pequenas pedras polidas pela água, a noite cheia de estrelas… Uma descoberta
múltipla que depois se ligou tudo a essa moça de um moreno suave, minha
companheira de praia.
Foi em sonho que revi a longamente amada;
entretanto, não era a mesma; seu sorriso e sua beleza que me entontecia haviam
vagamente incorporado, atravessando as camadas do tempo, outras doçuras, um
nascimento dos cabelos acima da orelha onde passei meus dedos, a nuca suave,
com o mistério e o sossego das moitas antigas, os braços belos e serenos.
Gostaria de descansar minha cabeça em seus joelhos, ter nas mãos o músculo
meigo das panturrilhas. E devia ser de tarde, e galinhas cacarejando lá fora, a
voz muito longe de uma mulher chamando alguma criança para o café…
Tudo o que envolve a amada nela se
mistura e vive, a amada é um tecido de sensações e fantasias e se tanto a
tocamos, e prendemos e beijamos é como querendo sentir toda sua substância que,
entretanto, ela absorveu e irradiou para outras coisas, o vestido ruivo, o azul
e branco, aqueles sapatos leves e antigos de que temos saudade; e quando está
junto a nós imóvel sentimos saudade de seu jeito de andar; quando anda, a
queremos de pé, diante do espelho, os dois belos braços erguidos para a nuca,
ajeitando os cabelos, cantarolando alguma coisa, antes de partir, de nos deixar
sem desejo mas com tanta lembrança de ternura ecoando em todo o corpo.
Foi em sonho que revi a longamente amada.
Havia praia, uma lembrança de chuva na praia, outras lembranças: água em gotas
redondas correndo sobre as folhas da taioba ou inhame, pingos d’água na sua
pele de um moreno suave, o gosto de sua pele beijada devagar… Ou não será
gosto, talvez a sensação que dá em nossa boca tão diferente uma pele de outra,
esta mais seca e mais quente, aquela úmida e mansa. Mas de repente é apenas
essa ginasiana de pernas ágeis que vem nos trazer o retrato com sua dedicatória
de sincero afeto; essa que ficou para sempre impossível sem, entretanto, nos
magoar, sombra suave entre morros e praia longe.
Foi
em sonho que revi a longamente amada; sentada numa velha canoa, na praia, ela
me sorria com afeto. Com sincero afeto – pois foi assim que ela me dedicou
aquela fotografia com sua letra suave de ginasiana.
Lembro-me do dia em que fui perto de sua
casa apanhar o retrato, que me prometera na véspera. Esperei-a junto a uma
árvore; chovia uma chuva fina. Lembro-me que tinha uma saia escura e uma blusa
de cor viva, talvez amarela; que estava sem meias. Os leves pelos de suas
pernas lindas queimados pelo sol de todo o dia na praia estavam arrepiados de
frio. Senti isso mais do que vi, e, entretanto, esta é a minha impressão mais
forte de sua presença de 14 anos: as pernas nuas naquele dia de chuva, quando a
grande amendoeira deixava cair na areia grossa pingos muito grandes. Falou
muito perto de mim, e perguntei se tomara café; seu hálito cheirava a café.
Riu, e disse que sim, com broas. Broas quentinhas, eu queria uma? Saiu
correndo, deu a volta à casa, entrou pelos fundos, voltou depois (tinha dois ou
três pingos de água na testa) com duas broas ainda quentes na mão. Tirou do
seio a fotografia e me entregou.
Dei uma volta pela praia e pelas pedras
para ir para casa. Lembro-me do frio vento sul, e do mar limpo, da água
transparente, em maré baixa. Duas ou três vezes tirei do bolso a fotografia,
protegendo-a com as mãos para que não se molhasse, e olhei. Não estava, como
neste sonho de agora, sentada em uma canoa, e não me lembro como estava, mas
era na praia e havia uma canoa. “Com sincero afeto…” Comi uma broa devagar como
uma espécie de unção.
Foi isso. Ninguém pode imaginar por que
sonha as coisas, mas essa broa que quente que recebi de sua mão vinte anos
atrás me lembra alguma coisa que comi ontem em casa de minha irmã. Almoçamos os
dois, conversamos coisas banais da vida e da cidade grande em que vivemos. Mas
na hora da sobremesa a empregada trouxe melado. Melado da roça, numa garrafa
tampada com um pedaço de sabugo de milho – e veio também um prato de aipim quente,
de onde saia fumaça. O gosto desse melado com aipim era um gosto de infância.
Lembra-me a mão longa de uma jovem empregada preta de minha casa: lembro-me
quando era criança, ela me servia talvez aipim, então pela primeira vez eu
reparei em sua mão, e como era muito mais clara na palma do que no dorso; tinha
os dedos pálidos e finos, como se fosse uma princesa negra.
Foi no tempo da descoberta da beleza das
coisas: a paisagem vista de cima do morro, uma pequena caixa de madeira escura,
o grande tacho de cobre areado, o canário-belga, uma comprida canoa de rio de
um só tronco, tão simples, escura, as areias do córrego sob a água clara,
pequenas pedras polidas pela água, a noite cheia de estrelas… Uma descoberta
múltipla que depois se ligou tudo a essa moça de um moreno suave, minha
companheira de praia.
Foi em sonho que revi a longamente amada;
entretanto, não era a mesma; seu sorriso e sua beleza que me entontecia haviam
vagamente incorporado, atravessando as camadas do tempo, outras doçuras, um
nascimento dos cabelos acima da orelha onde passei meus dedos, a nuca suave,
com o mistério e o sossego das moitas antigas, os braços belos e serenos.
Gostaria de descansar minha cabeça em seus joelhos, ter nas mãos o músculo
meigo das panturrilhas. E devia ser de tarde, e galinhas cacarejando lá fora, a
voz muito longe de uma mulher chamando alguma criança para o café…
Tudo o que envolve a amada nela se
mistura e vive, a amada é um tecido de sensações e fantasias e se tanto a
tocamos, e prendemos e beijamos é como querendo sentir toda sua substância que,
entretanto, ela absorveu e irradiou para outras coisas, o vestido ruivo, o azul
e branco, aqueles sapatos leves e antigos de que temos saudade; e quando está
junto a nós imóvel sentimos saudade de seu jeito de andar; quando anda, a
queremos de pé, diante do espelho, os dois belos braços erguidos para a nuca,
ajeitando os cabelos, cantarolando alguma coisa, antes de partir, de nos deixar
sem desejo mas com tanta lembrança de ternura ecoando em todo o corpo.
Foi em sonho que revi a longamente amada.
Havia praia, uma lembrança de chuva na praia, outras lembranças: água em gotas
redondas correndo sobre as folhas da taioba ou inhame, pingos d’água na sua
pele de um moreno suave, o gosto de sua pele beijada devagar… Ou não será
gosto, talvez a sensação que dá em nossa boca tão diferente uma pele de outra,
esta mais seca e mais quente, aquela úmida e mansa. Mas de repente é apenas
essa ginasiana de pernas ágeis que vem nos trazer o retrato com sua dedicatória
de sincero afeto; essa que ficou para sempre impossível sem, entretanto, nos
magoar, sombra suave entre morros e praia longe.
Rubem
Braga, in O homem rouco