“Indignava-o
sobretudo que nos tribunais e nos ministérios existissem funcionários muito bem
pagos, a expensas do povo, para consultar livros escritos em idêntico estado de
espírito por outros funcionários, encarregados de classificar os delitos
cometidos contra a lei. Esses delitos estavam classificados em parágrafos que
conferiam o poder de desterrar para lugares longínquos pessoas que nunca mais
regressariam. Às mãos dos diretores, dos guardas e dos brutais e cruéis
soldados da escolta eram aniquilados física e moralmente milhões de corpos.
Quando conheceu mais perto os cárceres e
as caravanas, Nekliudov verificou que os vícios espalhados entre os presos, a
embriaguez, o jogo, a crueldade, assim como os crimes horrorosos cometidos por
eles e até mesmo o canibalismo, não se deviam ao acaso, aos fenômenos de
degenerescência desse monstruoso ‘tipo criminal’ imaginado por sábios estúpidos
ao serviço das autoridades, mas eram uma consequência inevitável da absurda
aberração dos homens que se atribuíam o direito de julgar os seus semelhantes. Nekliudov
compreendia que o canibalismo não tinha origem na taiga, mas nos ministérios,
nas comissões, nas repartições, para atingir depois a taiga. Compreendia também
que todos os juízes, todos os funcionários – incluindo o seu cunhado -, desde o
oficial de diligências até ao ministro, não tinham nenhuma preocupação com a
justiça e o bem do povo de que tanto falavam. Apenas lhes interessava o
dinheiro que recebiam para realizar um trabalho que tinha por consequência a
depravação e o sofrimento. Era evidente.”
Leon
Tolstoi, in Ressurreição
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