“Pretender
que a nossa personalidade seja móvel e susceptível de grandes mudanças é, por
vezes, noção um pouco contrária às ideias tradicionais atinentes à estabilidade
do ‘eu’. A sua unidade foi durante muito tempo um dogma indiscutível. Fatos
numerosos vieram provar quanto esta ideia era fictícia.
O
nosso ‘eu’ é um total. Compõe-se da adição de inumeráveis ‘eu’ celulares. Cada
célula concorre para a unidade de um exército. A homogeneidade dos milhares de
indivíduos que o compõem resulta somente de uma comunidade de ação que
numerosas coisas podem destruir. É inútil objetar que a personalidade dos seres parece, em geral, bastante
estável. Se ela nunca varia, com efeito, é porque o meio social permanece mais
ou menos constante. Se subitamente esse meio se modifica, como em tempo de
revolução, a personalidade de um mesmo indivíduo poderá transformar-se por
completo. Foi assim que se viram, durante o Terror, bons burgueses reputados
pela sua brandura tornarem-se fanáticos sanguinários. Passada a tormenta e, por
conseguinte, representando o antigo meio e o seu império, eles readquiriram sua
personalidade pacifica. Desenvolvi, há muito tempo, essa teoria e mostrei que a
vida dos personagens da Revolução era incompreensível sem ela.
De
que elementos se compõe o ‘eu’, cuja síntese constitui a nossa personalidade? A
psicologia é muda nesse particular. Sem pretender precisar muito, diremos que
os elementos do ‘eu’ resultam de um resíduo de personalidades ancestrais, isto
é, criadas pela série completa das nossas existências anteriores. O ‘eu’,
repito, não é uma unidade, mas o total dos milhões de vidas celulares das quais
o organismo está formado. Elas podem provocar numerosas combinações.
Excitações emocionais violentas, certos
estados patológicos observáveis nos médiuns, nos extáticos, nos indivíduos
hipnotizados, etc., fazem variar essas combinações e, por conseguinte,
determinam, pelo menos momentaneamente, no mesmo ente, uma personalidade
diversa, inferior ou superior à superioridade ordinária. Todos possuímos possibilidades
de ação que ultrapassam a nossa capacidade habitual e que certas circunstâncias
virão despertar.
Gustave
Le Bon, in As Opiniões e as Crenças
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