segunda-feira, 30 de junho de 2014

Redondel

O coração se acrescenta
ao coração se acrescenta
a outro e senta sob a árvore
- tudo tão nuvem entre
um coração e outro -
redondos os sins, os vãos,
a noite na concha
do coração, o pampa
e os corações sentados
e um coração voando. 

Mudando, tudo é possível
 
recomeçar.
 
Carlos Nejar

Moderação

"A sinceridade e a generosidade se não forem temperadas com moderação conduzem infalivelmente à ruína."
Tácito

Vazio

Fonte: ParadoXo

Cair na profundeza evitada

“Sem uma palavra a escrever, Martim no entanto não resistiu à tentação de imaginar o que lhe aconteceria se o seu poder fosse mais forte que a prudência. 'E se de repente eu pudesse?', indagou-se ele. E então não conseguiu se enganar: o que quer que conseguisse escrever seria apenas por não conseguir escrever 'a outra coisa'. Mesmo dentro do poder, o que dissesse seria apenas por impossibilidade de transmitir uma outra coisa. A Proibição era muito mais funda..., surpreendeu-se Martim.
Como se vê, aquele homem terminara por cair na profundeza que ele sempre sensatamente evitara.
E a escolha tornou-se ainda mais funda: ou ficar com a zona sagrada intacta e viver dela - ou traí-la pelo que ele certamente terminaria conseguindo e que seria apenas isso: o alcançável. Como quem não conseguisse beber a água do rio senão enchendo o côncavo das próprias mãos - mas já não seria a silenciosa água do rio, não seria o seu movimento frígido, nem a delicada avidez com que a água tortura pedras, não seria aquilo que é um homem de tarde junto do rio depois de ter tido uma mulher. Seria o côncavo das próprias mãos. Preferia então o silêncio intacto. Pois o que se bebe é pouco; e do que se desiste, se vive.”
Clarice Lispector, in A Maçã no Escuro

domingo, 29 de junho de 2014

Matar

José Mauro de Vasconcelos, in Meu pé de laranja lima

A pintora

Hoje de tarde
pus uma cadeira no sol pra chupar tangerinas
e comecei a chorar,
até me lembrar de que podia
falar sem mediação com o próprio Deus 
daquela coisa vermelho-sangue, roxo-frio, cinza.
Me agarrei aos seus pés:
Vós sabeis, Vós sabeis,
só Vós sabeis, só Vós.
O bagaço da laranja, suas sementes
me olhavam da casca em concha
na mão seca.
Não queria palavras pra rezar,
bastava-me ser um quadro
bem na frente de Deus
pra Ele olhar.
Adélia Prado

Destino atroz

“Um poeta sofre três vezes: primeiro quando ele os sente, depois quando ele os escreve e, por último, quando declamam os seus versos.”
Mário Quintana, in Caderno H

sexta-feira, 27 de junho de 2014

Dificuldades e facilidades

“Muita coisa, que em certas fases do homem lhe dificulta a vida, serve, numa fase superior, para lha facilitar, porque esses homens aprenderam a conhecer maiores complicações da vida. O inverso sucede igualmente: é assim, por exemplo, que a religião tem um duplo rosto, conforme uma pessoa ergue para ela o olhar, para que ela o livre da sua cruz e das suas penas, ou baixa para ela o olhar como para as cadeias que lhe foram postas, a fim de que não suba pelos ares demasiado alto.”
Friedrich Nietzsche, in Humano, Demasiado Humano

Batata Smile

www.willtirando.com.br

Pátria

“Ninguém é pátria, todos o somos.”
Jorge Luis Borges

Para além

“Tento recordar teu rosto, nome. Curioso, como às vezes nos escapam os traços da pessoa amada. Situo-te num passado já distante. Não te imagino num presente. De ti resta-me o que foste comigo. E foste – ternura e descoberta do meu corpo, de minhas mãos até então inábeis que ensinaste a acariciar teus cabelos, a sentir teu corpo; e ainda descoberta de que a minha voz tinha um sentido para além de sons mais ou menos indistintos e vagos.”
Roland Barthes, in Fragmentos de um discurso amoroso

quarta-feira, 25 de junho de 2014

“Meus pés estão flutuando”, de Os Gêmeos

Travessia

“Ninguém é rio cheio que eu não possa atravessar.”
Aurelina Cândida Soares Caymmi

Teatro Mágico - Mãos aos Desolados [WEBCLIPE]

Arte


“Arte pra mim não é produto de mercado. Podem me chamar de romântico. Arte pra mim é missão, vocação e festa.”
Ariano Suassuna

Viva o Povo Brasileiro!










Imagens do brazilwonders.tumblr.com

Mudanças

“Hem? Hem? Ah. Figuração minha, de pior pra trás, as certas lembranças. Mal haja-me! Sofro-me pena de contar não...
Melhor, se arrepare: pois, num chão, e com igual formato de ramos e folhas, não dá mandioca mansa, que se come comum, e a mandioca-brava, que mata? Agora, o senhor já viu azangada – motivos não sei; às vezes se diz que é replantada no terreno sempre, com mudas seguidas de manaíbas – vai em amargando, de tanto em tanto, de si mesmo toma peçonhas. E, ora veja: a outra, a mandioca-brava, também é que às vezes que fica mansa, a esmo, de se comer sem nenhum mal. E que é isso? Eh, o senhor que já viu, por ver, a feiúra de ódio franzido, carantonho, nas faces duma cobra cascavel? Observou o porco gordo, cada dia mais feliz bruto, capaz de, pudesse, roncar e engolir por sua comodidade o mundo todo? E gavião, corvo, alguns, as feições deles já representam a precisão de talhar para adiante, rasgar e estralhaçar a bico, parece uma quicé muito afiada por ruim desejo. Tudo. Tem até tortas raças de pedras, horrorosas, venenosas – que estragam  mortal a água, se estão jazendo em fundo de poço; o diabo dentro delas dorme: são o demo. Se sabe? E o demo – que é só assim o significado dum azougue maligno – tem ordem de seguir o caminho dele, tem licença para campear?! Arre, ele está misturado em tudo.”
Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas

domingo, 22 de junho de 2014

O Paraíso

“Assim como os outros imaginaram o Paraíso com um jardim, por exemplo. Para mim, a ideia de estar rodeado de livros sempre foi magnífica. Mesmo agora, quando já não posso lê-los, a simples proximidade deles me produz um tipo de felicidade: às vezes um pouco nostálgica, mas felicidade, assim  mesmo.”
Jorge Luis Borges

Minha felicidade

“Não se assuste com minha face carrancuda. É que levo minha felicidade muito a sério.”
In É duro ser cabra na Etópia, de Maitê Proença

Champagne

em No meu fuá
John Green, in A culpa é das estrelas

Uma lembrança

Foi em sonho que revi a longamente amada; sentada numa velha canoa, na praia, ela me sorria com afeto. Com sincero afeto – pois foi assim que ela me dedicou aquela fotografia com sua letra suave de ginasiana.
Lembro-me do dia em que fui perto de sua casa apanhar o retrato, que me prometera na véspera. Esperei-a junto a uma árvore; chovia uma chuva fina. Lembro-me que tinha uma saia escura e uma blusa de cor viva, talvez amarela; que estava sem meias. Os leves pelos de suas pernas lindas queimados pelo sol de todo o dia na praia estavam arrepiados de frio. Senti isso mais do que vi, e, entretanto, esta é a minha impressão mais forte de sua presença de 14 anos: as pernas nuas naquele dia de chuva, quando a grande amendoeira deixava cair na areia grossa pingos muito grandes. Falou muito perto de mim, e perguntei se tomara café; seu hálito cheirava a café. Riu, e disse que sim, com broas. Broas quentinhas, eu queria uma? Saiu correndo, deu a volta à casa, entrou pelos fundos, voltou depois (tinha dois ou três pingos de água na testa) com duas broas ainda quentes na mão. Tirou do seio a fotografia e me entregou.
Dei uma volta pela praia e pelas pedras para ir para casa. Lembro-me do frio vento sul, e do mar limpo, da água transparente, em maré baixa. Duas ou três vezes tirei do bolso a fotografia, protegendo-a com as mãos para que não se molhasse, e olhei. Não estava, como neste sonho de agora, sentada em uma canoa, e não me lembro como estava, mas era na praia e havia uma canoa. “Com sincero afeto…” Comi uma broa devagar como uma espécie de unção.
Foi isso. Ninguém pode imaginar por que sonha as coisas, mas essa broa que quente que recebi de sua mão vinte anos atrás me lembra alguma coisa que comi ontem em casa de minha irmã. Almoçamos os dois, conversamos coisas banais da vida e da cidade grande em que vivemos. Mas na hora da sobremesa a empregada trouxe melado. Melado da roça, numa garrafa tampada com um pedaço de sabugo de milho – e veio também um prato de aipim quente, de onde saia fumaça. O gosto desse melado com aipim era um gosto de infância. Lembra-me a mão longa de uma jovem empregada preta de minha casa: lembro-me quando era criança, ela me servia talvez aipim, então pela primeira vez eu reparei em sua mão, e como era muito mais clara na palma do que no dorso; tinha os dedos pálidos e finos, como se fosse uma princesa negra.
Foi no tempo da descoberta da beleza das coisas: a paisagem vista de cima do morro, uma pequena caixa de madeira escura, o grande tacho de cobre areado, o canário-belga, uma comprida canoa de rio de um só tronco, tão simples, escura, as areias do córrego sob a água clara, pequenas pedras polidas pela água, a noite cheia de estrelas… Uma descoberta múltipla que depois se ligou tudo a essa moça de um moreno suave, minha companheira de praia.
Foi em sonho que revi a longamente amada; entretanto, não era a mesma; seu sorriso e sua beleza que me entontecia haviam vagamente incorporado, atravessando as camadas do tempo, outras doçuras, um nascimento dos cabelos acima da orelha onde passei meus dedos, a nuca suave, com o mistério e o sossego das moitas antigas, os braços belos e serenos. Gostaria de descansar minha cabeça em seus joelhos, ter nas mãos o músculo meigo das panturrilhas. E devia ser de tarde, e galinhas cacarejando lá fora, a voz muito longe de uma mulher chamando alguma criança para o café…
Tudo o que envolve a amada nela se mistura e vive, a amada é um tecido de sensações e fantasias e se tanto a tocamos, e prendemos e beijamos é como querendo sentir toda sua substância que, entretanto, ela absorveu e irradiou para outras coisas, o vestido ruivo, o azul e branco, aqueles sapatos leves e antigos de que temos saudade; e quando está junto a nós imóvel sentimos saudade de seu jeito de andar; quando anda, a queremos de pé, diante do espelho, os dois belos braços erguidos para a nuca, ajeitando os cabelos, cantarolando alguma coisa, antes de partir, de nos deixar sem desejo mas com tanta lembrança de ternura ecoando em todo o corpo.
Foi em sonho que revi a longamente amada. Havia praia, uma lembrança de chuva na praia, outras lembranças: água em gotas redondas correndo sobre as folhas da taioba ou inhame, pingos d’água na sua pele de um moreno suave, o gosto de sua pele beijada devagar… Ou não será gosto, talvez a sensação que dá em nossa boca tão diferente uma pele de outra, esta mais seca e mais quente, aquela úmida e mansa. Mas de repente é apenas essa ginasiana de pernas ágeis que vem nos trazer o retrato com sua dedicatória de sincero afeto; essa que ficou para sempre impossível sem, entretanto, nos magoar, sombra suave entre morros e praia longe.
Foi em sonho que revi a longamente amada; sentada numa velha canoa, na praia, ela me sorria com afeto. Com sincero afeto – pois foi assim que ela me dedicou aquela fotografia com sua letra suave de ginasiana.
Lembro-me do dia em que fui perto de sua casa apanhar o retrato, que me prometera na véspera. Esperei-a junto a uma árvore; chovia uma chuva fina. Lembro-me que tinha uma saia escura e uma blusa de cor viva, talvez amarela; que estava sem meias. Os leves pelos de suas pernas lindas queimados pelo sol de todo o dia na praia estavam arrepiados de frio. Senti isso mais do que vi, e, entretanto, esta é a minha impressão mais forte de sua presença de 14 anos: as pernas nuas naquele dia de chuva, quando a grande amendoeira deixava cair na areia grossa pingos muito grandes. Falou muito perto de mim, e perguntei se tomara café; seu hálito cheirava a café. Riu, e disse que sim, com broas. Broas quentinhas, eu queria uma? Saiu correndo, deu a volta à casa, entrou pelos fundos, voltou depois (tinha dois ou três pingos de água na testa) com duas broas ainda quentes na mão. Tirou do seio a fotografia e me entregou.
Dei uma volta pela praia e pelas pedras para ir para casa. Lembro-me do frio vento sul, e do mar limpo, da água transparente, em maré baixa. Duas ou três vezes tirei do bolso a fotografia, protegendo-a com as mãos para que não se molhasse, e olhei. Não estava, como neste sonho de agora, sentada em uma canoa, e não me lembro como estava, mas era na praia e havia uma canoa. “Com sincero afeto…” Comi uma broa devagar como uma espécie de unção.
Foi isso. Ninguém pode imaginar por que sonha as coisas, mas essa broa que quente que recebi de sua mão vinte anos atrás me lembra alguma coisa que comi ontem em casa de minha irmã. Almoçamos os dois, conversamos coisas banais da vida e da cidade grande em que vivemos. Mas na hora da sobremesa a empregada trouxe melado. Melado da roça, numa garrafa tampada com um pedaço de sabugo de milho – e veio também um prato de aipim quente, de onde saia fumaça. O gosto desse melado com aipim era um gosto de infância. Lembra-me a mão longa de uma jovem empregada preta de minha casa: lembro-me quando era criança, ela me servia talvez aipim, então pela primeira vez eu reparei em sua mão, e como era muito mais clara na palma do que no dorso; tinha os dedos pálidos e finos, como se fosse uma princesa negra.
Foi no tempo da descoberta da beleza das coisas: a paisagem vista de cima do morro, uma pequena caixa de madeira escura, o grande tacho de cobre areado, o canário-belga, uma comprida canoa de rio de um só tronco, tão simples, escura, as areias do córrego sob a água clara, pequenas pedras polidas pela água, a noite cheia de estrelas… Uma descoberta múltipla que depois se ligou tudo a essa moça de um moreno suave, minha companheira de praia.
Foi em sonho que revi a longamente amada; entretanto, não era a mesma; seu sorriso e sua beleza que me entontecia haviam vagamente incorporado, atravessando as camadas do tempo, outras doçuras, um nascimento dos cabelos acima da orelha onde passei meus dedos, a nuca suave, com o mistério e o sossego das moitas antigas, os braços belos e serenos. Gostaria de descansar minha cabeça em seus joelhos, ter nas mãos o músculo meigo das panturrilhas. E devia ser de tarde, e galinhas cacarejando lá fora, a voz muito longe de uma mulher chamando alguma criança para o café…
Tudo o que envolve a amada nela se mistura e vive, a amada é um tecido de sensações e fantasias e se tanto a tocamos, e prendemos e beijamos é como querendo sentir toda sua substância que, entretanto, ela absorveu e irradiou para outras coisas, o vestido ruivo, o azul e branco, aqueles sapatos leves e antigos de que temos saudade; e quando está junto a nós imóvel sentimos saudade de seu jeito de andar; quando anda, a queremos de pé, diante do espelho, os dois belos braços erguidos para a nuca, ajeitando os cabelos, cantarolando alguma coisa, antes de partir, de nos deixar sem desejo mas com tanta lembrança de ternura ecoando em todo o corpo.
Foi em sonho que revi a longamente amada. Havia praia, uma lembrança de chuva na praia, outras lembranças: água em gotas redondas correndo sobre as folhas da taioba ou inhame, pingos d’água na sua pele de um moreno suave, o gosto de sua pele beijada devagar… Ou não será gosto, talvez a sensação que dá em nossa boca tão diferente uma pele de outra, esta mais seca e mais quente, aquela úmida e mansa. Mas de repente é apenas essa ginasiana de pernas ágeis que vem nos trazer o retrato com sua dedicatória de sincero afeto; essa que ficou para sempre impossível sem, entretanto, nos magoar, sombra suave entre morros e praia longe.
Rubem Braga, in O homem rouco

sábado, 21 de junho de 2014

Vespas Mandarinas - Não Sei O Que Fazer Comigo

A inveja

“A inveja causa àquele que a alimenta cinco prejuízos, antes mesmo de poder fazer mal à pessoa invejada:
1)     O invejoso experimenta um pesar permanente;
2)    Sofre um tormento inútil, do qual não será recompensado por ninguém;
3)    Atrai sobre si a cólera de Deus;
4)    Fecha as portas da assistência divina;
5)    Seu vício não lhe conquista nenhuma estima por parte dos homens.”
Provérbio árabe

Silêncio

Fonte: ParadoXo

Esperança, ilusão...

“Um dia, tudo estará bem, eis a nossa esperança. Tudo está bem hoje, eis a nossa ilusão.”
Voltaire

O sistema judiciário e penal

“Indignava-o sobretudo que nos tribunais e nos ministérios existissem funcionários muito bem pagos, a expensas do povo, para consultar livros escritos em idêntico estado de espírito por outros funcionários, encarregados de classificar os delitos cometidos contra a lei. Esses delitos estavam classificados em parágrafos que conferiam o poder de desterrar para lugares longínquos pessoas que nunca mais regressariam. Às mãos dos diretores, dos guardas e dos brutais e cruéis soldados da escolta eram aniquilados física e moralmente milhões de corpos.
Quando conheceu mais perto os cárceres e as caravanas, Nekliudov verificou que os vícios espalhados entre os presos, a embriaguez, o jogo, a crueldade, assim como os crimes horrorosos cometidos por eles e até mesmo o canibalismo, não se deviam ao acaso, aos fenômenos de degenerescência desse monstruoso ‘tipo criminal’ imaginado por sábios estúpidos ao serviço das autoridades, mas eram uma consequência inevitável da absurda aberração dos homens que se atribuíam o direito de julgar os seus semelhantes. Nekliudov compreendia que o canibalismo não tinha origem na taiga, mas nos ministérios, nas comissões, nas repartições, para atingir depois a taiga. Compreendia também que todos os juízes, todos os funcionários – incluindo o seu cunhado -, desde o oficial de diligências até ao ministro, não tinham nenhuma preocupação com a justiça e o bem do povo de que tanto falavam. Apenas lhes interessava o dinheiro que recebiam para realizar um trabalho que tinha por consequência a depravação e o sofrimento. Era evidente.”
Leon Tolstoi, in Ressurreição

sexta-feira, 20 de junho de 2014

Ontem, hoje, amanhã

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Mentira e verdade

“Nós já esquecemos completamente o axioma de que a verdade é a coisa mais poética no mundo, especialmente no seu estado puro. Mais do que isso: é ainda mais fantástica que aquilo que a mente humana é capaz de fabricar ou conceber... de fato, os homens conseguiram finalmente ser bem sucedidos em converter tudo o que a mente humana é capaz de mentir e acreditar em algo mais compreensível que a verdade, e é isso que prevalece por todo o mundo. Durante séculos a verdade irá continuar à frente do nariz das pessoas, mas estas não a tomarão: irão persegui-la através da fabricação, precisamente porque procuram algo fantástico e utópico.”
Fiodor Dostoievski, in Diário de um Escritor

No caminho, com Maiakósvki

Assim como a criança
humildemente afaga
a imagem do herói,
assim me aproximo de ti, Maiakósvki.
Não importa o que me possa acontecer
por andar ombro a ombro
com um poeta soviético.
Lendo teus versos,
aprendi a ter coragem.

Tu sabes,
conheces melhor do que eu
a velha história.
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho e nossa casa,
rouba-nos a luz e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.

Nos dias que correm
a ninguém é dado
repousar a cabeça
alheia ao terror.
Os humildes baixam a cerviz:
e nós, que não temos pacto algum
com os senhores do mundo,
por temor nos calamos.
No silêncio de meu quarto
a ousadia me afogueia as faces
e eu fantasio um levante;
mas amanhã,
diante do juiz,
talvez meus lábios
calem a verdade
como um foco de germes
capaz de me destruir.

Olho ao redor
e o que vejo
e acabo por repetir
são mentiras.
Mal sabe a criança dizer mãe
e a propaganda lhe destrói a consciência.
A mim, quase me arrastam
pela gola do paletó
à porta do templo
e me pedem que aguarde
até que a Democracia
se digne aparecer no balcão.
Mas eu sei,
porque não estou amedrontado
a ponto de cegar, que ela tem uma espada
a lhe espetar as costelas
e o riso que nos mostra
é uma tênue cortina
lançada sobre os arsenais.

Vamos ao campo
e não os vemos ao nosso lado,
no plantio.
Mas no tempo da colheita
lá estão
e acabam por nos roubar
até o último grão de trigo.
Dizem-nos que de nós emana o poder
mas sempre o temos contra nós.
Dizem-nos que é preciso
defender nossos lares,
mas se nos rebelamos contra a opressão
é sobre nós que marcham os soldados.

E por temor eu me calo.
Por temor, aceito a condição
de falso democrata
e rotulo meus gestos
com a palavra liberdade,
procurando, num sorriso,
esconder minha dor
diante de meus superiores.
Mas dentro de mim,
com a potência de um milhão de vozes,
o coração grita - MENTIRA!
Eduardo Alves da Costa

Coisas do Brasil: Caverna São Vicente II - Parque Estadual Terra Ronca, Goiás

Foto: Yel Nunes

Inferno e paraíso

“O inferno e o paraíso me parecem desproporcionados. Os atos dos homens não merecem tanto.”
Jorge Luis Borges

quinta-feira, 19 de junho de 2014

Biografia

“Era um grande nome — ora que dúvida! Uma verdadeira glória. Um dia adoeceu, morreu, virou rua... E continuaram a pisar em cima dele.”
Mário Quintana, in Caderno H

O entendimento humano

“Malgrado o que dizem os moralistas, o entendimento humano deve muito às paixões, que, de comum acordo, também lhe devem muito: é pela sua atividade que a nossa razão se aperfeiçoa; só procuramos conhecer porque desejamos gozar; e não é possível conceber porque aquele que não tivesse desejos nem temores se desse ao trabalho de raciocinar. As paixões, por sua vez, originam-se a partir das nossas necessidades, e o seu progresso dos nossos conhecimentos; porque só podemos desejar ou temer coisas segundo as ideias que temos delas, ou pelo simples impulso da natureza; e o homem selvagem, privado de toda a sorte de luzes, só experimenta as paixões dessa última espécie; os únicos bens que conhece no universo são a sua nutrição, uma fêmea e o repouso; os únicos males que teme são a dor e a fome. Digo a dor, e não a morte; porque jamais o animal saberá o que é morrer; e o conhecimento da morte e dos seus terrores foi uma das primeiras aquisições que o homem fez afastando-se da condição animal.” 
Jean-Jacques Rousseau

O baluarte da arte

sushidekriptonita.blogspot.com.br

A riqueza do homem

A maior riqueza do homem
é a sua incompletude.
Nesse ponto sou abastado.
Palavras que me aceitam como sou – eu não aceito.
Não aguento ser apenas um sujeito que abre portas,
que puxa válvulas, que olha o relógio,
que compra pão às 6 horas da tarde,
que vai lá fora, que aponta lápis,
que vê a uva etc. etc. Perdoai
Mas eu preciso ser Outros.
Eu penso renovar o homem usando borboletas.
Manoel de Barros

A vida é...

“A vida é uma farsa que toda a gente se vê obrigada a representar."
Arthur Rimbaud

Planeta dos Macacos: O Confronto | Trailer

Crônica n° 1

Tanto neste nosso jogo de ler e escrever, leitor amigo, como em qualquer outro jogo, o melhor é sempre obedecer às regras. Comecemos portanto obedecendo às da cortesia, que são as primeiras, e  nos apresentemos um ao outro. Imagine que pretendendo ser permanente a página que hoje se inaugura, nem eu nem você, — os responsáveis por ela, — nos conhecermos direito. É que os diretores de revista, quando organizam as suas seções, fazem como os chefes de casa real arrumando os casamentos dinásticos: tratam noivado e celebram matrimônio à revelia dos interessados, que só se vão defrontar cara a cara na hora decisiva do "enfim sós”.
Cá estamos também os dois no nosso "enfim sós" — e ambos, como é natural, meio desajeitados, meio carecidos de assunto: Comecemos pois a falar de você, que é tema mais interessante do que eu. Confesso-lhe, leitor que diante da entidade coletiva que você é, o meu primeiro sentimento foi de susto —, sim, susto ante as suas proporções quase imensuráveis. Disseram-me que o leitor de O CRUZEIRO representa pelo barato mais de cem mil leitores, uma vez que a revista põe semanalmente na rua a bagatela de 100.000 exemplares.
Sinto muito, mas francamente lhe devo declarar que não estou de modo nenhum habituada a auditórios de cem mil. Até hoje tenho sido apenas uma autora de romances de modesta tiragem; é verdade que venho há anos freqüentando a minha página de jornal; mas você sabe o que é jornal: metade do público que o compra só lê os telegramas e as notícias de crimes e a outra lê rigorosamente os anúncios. O recheio literário fica em geral piedosamente inédito. E agora, de repente, me atiram pelo Brasil afora em número de 100.000! Não se admire portanto se eu me sinto por ora meio “gôche”.
Dizem-me, também que você costuma dar sua preferência a gravuras com garotas bonitas a contos de amor, a coisas leves e sentimentais. Como, então, se isso não é mentira, conseguirei atrair o seu interesse? Pouco sei falar em coisas delicadas, em coisas amáveis. Sou uma mulher rústica, muito pegada à terra, muito perto dos bichos, dos negros, dos caboclos, das coisas elementares do chão e do céu. Se você entender de sociologia, dirá que sou uma mulher telúrica; mas não creio que entenda. E assim não resta sequer a compensação de me classificar com uma palavra bem soante.
Nasci longe e vivo aqui no Rio, mais ou menos como num exílio. Me consolo um pouco pensando que você, sendo no mínimo cem mil, anda espalhado pelo Brasil todo e há de muitas vezes estar perto de onde estou longe; e o que para mim será saudosa lembrança, é para você o pão de cada dia. Seus olhos muitas vezes ambicionarão isto que me deprime, — paisagem demais, montanha demais, panorama, panorama, panorama. Tem dia em que eu dava dez anos de vida por um pedacinho bem árido de caatinga, um riacho seco, um marmeleiral ralo, uma vereda pedregosa, sem nada de arvoredo luxuriante, nem lindos recantos de mar, nem casinhas pitorescas, sem nada deste insolente e barato cenário tropical. Vivo aqui abafada , enjoada de esplendor, gemendo sob a eterna, a humilhante sensação de que estou servindo sem querer como figurante de um filme colorido. Até me admira todo o mundo do Rio de Janeiro não ser obrigado a andar de “sarong”. Mas, cala-te boca; para que fui lembrar? Capaz de amanhã sair uma lei dando essa ordem.
Apesar entretanto de todas essas dificuldades, tenho a esperança de que nos entenderemos. Voltando à comparação dos casamentos de príncipe, o fato é que as mais das vezes davam certo. Não viu o do nosso Pedro II com a sua Teresa Cristina? Ele quase chorou de raiva quando deu de si casado com aquele rosto sem beleza, com aquela perna claudicante; porém com o tempo se acostumaram, se amaram, foram felizes, e ela ganhou o nome de Mãe dos Brasileiros. Assim há de ser conosco, que eu, se não claudico no andar, claudico na gramática e em outras artes exigentes. Mas sou uma senhora amorável, tal como a finada imperatriz, e de alma muito maternal. A política é que às vezes me azeda mas, segundo o trato feito, não discorreremos aqui de política. Em tudo o mais sempre me revelo uma alma lírica, cheia de boa vontade; eu sou triste um dia ou outro, não sou mal humorada nunca. E tenho sempre casos para contar, caos de minha terra, desta ilha onde moro; mentiras, recordações, mexericos, que talvez divirtam seus tédios.
Você irá desculpando as faltas, que eu por meu lado irei tentando me adaptar aos seus gostos. Quem sabe se apesar de todas as diferenças alegadas temos uma porção de coisas em comum?
Vez por outra hei de lhe desagradar, haveremos de divergir; ninguém é perfeito neste mundo e não sou eu que vá encobrir meus senões. Tenho as minhas opiniões obstinadas — você tem pelo menos cem mil opiniões diferentes — há, pois, muito pé para discordância.
Mas quando isso suceder, seja franco, conte tudo quanto lhe pesa. Ponha o amor próprio de lado, que lhe prometo também não fazer praça do meu. Lembre-se de que há um terreno de pacificação, um recurso extremo, a que sempre poderemos recorrer: fazemos uma trégua no desentendimento, procurando esquecer quem dos dois tinha ou não tinha razão; damos o braço e saímos andando por este mundo, olhando tudo que há nele de bonito ou de comovente: os casais de namorados nos bancos de jardim, o garotinho cacheado que faz bolos na areia da praia, a luz da rua refletida nas águas da baía, ou simplesmente o brilho solitário da estrela da manhã.
Depois disso, não precisaremos sequer de fazer as pazes; nos seus cem mil variadíssimos corações, como no meu coração único só haverá espaço para amizade e silêncio.
Há anos sei que é infalível o resultado da estrela da manhã.
Rachel de Queiroz, 1ª crônica para a revista O Cruzeiro, em 01/12/1945

domingo, 15 de junho de 2014

O amor, esse sufoco

Orquestra Spok Frevo com Armandinho

Mergulho em mim

“Tudo o que aqui escrevo é forjado no meu silêncio e na penumbra. Vejo pouco, ouço quase nada. Mergulho enfim em mim até o nascedouro do espírito que me habita. Minha nascente é obscura. Estou escrevendo porque não sei o que fazer de mim. Quer dizer: não sei o que fazer com meu espírito. O corpo informa muito. Mas eu desconheço as leis do espírito: ele vagueia. Meu pensamento, com a enunciação das palavras mentalmente brotando, sem depois eu falar ou escrever — esse meu pensamento de palavras é precedido por uma instantânea visão, sem palavras, do pensamento — palavra que se seguirá, quase imediatamente — diferença espacial de menos de um milímetro. Antes de pensar, pois, eu já pensei.”
Clarice Lispector, in Um sopro de vida

Alegria

“Deus nos dá pessoas e coisas, para aprendermos a alegria... Depois, retoma coisas e pessoas para ver se já somos capazes da alegria sozinhos... Essa... a alegria que ele quer.”
Guimarães Rosa

Não mexe!

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sábado, 14 de junho de 2014

O sonhador

"A superioridade do sonhador consiste em que sonhar é muito mais prático que viver, e em que o sonhador extrai da vida um prazer muito mais vasto e muito mais variado do que o homem de ação. Em melhores e mais diretas palavras, o sonhador é que é o homem de ação."
Fernando Pessoa

A infância é uma gaveta fechada...

A infância é uma gaveta fechada, numa antiga cômoda de velhas magias
A regra pode-se enunciar assim: espera-se que a avó entre para descansar, depois vai-se pé ante pé ver se o avô está mesmo cochilando, na cadeira de balanço...
- ou estará MORTO?
 
… não, não está porque a cabeça des-ca-ca-c ... aiu num cochilo e se levantou de novo sozinho, assustado, dormindo e saiu uma língua da boca que lambeu o bigode branco e a cabeça foi, foi e des-ca-ca-ca-ca-caiu...
O corredor é a corrida geométrica natural para a fuga de uma gargalhada que não se contém. O avô é o mais engraçado dos homens, o avô é tão, tão, tão, tão, tão...
O medo se abate sobre o Descobridor. É a doçura do nome de Margarida, cujo retrato à meia-luz não entreviu.
Vinicius de Moraes

Coisas do Brasil: Fernando de Noronha

Imagem: Jim Skea

sexta-feira, 13 de junho de 2014

Ignorância

"Pois, o que é ignorar invencivelmente senão ignorar e não conseguir saber? E o que é a ignorância invencível senão a ignorância acompanhada da incapacidade de saber aquilo que se ignora?"
Padre Antônio Vieira

Angústia do homem

“Cada vez que a ciência deu um passo à frente, perguntou-se sempre se Deus com isso ganhava ou perdia. Mas, essas perdas e ganhos são mais aparentes do que reais, porque a angústia do homem diante de si mesmo e de seu destino é sempre a mesma.”
Paul-Arbusse Bastide

quinta-feira, 12 de junho de 2014

Visa Samba do Brasil

Mancha de fogo refletido n’água

“A barca voadeira sobe o rio e no seu leito não atua, flutua, contrária à correnteza, no sentido da tarde, mancha de fogo refletido n’água. A gaiola imóvel assiste ao país passar acenando, ao som da hélice gigante que chega à barranqueira; o vento vive na ramagem aflita. As casas passam, os ingás e igarapés correm junto dos olhos, que chegam à margem, encantados, para ver o grande feixe de alumínio desnavegar o dia. O imenso vagão, das janelas de acrílico azul, veio cantar o mundo com a sua música parada, sem trilhos, sem remos, sem asas.”
Marcílio Godoi

Jorge Vercillo - Filosofia de Amor

quarta-feira, 11 de junho de 2014

Felicidade

“Suspeitei uma vez que a única coisa sem mistério é a felicidade, porque se justifica por si só.”
Jorge Luis Borges

Indiferença ante a morte

“Admirável, realmente, o indiferentismo fatalista do camponês húngaro, que morre sem relutância nem amargura. Ao declarar – ‘Cumpriu-se o meu destino’ – inclina docilmente a cabeça e começa a ditar ao senhor notário suas disposições de última vontade. Ou ainda pergunta: ‘- Que tenho mais que fazer aqui?’ Assim agiu Csépi Marci, o velho guarda-noturno, quando perdeu o seu modesto emprego. ‘- Que é que temos?’ – perguntou à mulher. Tinham ainda um pão e um pouco de repolho cru no fundo do tonel. Foi o bastante para nutrir Marci durante dois dias; e quando, à noitinha do segundo dia acabou de engolir o último pedacinho de pão, deitou-se no banco do forno, colocou as botas debaixo da cabeça, fechou os olhos e morreu, certo de que não tinha mais nada que fazer neste mundo de misérias.”
Mikszáth Kálman, in A Mosca Verde e o Esquilo Amarelo

Bíblia

“O que me incomoda na Bíblia não são os trechos que não compreendo. São justamente os que compreendo.”
Mark Twain

Street Art, de Patrick Commecy, na França

Antes:

Depois:
Street Art by Franceses de Patrick Commecy in France 1
www.streetartutopia.com

terça-feira, 10 de junho de 2014

Enfrentar a vida eterna com prazer

Meus amigos, meus conhecidos, meus afetos e desafetos,
meus leitores e detratores, ouçam e atendam:
quando chegar a hora do meu último repouso,
busquem meu corpo onde ele estiver,
na poeira do Rio ou na neve gaúcha,
nalgum Japão antípoda, ou aqui mesmo,
na rua Dr. Luiz Januário, uma rua que
possivelmente já tenha perdido os belos paralelepípedos
em nome do duvidoso progresso. 

Busquem meu corpo de carro ou rabecão, de carrinho de mão
ou num simples lençol usado,
e depositem ali, atrás da Igreja da mãe de Nazaré,
naquela terra que o mato insiste em invadir,
e onde não há sinal de diferença de classe ou de sonho,
tão singelas são as lápides. 

Deitem-me ali, com toda memória possível que tenham de mim,
lembrem e inventem sobre a minha vida, mas deixem-me ali. 

Quero enfrentar a vida eterna com prazer,
o vento e o azul do céu fazendo um toldo móvel sobre o meu leito. 

Eu e o silêncio
ouvindo eternamente o mar. 
Walmir Ayala

Lamentos (Pixinguinha e Vinicius de Moraes) - Yamandu Costa + Dominguinhos

Aborrecimentos

"Perdoamos com facilidade àqueles que nos aborrecem, mas não conseguimos perdoar àqueles a quem aborrecemos."
La Rochefoucauld

Paradoxos

Se a contradição for o pulmão da história, o paradoxo deverá ser, penso eu, o espelho que a história usa para debochar de nós. Nem o próprio filho de Deus salvou-se do paradoxo. Ele escolheu, para nascer, um deserto subtropical onde jamais nevou, mas a neve se converteu num simbolo universal do Natal desde que a Europa decidiu europeizar Jesus. E para mais inri, o nascimento de Jesus e, hoje m dia, o negocio que mais dinheiro da aos mercadores que Jesus tinha expulsado do templo.
Napoleão Bonaparte, o mais francês dos franceses, não era francês. Não era russo Josef Stalin, o mais russo dos russos; e o mais alemão dos alemães, Adolf Hitler, tinha nascido na Áustria. Margherita Sarfatti, a mulher mais amada pelo anti-semita Mussolini, era judia. Jose Carlos Mariategui, o mais marxista dos marxistas latino-mericanos, acreditava fervorosamente em Deus. O Che Guevara tinha sido declarado completamente incapaz para a vida militar pelo exército argentino.
Das mãos de um escultor chamado Aleijadinho, que era o mais feio dos brasileiros, nasceram as mais altas formosuras do Brasil. Os negros norte-americanos, os mais oprimidos, criaram o jazz, que e a mais livre das músicas. No fundo de um cárcere foi concebido o Dom Quixote, o mais andante dos cavaleiros. E cúmulo dos paradoxos, Dom Quixote nunca disse sua frase mais célebre. Nunca disse: Ladram, Sancho, sinal que cavalgamos.
"Acho que você esta meio nervosa", diz o histérico. "Te odeio", diz a apaixonada. "Não haverá desvalorização", diz, na véspera da desvalorização, o ministro da Economia. "Os militares respeitam a Constituição", diz, na véspera do golpe de Estado, o ministro da Defesa.
Em sua guerra contra a revolução sandinista, o governo dos Estados Unidos coincidia, paradoxalmente, com o Partido Comunista da Nicarágua. E paradoxais foram, enfim, as barricadas sandinistas durante a ditadura de Somoza: as barricadas, que fechavam as ruas, abriam o caminho.
Eduardo Galeano, in O livro dos abraços

segunda-feira, 9 de junho de 2014

Sou lido


“Não tenho cultura. Sou lido, é diferente.”
Carlos Drummond de Andrade

Quase Nada 262

Quase Nada 262
www.10paezinhos.com.br

Não se pode perder o que não se tem

“Embora devesses viver três mil anos, e tantos dez mil anos, lembra que homem nenhum perde outra vida além da que ele vive agora, nem vive outra além daquela que ele perde agora. Assim a mais longa e a mais curta vêm a ser o mesmo. O presente é o mesmo para todos, embora aquilo que parece não seja o mesmo; e assim aquilo que se perde parece ser apenas um momento. Um homem não pode perder nem o passado nem o futuro, pois como pode alguém tirar dele o que ele não tem? Deves, pois, ter essas duas coisas em mente: uma, que todas as coisas, por toda a eternidade, são idênticas e cíclicas e é indiferente ao homem ver as mesmas coisas durante cem ou duzentos, ou por um tempo infinito; outra, que o longevo e o que morre cedo perdem o mesmo. Pois o presente é a única coisa do que um homem pode ser privado, se é verdade que essa é a única coisa que ele tem e que não se pode perder o que não se tem.”
Marco Aurélio

Filosofar

“Filosofar é como tentar descobrir o segredo de um cofre: cada pequeno ajuste no mecanismo parece levar a nada. Apenas quando tudo entra no lugar a porta se abre.”
Ludwig Wittgenstein

domingo, 8 de junho de 2014

Noite Estrelada (1889), de Vincent Van Gogh

O meu amor não cabe num poema

O meu amor não cabe num poema - há coisas assim,
que não se rendem à geometria deste mundo;
são como corpos desencontrados da sua arquitetura
ou quartos que os gestos não preenchem. 

O meu amor é maior que as palavras; e daí inútil
a agitação dos dedos na intimidade do texto -
a página não ilustra o zelo do farol que agasalha as baías
nem a candura da mão que protege a chama que estremece. 

O meu amor não se deixa dizer - é um formigueiro
que acode aos lábios como a urgência de um beijo
ou a matéria efervescente dos segredos; a combustão
laboriosa que evoca, à flor da pele, vestígios
de uma explosão exemplar: a cratera que um corpo,
ao levantar-se, deixa para sempre na vizinhança de outro corpo. 

O meu amor anda por dentro do silêncio a formular loucuras
com a nudez do teu nome - é um fantasma que estrebucha
no dédalo das veias e sangra quando o encerram em metáforas.
Um verso que o vestisse definharia sob a roupa
como o esqueleto de uma palavra morta. Nenhum poema
podia ser o chão da sua casa. 
Maria do Rosário Pedreira

Cícero - Praça Paris

Bilhete a um candidato

Olhe aqui, Rubem. Para ser eleito vereador, eu preciso de três mil votos. Só lá no Jockey, entre tratadores, jóqueis, empregados e sócios eu tenho, no mínimo mesmo, trezentos votos certos; vamos botar mais cem na Hípica, Bem, quatrocentos. Pessoal de meu clube, o Botafogo, calculando com o máximo de pessimismo, seiscentos. Aí já estão mil.
Entre colegas de turma e de repartição contei, seguros, duzentos; vamos dizer, cem. Naquela fábrica da Gávea, você sabe, eu estou com tudo na mão, porque tenho apoio por baixo e por cima, inclusive dos comunas; pelo menos oitocentos votos certos, mas vamos dizer, quatrocentos. Já são mil e quinhentos.
Em Vila Isabel minha sogra é uma potência, porque essas coisas de igreja e caridade tudo lá é com ela. Quer saber de uma coisa? Só na Vila eu já tenho a eleição garantida, mas vamos botar: quinhentos. Aí já estão, contando miseravelmente, mas mi-se-ra-vel-men-te, dois mil. Agora você calcule: Tuizinho no Méier, sabe que ele é médico dos pobres, é um sujeito que se quisesse entrar na política acabava senador só com o voto da zona norte; e é todo meu, batata, cem por cento, vai me dar pelo menos mil votos. Você veja, poxa, eu estou eleito sem contar mais nada, sem falar no pessoal do cais do porto, nem postalistas, nem professoras primárias, que só aí, só de professoras, vai ser um xuá, você sabe que minha mãe e minha tia são diretoras de grupo. Agora bote choferes, garçons, a turma do clube de xadrez e a colônia pernambucana como é que é!
E o Centro Filatelista? Sabe quantos filatelistas tem só no Rio de Janeiro? Mais de quatro mil! E nesse setor não tem graça, o papai aqui está sozinho! É como diz o Gonçalves: sou o candidato do olho-de-boi!
E fora disso, quanta coisa! Diretor de centro espírita, tenho dois. E o eleitorado independente? E não falei do meu bairro, poxa, não falei de Copacabana, você precisa ver como ela em casa, o telefone não pára de tocar, todo mundo pedindo cédula, cédula, até sujeitos que eu não vejo há mais de dez anos. E a turma da Equitativa? O Fernandão garante que só lá tenho pelo menos trezentos votos. E o Resseguro, e o reduto do Goulart em Maria da Graça, o pessoal do fórum Olhe, meu filho, estou convencido de que fiz uma grande besteira: eu devia ter saído era para deputado!
Passei uma semana sem ver meu amigo candidato; no dia 30 de setembro, três dias antes das eleições, esbarrei com ele na Avenida Nossa Senhora de Copacabana, todo vibrante, cercado de amigos; deu-me um abraço formidável e me apresentou ao pessoal: este aqui é meu, de cabresto!
Atulhou-me de cédulas.
Meu caro candidato:
Você deve ter notado que na 122ª seção da quinta zona, onde votei, você não teve nenhum voto. Palavra de honra que eu ia votar em você; levei uma cédula no bolso. Mas você estava tão garantido que preferi ajudar outro amigo com meu votinho. Foi o diabo. Tenho a impressão de que os outros eleitores pensaram a mesma coisa, e nessa marcha da apuração, se você chegar a trezentos votos ainda pode se consolar, que muitos outros terão muito menos do que isso. Aliás, quem também estava lá e votou logo depois de mim foi o Gonçalves dos selos.
Sabe uma coisa? Acho que esse negócio de voto secreto no fundo é uma indecência, só serve para ensinar o eleitor a mentir: a eleição é uma grande farsa, pois se o cidadão não pode assumir a responsabilidade de seu próprio voto, de sua opinião pessoal, que porcaria de República é esta?
Vou lhe dizer uma coisa com toda franqueza: foi melhor assim. Melhor para você. Essa nossa Câmara Municipal não era mesmo lugar para um sujeito decente como você. É superdesmoralizada. Pense um pouco e me dará razão. Seu, de cabresto, o Rubem.
Rubem Braga