Tanto
neste nosso jogo de ler e escrever, leitor amigo, como em qualquer outro jogo,
o melhor é sempre obedecer às regras. Comecemos portanto obedecendo às da
cortesia, que são as primeiras, e nos apresentemos um ao outro. Imagine
que pretendendo ser permanente a página que hoje se inaugura, nem eu nem você,
— os responsáveis por ela, — nos conhecermos direito. É que os diretores de
revista, quando organizam as suas seções, fazem como os chefes de casa real
arrumando os casamentos dinásticos: tratam noivado e celebram matrimônio à
revelia dos interessados, que só se vão defrontar cara a cara na hora decisiva
do "enfim sós”.
Cá
estamos também os dois no nosso "enfim sós" — e ambos, como é
natural, meio desajeitados, meio carecidos de assunto: Comecemos pois a falar
de você, que é tema mais interessante do que eu. Confesso-lhe, leitor que
diante da entidade coletiva que você é, o meu primeiro sentimento foi de susto
—, sim, susto ante as suas proporções quase imensuráveis. Disseram-me que o
leitor de O CRUZEIRO representa pelo barato mais de cem mil leitores, uma vez
que a revista põe semanalmente na rua a bagatela de 100.000 exemplares.
Sinto
muito, mas francamente lhe devo declarar que não estou de modo nenhum habituada
a auditórios de cem mil. Até hoje tenho sido apenas uma autora de romances de
modesta tiragem; é verdade que venho há anos freqüentando a minha página de
jornal; mas você sabe o que é jornal: metade do público que o compra só lê os
telegramas e as notícias de crimes e a outra lê rigorosamente os anúncios. O
recheio literário fica em geral piedosamente inédito. E agora, de repente, me
atiram pelo Brasil afora em número de 100.000! Não se admire portanto se eu me
sinto por ora meio “gôche”.
Dizem-me,
também que você costuma dar sua preferência a gravuras com garotas bonitas a
contos de amor, a coisas leves e sentimentais. Como, então, se isso não é
mentira, conseguirei atrair o seu interesse? Pouco sei falar em coisas
delicadas, em coisas amáveis. Sou uma mulher rústica, muito pegada à terra,
muito perto dos bichos, dos negros, dos caboclos, das coisas elementares do
chão e do céu. Se você entender de sociologia, dirá que sou uma mulher
telúrica; mas não creio que entenda. E assim não resta sequer a compensação de
me classificar com uma palavra bem soante.
Nasci
longe e vivo aqui no Rio, mais ou menos como num exílio. Me consolo um pouco
pensando que você, sendo no mínimo cem mil, anda espalhado pelo Brasil todo e
há de muitas vezes estar perto de onde estou longe; e o que para mim será
saudosa lembrança, é para você o pão de cada dia. Seus olhos muitas vezes
ambicionarão isto que me deprime, — paisagem demais, montanha demais, panorama,
panorama, panorama. Tem dia em que eu dava dez anos de vida por um pedacinho
bem árido de caatinga, um riacho seco, um marmeleiral ralo, uma vereda
pedregosa, sem nada de arvoredo luxuriante, nem lindos recantos de mar, nem
casinhas pitorescas, sem nada deste insolente e barato cenário tropical. Vivo
aqui abafada , enjoada de esplendor, gemendo sob a eterna, a humilhante
sensação de que estou servindo sem querer como figurante de um filme colorido.
Até me admira todo o mundo do Rio de Janeiro não ser obrigado a andar de
“sarong”. Mas, cala-te boca; para que fui lembrar? Capaz de amanhã sair uma lei
dando essa ordem.
Apesar
entretanto de todas essas dificuldades, tenho a esperança de que nos
entenderemos. Voltando à comparação dos casamentos de príncipe, o fato é que as
mais das vezes davam certo. Não viu o do nosso Pedro II com a sua Teresa
Cristina? Ele quase chorou de raiva quando deu de si casado com aquele rosto
sem beleza, com aquela perna claudicante; porém com o tempo se acostumaram, se
amaram, foram felizes, e ela ganhou o nome de Mãe dos Brasileiros. Assim há de
ser conosco, que eu, se não claudico no andar, claudico na gramática e em
outras artes exigentes. Mas sou uma senhora amorável, tal como a finada
imperatriz, e de alma muito maternal. A política é que às vezes me azeda mas,
segundo o trato feito, não discorreremos aqui de política. Em tudo o mais
sempre me revelo uma alma lírica, cheia de boa vontade; eu sou triste um dia ou
outro, não sou mal humorada nunca. E tenho sempre casos para contar, caos de
minha terra, desta ilha onde moro; mentiras, recordações, mexericos, que talvez
divirtam seus tédios.
Você
irá desculpando as faltas, que eu por meu lado irei tentando me adaptar aos
seus gostos. Quem sabe se apesar de todas as diferenças alegadas temos uma
porção de coisas em comum?
Vez
por outra hei de lhe desagradar, haveremos de divergir; ninguém é perfeito
neste mundo e não sou eu que vá encobrir meus senões. Tenho as minhas opiniões
obstinadas — você tem pelo menos cem mil opiniões diferentes — há, pois, muito
pé para discordância.
Mas
quando isso suceder, seja franco, conte tudo quanto lhe pesa. Ponha o amor
próprio de lado, que lhe prometo também não fazer praça do meu. Lembre-se de
que há um terreno de pacificação, um recurso extremo, a que sempre poderemos
recorrer: fazemos uma trégua no desentendimento, procurando esquecer quem dos
dois tinha ou não tinha razão; damos o braço e saímos andando por este mundo,
olhando tudo que há nele de bonito ou de comovente: os casais de namorados nos
bancos de jardim, o garotinho cacheado que faz bolos na areia da praia, a luz
da rua refletida nas águas da baía, ou simplesmente o brilho solitário da
estrela da manhã.
Depois
disso, não precisaremos sequer de fazer as pazes; nos seus cem mil
variadíssimos corações, como no meu coração único só haverá espaço para amizade
e silêncio.
Há anos sei que é infalível o resultado
da estrela da manhã.
Rachel
de Queiroz, 1ª crônica
para a revista O Cruzeiro, em
01/12/1945
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