Argentina e universal, personagem de
Quino segue jovem aos 50: sua ironia permanece viva, numa sociedade cada vez
mais desigual.
Difícil encontrar alguém
que não conheça uma baixinha argentina chamada Mafalda. Seja
como souvenir, estampando camisas e cartazes do movimento estudantil, ou
através dos já clássicos livros-coletânea, a quase “cinquentona” menina insiste
em se fazer presente. Apesar da curta trajetória (1964 a 1973), trata-se da
personagem de histórias em quadrinhos (hq’s) mais popular da Argentina e uma
das mais conhecidas no mundo.
Ao
contrário do que muitos pensam, Mafalda não
foi contemporânea da ditadura do triunvirato Videla, Massera e Agosti,
conhecida como Proceso
de Reorganización Nacional(1976-1983) – um dos seis golpes civil-militares
pelos quais aquele país passou no século XX, com um saldo de cerca de trinta
mil mortos/desaparecidos. A personagem de Quino“nasceu” na conturbada década de
1960, durante o governo de Arturo Umberto Illia(1963-1966),
derrubado por outro golpe – a chamada Revolução Argentina,que
colocou no poder os generais Onganía, Levingston e Lanusse. Mais
exatamente, o “nascimento” deMafalda se dá no mesmo ano em que no Brasil é
deflagrado o Golpe que duraria vinte e um anos.
Em
seu curto período de vida, Mafalda e sua turma (ela só “existe” a partir das
relações que constrói com a família e com os amigos Manolito,
Miguelito, Susanita, Felipe, Libertad ) “assistiram” a inúmeros
acontecimentos significativos – a caça aos comunistas pós-Revolução Cubana; as
ditaduras civil-militares na América do Sul, também com forte ingerência
estadunidense; o assassinato de líderes como Martin Luther King (em 1968) e
Malcom X (em 1965), bem como o de Che Guevara (1967), na Bolívia, com participação
da CIA; o Maio de 1968 na França, sob o lema “a imaginação no poder”, que
incendiou a juventude; o Festival de Woodstock (1969), com seu pacifismo à moda flower
power ;
a Primavera de Praga, que tentou construir uma democracia socialista na Tchecoslováquia
de Dubcek; a derrota estadunidense no Vietnã, à custa de milhares de vidas dos
dois lados; a eleição de Salvador Allende no Chile (1970), a chegada do homem
(estadunidense) à Lua (em 1969), no contexto da corrida espacial com a URSS; o
fim dos Beatles (fato que sem dúvida afetou profundamente Mafalda…) e o
tricampeonato da seleção brasileira de futebol no México (o que também não deve
ter agradado os conterrâneos da “baixinha”), ambos em 1970.
Mafalda na
aula de História
Até
há pouco tempo, as histórias em quadrinhos “entravam” na escola pela “porta dos
fundos” e, na universidade, após um pedido de desculpas. Eram considerados uma
subarte, uma subliteratura, representando uma linguagem “menor” e assumindo um
caráter apenas de brincadeira. Felizmente, muita coisa mudou nestes últimos
trinta anos no que diz respeito ao olhar acadêmico sobre as hq’s.
A
criticidade na aula de História é requisito fundamental, bem como a associação
entre processos históricos e a identificação de rupturas e permanências ao
longo do tempo.Mafalda faz isso a todo instante: analisa
criticamente a realidade, sem buscar uma pretensa neutralidade. (Esse é outro
requisito importante nos debates realizados numa aula de História: tomar
partido.) Ela não aceita o mundo que “recebeu” e o questiona constantemente.
Ora tem atitudes de uma criança “típica” (que tem medo, depende dos pais, é
ingênua…), ora age como uma criança excepcional (não no sentido de superdotada)
e constrói belas metáforas, “saindo” da dimensão do concreto que caracteriza a
criança em seus anos iniciais. Lúcida, crítica, consegue discutir a Guerra do
Vietnã, por exemplo, e muitas vezes colocar os adultos em situações
embaraçosas.
Em
minha dissertação, defendida em 2011 no Programa de Pós-Graduação em Educação
da UERJ, intitulada “Mafalda na aula de História: a crítica aos elementos
característicos da sociedade burguesa e a construção coletiva de sentidos
contra-hegemônicos”, analiseiMafalda buscando investigar como é
possível, a partir da baixinha argentina, “tocar” em elementos basilares do
tipo de sociedade da qual fazemos parte, grosso modo, há mais de duzentos anos:
o individualismo, a democracia burguesa, o estímulo ao consumo, a valorização
do lucro, a propriedade privada, o progresso, o livre-comércio, a naturalização
das diferenças, a desumanização e a competição.
Como
professor da Educação Básica (Ensinos Fundamental e Médio) e do Ensino
Superior, a experiência com hq’s tem sido muito rica. Como um apaixonado por Mafalda,
gosto de usá-la em provas, debates, trabalhos, tentando “extrair” ao máximo sua
criticidade, suas indagações diante de um mundo confuso e “ao contrário”. O
curioso é que Mafalda
– uma
personagem criança que não foi produzida pensando no público infantil – dialoga
com diferentes faixas etárias. A partir dela é possível, por exemplo, tanto
debater a democracia grega com o sexto ano como problematizar o conceito de
alienação, a partir da mídia e do consumo, com uma turma de graduação em
Pedagogia.
As hq’s são recursos
poderosos, ferramentas importantes na relação de ensinar-aprender. E Mafalda
é um
exemplo paradigmático, dada a atualidade da crítica e o alcance da narrativa
tecida pelo artista argentino. Todavia, é fundamental lembrar que as hq’s
sozinhas não tornam uma aula mais ou menos atraente, tampouco transmitem um
conteúdo em toda a sua integridade.
A genialidade de Quino
Quino
é um dos artistas mais completos que surgiram em nuestra
America. Embora Mafalda não
tenha sido editada na forma de gibi (como a Turma da Mônica, por
exemplo), seja datada (trata da Guerra Fria, das ditaduras na América Latina,
etc.) e tenha durado apenas sete anos, a personagem fez e continua a fazer
sucesso, tendo sido traduzida em países como Japão, Noruega, Austrália –
sociedades muito distintas das existentes em nosso continente.
O
enorme alcance da obra de Quino (cuja genialidade vai muito além de Mafalda )
deve-se ao fato de que o artista argentino abordou questões “permanentes”, como
a da liberdade ou da soberania de um povo, por exemplo. Esta talvez seja a
marca fundamental de um gênio – seja Beethoven, Dostoiévski ou… Quino.
Ao responder pergunta sobre se é possível
modificar algo através do humor, Quino certa vez afirmou: “Não. Acho que não.
Mas ajuda. É aquele pequeno grão de areia com o qual contribuímos para que as
coisas mudem”. Não tenho dúvidas de que Mafalda e
sua turma representam importantes “grãos de areia” na construção de outras
leituras/interpretações de nossa realidade, e logo, no limite, na construção de
um outro mundo possível e necessário.
Carlos Eduardo Rebuá Oliveira,
in www.outraspalavras.net