Washington, 25 setembro 1954, sábado.
Fernando,
estou com a impressão meio
inventada de que você ficou zangado quando eu disse pelo telefone que
não queria que você fosse ao aeroporto. Você ficou de telefonar à 1:30, e não
telefonou. Fiquei amolada com a minha falta de cortesia, respondendo à sua
gentileza com uma sinceridade ou franqueza que ninguém usa. Você gentilmente
mostrou intenção declarada ou vaga de ir ao aeroporto, e eu, que tanto faço
questão de não usar a alma na vida diária, pois é até de mau gosto, disse que
não. Eu já lhe expliquei o motivo da minha rudeza -o que não a justifica- e
explicarei de novo.
Para mim, sair do Brasil é uma coisa
séria e, por mais ‘fina’ que eu queira ser, na hora de ir embora choro mesmo. E
não gosto que me vejam assim, embora se trate de lágrima bem-comportada, de
lágrima de artista de segundo plano, sem permissão do diretor para arrumar os
cabelos… Não é por vaidade de rosto que não gosto que me vejam de olhos
vermelhos, é por uma vaidade que, por ser menos frívola, é muito mais pecado: é
por orgulho ou altivez ou seja lá o que for -enfim, vaidade mais grave.
Depois, também, eu me encabulo de estar
sempre chegando e indo embora, o que obriga os amigos a um movimento em torno
de mim, um movimento que às vezes nem cabe direito na vida deles. Então procuro
dispensar a gentileza dos amigos, e facilitar a vida diária de cada um que já é
bastante cheia e complicada sem uma ida ao aeroporto. Maury diz que eu costumo
ter reações pessoais a coisas chamadas ‘de praxe’. Parece que é mesmo verdade.
Parece que eu seria capaz de pedir sinceramente a alguém que não apanhasse
minha luva caída no chão para não amolar esse alguém, sem entender que incômodo
é não apanhá-la, que incômodo é não fazer o que é ‘de praxe’. (O exemplo da
luva é só para exagerar, até que deixo apanharem minhas luvas, senão perderia
todas…)
Quanta explicação! E provavelmente você
nem ficou zangado com minha descortesia, provavelmente você não telefonou
depois porque estava ocupado. É o que espero que tenha acontecido. Esperando
também que você não ria das tolas e inúteis complicações de sua amiga.
Clarice
Rio, 19 de outubro de 54.
Clarice,
Suas ‘complicações’ não são tolas, mas
inúteis. É verdade que você não precisa absolutamente se preocupar, não fui ao
aeroporto porque você não queria e então acabou-se, e não telefonei porque na
hora deve ter acontecido alguma coisa de que já não me lembro, e depois você já
não estava. Mas valeu o desencontro porque forçou uma carta tão boa que parecia
uma carta de Mário de Andrade e isso é elogio. Respondo agora me forçando um
pouco (são 2 horas da manhã, me prometi não passar de hoje) pois quero ver se
venço essa minha inércia mental com relação a cartas. Tanto mais que sinto
necessidade real de escrever a você e vou deixando passar, talvez porque
inconscientemente julgue que nada de importante tenho a lhe dizer, você sempre
mereceria mais do que atualmente sou capaz de dizer numa carta. E sei como são
importantes as notícias para quem está no estrangeiro.
Infelizmente não tenho nenhuma a dar,
senão que tudo vai indo na mesma e se as coisas mudam é porque nada precisamos
fazer para que mudem. Nada tenho feito e no entanto várias coisas mudaram. Não
me mudei; continuando morando no mesmo lugar, para onde você tem a partir deste
momento a obrigação moral de escrever. Preciso do seu estímulo – o de alguém
que, não vendo as coisas de perto, tem mais perspectiva. E prometo responder,
farto de notícias. Creia-me, esta carta já é uma vitória para quem não sabe
mais o que dizer. Só é sincero aquilo que não se diz – e nem isso é meu, li em
alguma parte. Como você vê, isso para um escritor é estar no mato sem cachorro.
Abrace por mim ao Maury e acredite sempre na amizade do seu
Fernando
Clarice Lispector e
Fernando Sabino. Cartas
perto do coração. Dois jovens escritores unidos ante o mistério da
criação.