Com vinte e quatro anos medroso e
um diploma de médico, tinha começado a minha vida em Monsanto. Ali, a
província bravia despede-se da campina, ergue-se nos degraus das fragas para
olhar com altivez as serras de Espanha, enquanto o friso de planaltos que corre
as linhas da fronteira espreita as surtidas do contrabando e a fuga dos rios.
Aquele povo soturno, endurecido a
subir e descer abismos, frutificando uma terra alheia, pressentiu o perigo da
minha inexperiência. Os camponeses vinham ao consultório fechados em meias
palavras, avaliando os meus dotes de mágico, e nas suas faces obstinadas havia
apenas desconfiança e desafio. Algumas vezes a morte estava ali entre mim e
eles, troçando da minha humildade apavorada e nem assim me davam um estímulo:
duros, invioláveis, lá lhes parecia que um bom médico não precisa de arrimos.
Muitos anos atrás outro colega tinha sofrido o mesmo ambiente em despique com
bruxas, leiloado na praça pública a votos e a murros e apesar de tudo vencera.
Essa gente granítica, com ossos a esticarem uma pele morena, esperava de mim
como esperara e exigira do antigo médico, antes de o aceitar, a prova
indiscutível que decidisse da minha reputação: um parto por exemplo com o seu
assombroso mistério, as suas horas de mortificada expectativa. O parto sempre
representou aos olhos do povo uma hora solene: nele se apostam duas vidas e
também as qualidades de arrojo, calma e saber de um profissional. O curandeiro
pode ser insultado na sua banca de Fígaro ou no instante aflito de uma sangria
de urgência, mas a comadre, a velha suja talhada em pedra enrugada, sem
sorrisos nem lágrimas, que espreita a nossa entrada no mundo, tem fama e pão
certos até ao fim dos tempos.
Deu-se por essa altura, na aldeia,
um casamento pomposo e, como tal, estava indicada a presença ornamental do
médico. Lá fui eu, sob a vaga promessa de ser acompanhado pelo amigo boticário,
homem de vagas de génio que ajudavam a espertar os dias ensonados daquele
desterro. Calhou-lhe vir também à boda o colega que me precedera no partido
médico. Entretanto, a uma légua de estafa, para lá dos barrocais retalhados nas
gargantas dos penedos, uma camponesa gemis, havia quatro dias, as dores de
parto: e desde que a comadre confessara a inutilidade dos seus préstimos,
justificando-se com a criança atravessada no ventre, nada restava fazer, salvo
a ciência do doutor. A família veio por aí acima, entregue ao passo conformado
daqueles heróicos jericos de Monsanto, que galgam e se firmam nos pavorosos
declives dos caminhos. Trazia consigo um problema de parto e de cortesia: dois
médicos estavam nessa tarde na aldeia, lado a lado, à mesa de uma festança. Um
tinha cumprido em dois anos de partos, dores, aflições: o outro era um imberbe
João Semana, que nada garantia. Mas sendo eu médico avençado – eis a cortesia
em jogo – o posto pertencia-me, devia ser procurado para o trabalho e para o
pago. E a família acabou por correr o risco: seria eu o escolhido. Para mim o
transporte do burro, o sobressalto, a apreensão pelo que poderia acontecer. O
meu nervosismo ainda foi avivado por uma rude prova de fraqueza dos campónios:
sucedeu que, mal eu chegara junto da esmorecida parturiente, me confessaram,
com ressaibos de deferência, as dúvidas que haviam tido na minha escolha!
E ali fiquei, humilde,
embrutecido, perante a comadre escura que me vigiava. Os olhos dela, vorazes,
eram mais temíveis do que esse ventre desgastado de esforços vãos, do que a
bacia estreita que se opunha à vida. Esperei minutos, horas, para me dispor
àquilo que desde logo me pareceu indicado: uma intervenção com os medonhos
ferros que são o pesadelo das parturientes e das famílias aldeãs. Até que a
comadre, não suportando já as minhas hesitações, levou à frente das palavras um
dedo sujo, antes que eu pudesse simular uma reacção, e enfiou-o nesse abismo
insondável. E disse, sem meias-tintas:
– Se quer fazer alguma coisa, senhor
Doutor, saiba que a criança está nas nalgas. Está presa no osso da robadilha.
Aquela frase ficou inteira nas
minhas recordações, ainda hoje me assusta os ouvidos.
Num mutismo que não dava
esperanças a ninguém, pensava que caminho devia escolher: expulsar dali a
comadre, desempenhando de vez o meu papel, procurando aliviar-me de todos os
pesos e dúvidas estranhas que enredavam as minhas decisões de médico, ou
esperar que algum imprevisto viesse robustecer-me a ridícula posição.
Dentro do quarto, sufocando a
mulher, além de mim e da comadre, completavam o ambiente as vizinhas e
conhecidas, lobregamente vestidas de negro, umas abanando com o lenço o suor
frio da parturiente, outras enxotando as moscas, em gestos moles e ritmados,
outras, ainda, hirtas de expectativa, e todas agigantando-se como juízes
proféticos.
Os homens, o pai e o marido,
esperavam cá fora, sentados numa laje que ocupava quase todo o pátio, onde se
abria um canal para esgoto das urinas escapadas das furdas. Vim junto deles
desafogar os pulmões no ar fresco e livre. O pai da parturiente, um homem
resignado, esperou-me com uns olhos em que havia prece. Sentámo-nos os três,
derreados, por uns minutos. Então, pedi ao marido que fosse à vila buscar-me
ferros. O velho levou as mãos à cabeça e escondeu os olhos. Eu devia
encorajá-lo, dar-lhe um sinal daquele apoio de que eu próprio precisava: era
ele a única pessoa em quem verdadeiramente sentia uma dor sem censuras. Mas não
confiei nas minhas palavras e voltei para dentro de casa.
O útero da mulher revigorara-se
com os estimulantes, contorcia-se no esforço de se libertar. A tarde estava
quase no fim, uma tarde espessa, afrontada, que de súbito se vinha agachar
sobre as árvores e sobre as casas. A comadre, ao ver-me em jeitos de nova
observação, tornou com os seus conselhos:
– É nas nalgas, senhor Doutor.
Quando voltei ao pátio, o velho
espremia as mãos e falou-me como se tivesse as maxilas retesadas.
– É a minha única filha. Salve-as,
senhor Doutor. Somos pobres, não temos dinheiro, nunca o tivemos, mas eu vou
trabalhar até ao fim da minha vida para lhe pagar. Mas salve-a!
Dei-lhe um cigarro e disse com
simplicidade:
– Isto está a demorar. Mas vai.
Espere que o seu genro me traga os ferros.
– Vai raspá-la?
– Que ideia! É uma ajuda. Custa um
bocadinho, mas fica logo aliviada.
O homem chegou, por fim,
desfigurado de suor. Enquanto ferviam os ferros, uma das assistentes
recomendou-lhe afectuosamente:
– Vai comer alguma coisa. Ainda
estás em jejum.
– Não tenho fome.
– Mas precisas.
Deu-lhe um pão de vários quilos de
peso. Rijo e embolorado. O homem raspou meticulosamente o bolor, abriu o pão ao
meio, tornou a esfarelar os ninhos verdes e comeu, com vagares. A mulher
deu-lhe ainda azeitonas, carregadas de sal. Depois ele despejou nas goelas uma
bilha de água.
Eu já sabia que aquele povo
subalimentado iludia o estômago com litradas de água e pilhas de verdura, às
vezes ervas do campo, numa sede provocada pelo sal dos alimentos. E assim,
entulhando-o, calava aquela ânsia de plenitude.
Quando os ferros foram dispostos
para a intervenção, um rumor correu a assistência. As mulheres deram passos
inquietos e inúteis pela sala, balbuciaram rezas, lacrimejaram, a parturiente
gemeu desconsolada, a comadre empertigou-se de gravidade. A mão da rapariga
ainda tentou deter-me: varava a minha face imberbe, agora resoluta, procurando
dentro de mim uma decisiva garantia.
– Será mesmo preciso, senhor
Doutor? Não poderíamos esperar?
– Não, já esperámos muito tempo,
minha senhora.
De memória, eu ia revendo
precipitadamente as ilustrações dos tratados, as técnicas, enquanto vaselinava
as colheres. Receava ter errado a posição da criança, temia amachucar o ser que
viria para a vida pelas minhas mãos, obcecava-me o acaso de hemorragias,
colapsos, traumatismos, e via diante de mim um recém-nascido ferido e
deformado. Duas vidas estavam à mercê daqueles minutos próximos. Deles
dependiam ainda o meu próprio futuro e o pesar ou o júbilo daqueles que me
rodeavam. A par dos tratados, também mentalmente estava ali comigo o velho, na
sua imagem de dor humilde e silenciosa. Teria preferido vê-lo a meu lado, de
angústias solidárias, nós ambos e a sua filha, depois de enxotados os corvos.
Gemidos, silêncio, o morno das
respirações, uma luz vacilante e fúnebre de azeite, e depois de muitos esforços
dos meus pulsos e dos meus nervos, de sentir que os ferros desentranhavam não
só a criança mas também todo aquele ventre dorido, a cabeça do recém-nascido
rompeu para o mundo. Gritei uma ordens, com uma voz já imperante, protegido por
aquilo que, após a timidez e a dúvida, sentia como um triunfo. A criança chegou
às minhas mãos, mãos heroicamente ensanguentadas, sem uma beliscadura. Tirei-a
depois com ostentação dos dedos engelhados da comadre, lavei-a com carinho,
feliz, alvoroçado. Amava-a como se me pertencesse.
Eu, agora, dominava o ambiente.
Dominava os corvos e, entre eles, o mais sinistro: a comadre. Ela, então,
ergueu as mãos, em transe:
– Milagre! Vi nascer centenas de
meninos, vi horas boas e más, mas um trabalho destes… A criança está aí sem um
arranhão. Onde eu chegar, senhor Doutor…
E ficámos amigos.
Cá fora esperava-me uma noite
afogueada de Outono. O velho tinha aparelhado o jerico e engolia saliva a todo
o momento, ondulando o pescoço, mudo de emoção. De chapéu erguido, os olhos
brilhantes, esperava que eu partisse. Entesado numa posição de sentido,
quedou-se de chapéu em jeito de bandeira, até que desapareci na dobra da rua. E
só depois conseguiu rouquejar:
– Obrigado, senhor Doutor! Obrigado. Viva!, para sempre!
Fernando Namora, in Tinha Chovido na Véspera