Os Fatos
Todos os domingos, pela manhã, enquanto os outros homens se reuniam no
bar da esquina, ou iam para a várzea, ele ficava no quintal, remexendo a terra.
O quintal media 4 metros quadrados, o máximo que a administração do com junto
residencial fornecia. Ali, ele tinha alface, beterraba e couve.
Naquela manhã, ao passar o rastelo sentiu alguma
coisa prendendo os dentes da ferramenta. Forçou, era resistente. Abaixou-se e
notou fios prateados que saíam da terra. Era arame, novo. Quando tinha revirado
a terra para adubar, tinha cavado fundo sem encontrar nada. Além disso, arame
velho estaria enferrujado. Tentou puxar o fio, estava bem preso. Buscou um
alicate, conseguiu pouca coisa. Cavou. O arame penetrava na terra alguns
metros. Cavou mais. Como é que tinham feito uma coisa dessas, da noite para o
dia? Preocupado com a horta, parou a pesquisa. Regou um pouco as sementes,
pensando se o arame não ia prejudicar a germinação.
No dia seguinte, levantou-se bem cedo, para
observar. O arame tinha crescido. Nos três canteiros, havia brotos de dez
centímetros de altura. Um araminho espigado, vivo, forte. Teria sido um pacote
errado de sementes? Não, era loucura. Semente de arame?
À noite, o arame parecia estacionado. Também no dia
seguinte. As semanas se passaram, as sementes de verdura não germinaram. Só o
arame cresceu, espalhou. Havia brotos pelo quintal inteiro. A mulher reclamava,
não podia estender roupas no varal, os arames espetavam.
Numa casa de semente, ele pediu um técnico. Demorou
meses. Quando o técnico apareceu, o arame estava alto. Os arbustos se enrolavam
uns nos outros. O técnico nunca tinha visto nada igual. Aconselhou que o homem
plantasse varetas, junto a cada pé. Senão, a colheita ia ser difícil. “Mas quem
é que quer colher arame?”, disse o homem. “Eu quero acabar com ele.” “Para isso
não temos veneno”, garantiu o técnico. “Podemos matar saúvas, broca, pulgão,
mil tipos de larvas, mas arame, não”, disse ele, anotando numa caderneta preta.
“Arame, não. O senhor vai ter que escolher. E eu gostaria de saber como foi a
safra.”
O arame se enrolou nas varetas e no fim de dois
meses o homem pôde colher rolos e rolos de um tipo especial, de aço inoxidável.
“Vai ter boa saída no mercado”, disseram os amigos.
Ele amontoou a safra num canto da sala. A mulher,
reclamando. Principalmente quando ele não conseguiu vender nada, apesar de ter
corrido todas as casas. Um mês depois, o arame crescia outra vez, no quintal.
Veio outra safra. Amontoada na sala. A mulher
ameaçava: “Jogo tudo isso fora”. Não jogou. As safras se amontoavam. O arame
era fértil, produzia mensalmente. A casa se encheu.
Na casa pequena, 50 metros quadrados, o máximo
permitido, não havia lugar para estoque. O homem passou a distribuir pelo
bairro, à tarde, quando largava o serviço. Estendeu a distribuição a toda
cidade, de porta em porta. Ofereceu, pelos jornais. Fazendeiros mandavam
buscar. Centenas de caminhões congestionavam a rua. O bairro não suportava.
Fazia abaixo-assinados.
As prefeituras aceitaram, para cercar os
municípios. O governo do estado também. E o governo federal consumiu a safra de
meses. Até que chegou o dia em que o país estava cercado.
Cercas de dezoito fios, impenetráveis. As casas
vendedoras de arame reclamaram. Abriram processos. Em seguida vieram os fiscais
da prefeitura. Com notas e notificações.
E os impostos, disto e daquilo. O Ministério da
Fazenda falando em saturação do mercado de exportação. Baixa no preço mundial.
No quintal, o arame crescia, se enrolava. Os lixeiros se recusavam a levar os
rolos, não havia onde colocar.
A prefeitura proibiu a fabricação. Ele disse que
não podia, que o arame crescia sozinho. Os fiscais riram, nem quiseram ver.
“Nada cresce sozinho”. Começaram a aplicar multas, e multas.
Multas por fabricação ilegal, por falta de
registros, por venda sem nota. As casas do ramo (as boas) ganharam nos
tribunais. Ele fazia concorrência desleal. Devia pagar indenizações.
Notificações para cessar a produção. O preço do arame caiu a zero no mercado. O
homem saía à noite, sozinho, para jogar arame pelos terrenos baldios, nos
bairros mais distantes. A mulher nem queria saber. Queria o quintal, de volta.
O homem parou de colher o arame. Ele cresceu, se
enroscou todo. Caiu para o lado do vizinho. Cresceu por todo lado, pegando nos
muros e paredes das outras casas.
Os vizinhos reclamaram. O arame estragava as
paredes. Era preciso intervenção da polícia. Ele cortou o arame. Chamou
benzedeiras. Duas semanas depois, o arame crescia viçoso.
Crescia por baixo da casa. Subia como trepadeira.
Aparecia na calçada. Rachava o asfalto. Certa manhã, ao sair para o quintal, o
homem compreendeu. Com um cabo de vassoura forçou a passagem.
Foi penetrando através dos fios de arame. Eles
cediam facilmente, eram novos ainda. E o homem se deixou envolver pela floresta
de fios. Andando. Cada vez mais para o meio. Até um ponto em que era impossível
voltar.
Estava perdido, e contente. Ali não o encontrariam.
Os outros teriam medo de penetrar naquela floresta, onde à tarde o calor era
sufocante, mas a noite era fresca e agradável. Também não morreria de fome.
Logo no primeiro dia, descobriu pequenos insetos
prateados, de aspecto não repulsivo. Verificou também que os brotos novos de
arame eram macios e delgados. Descobriu que no centro daquela floresta havia um
tipo de arame grosso. E que ao pé deles havia bulbos de água. Percebeu que
durante o dia o sol penetrando pela densa vegetação de fios inoxidáveis
produzia reflexos, desenhos. O vento, agitando os arames, roçando uns nos
outros, produzia sons.
Sons e formas
que distrairiam Danilo na longa viagem que começava.
Ignácio de Loyola Brandão, in Contos Brasileiros Contemporâneos