Há versos célebres que se transmitem através das
idades do homem, como roteiros, bandeiras, cartas de marear, sinais de
trânsito, bússolas – ou segredos. Este, que veio ao mundo muito depois de mim,
pelas mãos de Carlos Drumonnd de Andrade, acompanha-me desde que nasci, por um
desses misteriosos acasos que fazem do que viveu já, do que vive e do que ainda
não vive, um mesmo nó apertado e vertiginoso do tempo sem medida. Considero
privilégio meu dispor deste verso, porque me chamo José e muitas vezes na vida
me tenho interrogado: “E agora, José?” Foram aquelas horas em que o mundo
escureceu, em que o desânimo se fez muralha, fosso de víboras, em que as mãos
ficaram vazias e atônitas. “E agora, José?” Grande, porém, é o poder da poesia
para que aconteça, como juro que acontece, que esta pergunta simples aja como
um tónico, um golpe de espora, e não seja, como poderia ser, tentação, o começo
de interminável ladainha que é piedade por nós próprios.
Em todo caso, há situações de tal modo absurdas(ou
que pareceriam vinte e quatro horas antes), que não se pode censurar a ninguém
um instante de desconforto total, um segundo em que tudo dentro de nós pede
socorro, ainda que saibamos que logo a seguir a mola pisada, violentada, se vai
distender vibrante e verticalmente afirmar. Nesse momento veloz tocara-se o
fundo do poço.
Mas outros Josés andam pelo mundo, não o esqueçamos
nunca. A eles também sucedem casos, desencontros, acidentes, agressões, de que
saem às vezes vencedores, às vezes vencidos. Alguns não têm nada nem ninguém
a seu favor, e esses são, afinal, os que tornam insignificantes e fúteis as
nossas penas. A esses, que chegaram ao limite das forças, acuados a um canto
pela matilha, sem coragem para o último ainda que mortal arranco, é que a
pergunta de Carlos Drumonnd de Andrade deve ser feita, como um derradeiro apelo
ao orgulho de ser homem. “E agora, José?”
Precisamente um desses casos me mostra que já falei
demasiado de mim. Um outro José está diante da mesa onde escrevo. Não tem
rosto, é um vulto apenas, uma superfície que trem como uma dor contínua. Sei
que se chama José Júnior, mas mais riquezas de apelido e genealogias, e vive em
São Jorge da Beira. É novo, embriaga-se, e tratam-no como se fosse uma espécie
de bobo. Divertem-se à sua custa alguns adultos, e as crianças fazem-lhe
assuadas, talvez o apedrejem de longe. E se isto não fizeram, empurraram-no com
aquela súbita crueldade das crianças, ao mesmo tempo feroz e cobarde, e o José
Júnior, perdido de bêbado, caiu e partiu uma perna, ou talvez não, e foi para o
hospital. Mísero corpo, alma pobre, orgulho ausente - “E agora, José?”
Afasto para o lado meus próprios pesares e raivas
diante deste quadro desolado de uma degradação, do gozo infinito que é para os
homens esmagarem outros homens, afogá-los deliberadamente, avilta-los, fazer
deles objecto de troça, de irrisão, de chacota - matando sem matar, sob a asa
da lei ou perante sua indiferença. Tudo isto porque o pobre José Júnior é um
José Júnior pobre. Tivesse ele bens avultados na terra, conta forte no banco,
automóvel a porta - e todos os vícios lhe seriam perdoados. Mas assim, pobre,
fraco e bêbedo, que grande fortuna para São Jorge da Beira. Nem todas as terras
de Portugal se podem gabar de dispor de um alvo humano para darem livre
expansão a ferocidades ocultas.
Escrevo estas palavras a muitos quilômetros de
distância, não sei quem é José Júnior, e teria dificuldade em encontrar no mapa
São Jorge da Beira. Mas estes nomes apenas designam casos particulares de um
fenômeno geral: o desprezo pelo próximo, quando não o ódio, tão constantes ali
como aqui mesmo, em toda parte, uma espécie de loucura epidêmica que prefere as
vítimas fáceis. Escrevo estas palavras num fim de tarde cor de madrugada com
espumas no céu, tendo diante dos olhos uma nesga do Tejo, onde há barcos vagarosos
que vão de margem a margem levando pessoas e recados. E tudo isto parece
pacífico e harmonioso como os dois pombos que pousam na varanda e sussurram
confidencialmente. Ah, esta vida preciosa que vai fugindo, tarde mansa que não
será igual amanhã, que não serás, sobretudo o que agora és.
Entretanto, José Júnior está no hospital, ou saiu
já e arrasta a perna coxa pelas ruas frias de São Jorge da Beira. Há uma
taberna, o vinho ardente e exterminador, o esquecimento de tudo no fundo da
garrafa, como um diamante, a embriaguez vitoriosa enquanto dura. A vida vai
voltar ao princípio. Será possível que a vida volte ao princípio? Será possível
que os homens matem José Júnior? Será possível?
Cheguei ao fim
da crônica, fiz o meu dever. E agora, José?
José Saramago, in A Bagagem do Viajante
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