terça-feira, 30 de setembro de 2025

Djavan | Oceano (inspired by Toots Thielemans version)

Poema de jacaré

Eu me ajoelhei
na beira da água,
e se os pássaros brancos parados
nos topos das árvores assobiaram algum aviso
eu não entendi,
bebi até o momento exato em que ele veio
desembestado até mim,
sua cauda se debatendo
como um feixe de espadas,
golpeando a grama,
e o lado de dentro da sua boca como berço
escancarado,
e com uma orla de dentes —
e foi assim que eu quase morri
de bobeira
na beleza da Flórida.
Mas não morri.
Eu saltei para o lado, e caí,
e ele passou por mim em jorro, esmagando tudo no seu caminho
ao descer chispando até a água
e se jogar para dentro,
e, no final,
este não é um poema sobre bobeiras
mas sobre como eu me levantei do chão
e vi o mundo como se fosse a segunda vez,
do jeito que ele é de verdade.
A água, aquele círculo de vidro estilhaçado,
se curou com um murmúrio lento
e se deitou
com a luz de fundo de aço polido,
e os pássaros, nas cachoeiras sem fim das árvores,
abriram às sacudidas as pregas nevadas das suas asas, e saíram pairando,
enquanto, como recordação, e para me firmar,
eu estendi a mão,
eu colhi as flores silvestres da grama ao meu redor—
jasmins-estrela
e trombetas escarlates
em longos caules verdes —
por horas nas minhas mãos trêmulas elas reluziram
como fogo.

Mary Oliver, publicado na revista The Paris Review em 1991, no número 120 (tradução de Yuri Amaury)

Das minúcias ao engrandecimento


Creio mesmo que não devemos desprezar as minúcias de um relato, se quisermos nos aproximar o mais possível da história em sua quase totalidade. Principalmente se for um caso de amor. E por que digo quase? Porque, por minhas andanças nos caminhos da escuta e do contar, sinto, depois, que pedaços da matéria-prima, do relato original, vão se perdendo pelos caminhos. Se contar o acontecido já é uma traição com o vivido, pois, muitas vezes, se trata de uma reconstrução malfeita das lembranças, recontar o que ouvimos pode ser uma dupla traição. Por isso, recontar é um trabalho perene, infindo. É preciso voltar sempre no afã de buscar os pedaços da história que ficaram perdidos. E foi o que se deu. De repente me veio à lembrança tudo o que Juventina me contou. Vi vazios no relato. Como me esforço para ser fiel ao que me contam, mesmo sabendo da impossibilidade de cumprir tal propósito, tentei rearrumar os fatos que narrei. Perguntei a Tina sobre os pedaços faltantes. Ela afirmou que o descuido havia sido de minha escuta. Juventina suspeitou de minha atenção, do meu cuidado em apreender todos os momentos da história. Calei-me e ela me contou as partes que faltavam. Somente hoje trago, para vocês, as porções ausentes no tecido da história contada anteriormente. Eis, pois, o que consegui captar das passagens de Aurora, de Antonieta, de Dolores e de Dalva, que compõem também a saga amorosa (?) de Fio Jasmim, mas que ficaram ignoradas no primeiro relato. As histórias desvendadas neste segundo relato se vinculam à primeira narração. Repito, não sei se a falha foi de Juventina ao me contar ou se me desatentei em algum momento da escuta. Tento remediar, apresentando agora o que meus sentidos deixaram escapar por ocasião da primeira narrativa de Canção
Lembrem-se de que estamos tratando de uma história de amor, ou, para ser mais exata, de amores, e muitas são as pessoas amantes. Isto é, as que amam ou as que perseguem esse sentimento, na esperança e no desejo de serem amadas. As histórias de Juventina, de Neide, de Pérola Maria, de Angelina e de Eleonora, contadas desde a primeira narração, têm os sentidos ampliados ao serem consideradas em seus cruzamentos com as das outras mulheres reveladas agora. As particularidades da relação de cada uma no conjunto ajudam compor a imagem caleidoscópica de Fio Jasmim e os sentidos e os dessentidos dos fios amorosos ou enganosos das deambulações de Jasmim, na vida das mulheres. Ou, quem sabe, o contrário, entender o sentido das mulheres no movediço terreno da vida sentimental de Fio Jasmim.
Posso afirmar agora que a história está quase completa, quase-quase. Apurei todos os meus sentidos, embora Juventina tivesse me lançado a dúvida acerca de minha competência em apreender os cantos e os recantos dos fatos com as suas personagens. Juventina me imputa a dúvida e a culpa. Ouvi direito? O que estou relatando é o que ouvi? A dúvida e a culpa me colocam em dívida com o que ouvi e com o que relato. Entretanto, insisto que sempre estive inteira no momento da escuta. Contudo, a escrita me deixa em profundo estado de desesperação, pois a letra não agarra tudo o que o corpo diz. Na escrita faltam os gestos, os olhares, a boca entreaberta de onde vazam ruídos e não palavras. No registro da letra também faltam o tremor do choro e o rasgo do riso. A fala suspensa foge da escrita. E mais, a grafia não registra a intensidade de um silêncio intervalar, diante de um renovado estado de estupor, vivido na hora das relembranças. Se contar e recontar são atos marcados por sinais de incompletude, pois difícil é traduzir os intensos sentidos da memória, imaginem escrever. Imaginem perseguir uma escrevivência. Agarrar a vida, a existência, e escrevê-la em seu estado de acontecimentos. Mas persisto nessa intenção. Só falarei do brilho das estrelas, das árvores frondosas que habitam determinada esquina e debulharei as palavras, da sua raiz até as suas derivações, se tudo me vier agarrado à vida. Nem precisa ser só a minha vida, pois me é fundamental a vida das pessoas em meu entorno. Das pessoas, em particular da minha gente, das que estão aqui e agora, das resguardadas tanto pelo passado recente, como das que moram nos fundos dos tempos e que predisseram e predizem o tempo do que vai acontecer. Não descanso, não durmo, não fecho os olhos, não me distraio. Vigio tanto que nem sei se oro. Capto como testemunha ocular ou como ouvinte a dinâmica de vidas que se confundem com a minha, por algum motivo. Fui uma das mulheres de Fio Jasmim; em alguma circunstância, pode ser. Fio Jasmim pode também encarnar a figura de um pai que me escapou como afeto. Não, o moço não me é estranho, como as mulheres que estiveram com ele também não. Eis o motivo de minha preocupação em escutar todas. São muitas, plurais e diversas as vozes que me provocavam a escrevivência.

Conceição Evaristo, em Canção para ninar menino grande

Manet retratando Monet

A família Monet em seu jardim em Argenteuil (1874), de Edouard Manet


Em julho e agosto de 1874, Manet passou férias na casa de sua família em Gennevilliers, do outro lado do Sena em relação a Monet, em Argenteuil. Os dois pintores se encontraram com frequência naquele verão e, em diversas ocasiões, Renoir os acompanhou. Enquanto Manet pintava este quadro de Monet com sua esposa Camille e seu filho Jean, Monet pintou Manet em seu cavalete (local desconhecido). Renoir, que chegou quando Manet começava a trabalhar, pegou emprestado tinta, pincéis e tela, posicionou-se ao lado de Manet e pintou Madame Monet e Seu Filho (Galeria Nacional de Arte, Washington, D.C.). Fonte: https://www.metmuseum.org/art/collection/search/436965

A última crônica

A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: "assim eu quereria o meu último poema". Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.
Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.
Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês.
O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho – um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular. A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim.
São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: "Parabéns pra você, parabéns pra você..." Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura – ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido – vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso.
Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso.

Fernando Sabino, em O Tabuleiro de Damas

Cora


Um dia nós conversávamos. Ela nunca foi muito religiosa, nem mesmo depois daquela reunião ao ar livre, no verão, quando o Irmão Whitfield lutou com seu espírito, levou-a à parte e combateu o orgulho em seu coração mortal, e eu lhe disse muitas vezes: "Deus lhe deu filhos para confortá-la em sua miséria e como penhor de Seu próprio sofrimento e amor, pois no amor você os concebeu e os trouxe à luz."
Eu disse isto porque ela não tinha seu amor por Deus e seus deveres para com Ele em muita conta, e tal comportamento não lhe agrada.
Eu disse: "Ele nos deu o dom de elevar nossas vozes em louvor de sua glória imortal", porque, segundo creio, há mais alegria no céu por um pecador arrependido do que por uma centena de pessoas que nunca pecaram.
E eu disse: Minha vida diária é o reconhecimento e expiação de meu pecado", e frisei: "Quem é você para dizer o que é pecado é o que não é pecado? O Senhor é quem julga; compete-nos apelar à Sua misericórdia e ao Seu santo nome em benefício dos nossos Irmãos mortais", porque só ele pode ver no fundo dos corações, e embora a vida de uma mulher pareça direita aos olhos de todos, ela não tem certeza de não haver pecado em seu coração, a não ser que abra o coração ao Senhor e receba Sua graça."
Eu disse: "O fato de ser fiel ao seu mando não é sinal de que não existe pecado em seu coração, e as durezas de sua vida não significam também que a graça do Senhor a esteja absolvendo."
E ela disse: "Conheço meu próprio pecado. Sei que mereço castigo. Não o lamento."
E eu disse: "É por orgulho que você quer julgar o pecado e a salvação em lugar do Senhor. É nosso fado mortal sofrer e elevar nossas vozes em Seu louvor, pois Ele é que julga o pecado e oferece a salvação mediante provações e atribulações, desde o princípio dos séculos amém. Não, você não pode julgar, sobretudo agora depois que o Irmão Whitfield, um santo homem que respira o hálito de Deus, orou por você e lutou como nenhum outro poderia lutar, a não ser ele", eu disse. Porque não nos compete julgar nossos pecados ou saber o que é pecado aos olhos do Senhor. Ela tem tido uma vida atormentada, mas assim é a vida das mulheres. Mas a gente pensaria, pela maneira como ela falava, que sabia mais acerca de pecado e salvação do que o próprio Deus Nosso Senhor, do que os que trabalham e lutam para tirar o pecado deste mundo dos homens. Quando o único pecado que ela cometeu foi o de ser parcial para com Jewel, que nunca a amou — e por isso foi castigada —, em prejuízo de Darl, que foi tocado pela graça de Deus e julgado esquisito por nós, mortais, e que a queria de verdade.
Eu disse: "Eis o seu pecado. E também o seu castigo. Jewel é o seu castigo. Mas onde está sua salvação? E veja que a vida é muito curta para se conquistar a graça eterna. E Deus é um Deus ciumento. Ele, e não nós, é quem julga e oferece recompensa."
"Eu sei", ela disse. "Eu..."
E então ela parou, e eu disse: "Sabe o quê?"
"Nada", ela disse. "Ele é minha cruz e será minha salvação. Ele me salvará da água e do fogo. Mesmo que eu já esteja dormindo o sono eterno, ele me salvará."
"Como é que você tem a certeza disso, sem ter aberto seu coração a Deus e erguido a voz em Seu louvor?", eu disse.
Então, percebi que ela não se referia a Deus. Percebi que, levada pelo orgulho que havia em seu coração, ela falara de forma sacrílega. E eu me ajoelhei ali mesmo. Pedi-lhe para se ajoelhar também e abrir o coração e expulsar dele o demônio do orgulho e entregar-se à misericórdia do Senhor. Mas ela não quis. Continuou sentada, perdida na sua vaidade e no seu orgulho, que lhe tinham fechado o coração a Deus e posto, em Seu lugar, aquele rapaz mortal, cheio de egoísmo. Rezei por aquela pobre mulher cega como nunca tinha orado por mim e por minha família.

William Faulkner, em Enquanto Agonizo

segunda-feira, 29 de setembro de 2025

Princesa do meu lugar | Daíra

Como tratar o que se tem

Existe um ser que mora dentro de mim como se fosse casa sua, e é. Trata-se de um cavalo preto e lustroso que apesar de inteiramente selvagem – pois nunca morou em ninguém nem jamais lhe puseram rédeas nem sela – apesar de inteiramente selvagem tem por isso mesmo uma doçura primeira de quem não tem medo: come às vezes na minha mão. Seu focinho é úmido e fresco. Eu beijo o seu focinho. Quando eu morrer, o cavalo preto ficará sem casa e vai sofrer muito. A menos que ele escolha outra casa que não tenha medo do que é ao mesmo tempo selvagem e suave. Aviso que ele não tem nome: basta chamá-lo e se acerta com seu nome. Ou não se acerta, mas uma vez chamado com doçura e autoridade ele vai. Se ele fareja e sente que um corpo é livre, ele trota sem ruídos e vai. Aviso também que não se deve temer o seu relinchar: a gente se engana e pensa que é a gente mesmo que está relinchando de prazer ou de cólera.

Clarice Lispector, em Todas as crônicas

Capítulo || / Liquidação do ano velho


Meia hora depois apeava-se Félix de um tílburi à porta de uma casa no Rocio. Subiu lentamente as escadas; a porta do fundo estava aberta; Félix deu uma volta pelo interior da casa, e foi até à sala, sem que o sentisse uma moça, que estava assentada perto da janela, com o rosto voltado para a rua.
Cecília! disse ele. A moça estremeceu e voltou-se.
Ah! és tu. Tão tarde!
Félix aproximou-se, deu-lhe um beijo, e tirou-lhe o livro da mão.
Tarde? disse ele folheando o livro; não pôde ser mais cedo; tive visitas em casa.
A moça contentou-se com a resposta; levantou-se e pondo-lhe os braços à roda do pescoço, perguntou:
Jantas hoje com alguém?
Janto lá em casa.
Lá em casa? repetiu ela; e por que não cá em casa?
Não posso.
Tens visitas?
Não.
Jantas só?
Janto.
Preferes isso à minha companhia? murmurou enfim a moça com voz triste.
Cecília, respondeu Félix dando à voz toda a doçura compatível com a rigidez da sua resolução, há circunstâncias que me obrigam a não jantar cá nem hoje nem nunca.
Cecília empalideceu. Félix procurou tranquilizá-la dizendo que ia explicar-se melhor. Insensível às suas palavras, foi ela sentar-se no sofá e aí permaneceu alguns instantes silenciosa. Félix deu alguns passos na sala, aspirou as flores que tinham sido postas numa jarra, naquele mesmo dia, talvez para recebê-lo melhor; acendeu um charuto, e foi sentar-se em frente de Cecília. A moça fitou nele os olhos úmidos de lágrimas. Depois, como se os lábios tivessem medo de romper uma cratera à chama interior, murmurou estas palavras:
E por que nunca mais?
Cecília, disse o doutor deitando fora o charuto apenas encetado, eu tenho a infelicidade de não compreender a felicidade. Sou um coração defeituoso, um espírito vesgo, uma alma insípida, incapaz de fidelidade, incapaz de constância. O amor para mim é o idílio de um semestre, um curto episódio sem chamas nem lágrimas. Há seis meses que nos amamos; por que perderás tu o dia em que começa o ano novo, se podes também começar uma vida nova?
Cecília não respondeu; fitava nele os olhos, que, se eram ternos e buliçosos nas horas de alegria, eram naquele momento sombrios e profundos. Félix pegou-lhe na mão. Estava fria
Não fiques abatida; o que faço agora não é novidade; ouviste-me dizermuita vez que a nossa afeição era um capítulo curto. Rias então de mim; fazias mal, porque era alimentar uma esperança vã.
Era, interrompeu Cecília com voz trêmula; reconheço agora que era. Esperava, com efeito, que eu pudesse, com a minha constância, resgatar os erros que me pesavam na consciência. Agarrei-me a ti como a uma tábua de salvação; a tábua não compreendeu que salvaria uma vida e deixa-se levar pela onda que a arrebata das minhas mãos. Enganei-me. Não te faço recriminações; espero que me farás justiça…
Faço-te toda a justiça, redarguiu ele; acuso-me eu mesmo de estar abaixo do papel de redentor.
Cecília não prestou atenção ao tom irônico destas palavras, nem sequer as ouviu. Levantou-se, deu alguns passos, encostou-se ao piano e pondo a cabeça entre as mãos soluçou à vontade. Mas essa explosão foi quase silenciosa e durou pouco.
Meia hora depois despedia-se Félix de Cecília, declarando-lhe que saía dali como um gentleman, e que ela receberia os meios necessários para viver até que o esquecesse de todo.
Cecília recusou esse ato de generosidade. Espantou-o imensamente tamanho desinteresse; concluiu que ela teria algum amor em perspectiva.
Saiu.
Na Rua do Ouvidor encontrou o Doutor Meneses, jovem advogado com quem entretinha relações.
Vem jantar comigo, disse.
Não jantas com Cecília?
Acabei o capítulo; Cecília está livre.
Houve choro?
O choro pertence ao cerimonial da separação. Era indispensável. Cecília verteu algumas lágrimas, que eu procurei enxugar, prometendo-lhe os meios de viver algum tempo. Recusou; mas eu não lhe aceito a recusa.
Fizeste mal em separar-te dela; Cecília amava-te.
Meneses, disse Félix, eu nunca faço mal quando quebro uma cadeia: liberto-me.
Talvez tenhas razão…
Mas vem jantar comigo, continuou Félix, dando-lhe o braço.
Não posso, vou jantar com minha mãe.
Ah!
São apenas duas horas; passearei contigo até às três. Ou vais para casa?
Não.
Deram o braço e desceram a rua.
Se não é indiscrição, Félix, disse Meneses ao cabo de alguns minutos, houve algum arrufo sério entre vocês?
Não.
Desconfiavas dela?
Também não.
Nem te arrufaste, nem tinhas desconfiança. Sei que ela gostava de ti, e tu mesmo me afirmaste que não era nenhuma desperdiçada. Havia portanto um milheiro de razões para que vocês prosseguissem neste romance. Dar-se-á que tenhas em vista algum casamento?
Félix riu-se e levantou os ombros.
Então, não compreendo, concluiu Meneses.
Eu te digo, respondeu Félix; os meus amores são todos semestrais; duram mais que as rosas, duram duas estações. Para o meu coração um ano é a eternidade. Não há ternura que vá além de seis meses; ao cabo desse tempo, o amor prepara as malas e deixa o coração como um viajante deixa o hotel; entra depois o aborrecimento — mau hóspede.
Menezes ouviu as palavras de Félix com os olhos postos no chão; sorriu ligeiramente quando ele acabou.
Queres ouvir uma coisa? Perguntou.
Dize.
O teu cinismo parece-me hipocrisia
Não é hipocrisia nem cinismo; é temperamento.
Não creio.
Por quê?
Meneses não respondeu.
Quase me arrependo de ser teu amigo, disse ele depois de algum tempo.
És meu amigo? perguntou Félix com ar de mofa.
Meneses parou e encarou o companheiro.
Duvidas?
Não duvido; mas ignorava isso até agora; sabes que as nossas relações datam de pouco tempo.
Que importa o tempo? Há amigos de oito dias e indiferentes de oito anos.
Há.
A conversa tomou outra direção. Meneses ainda tentou falar da moça, mas Félix não lhe prestou atenção. Às 3 horas separaram-se, Félix para as Laranjeiras, Meneses para o Rocio.
Meneses era uma boa alma, compassiva e generosa. Tinha em flor todas as ilusões da juventude; era entusiasta e sincero; estava totalmente limpo da menor eiva de cálculo. Podia ser que com os anos perdesse algumas das suas qualidades nativas, que nem todos resistem a estes dois terríveis dissolventes: os lances da fortuna e o atrito dos caracteres. Mas naquele tempo ainda não era assim.
A situação de Cecília tinha-o comovido. Resolveu ir ter com ela.
Cecília ficara resignada, mas triste. Quando Meneses entrou na sala estava ela ao piano, tinha apoiada a cabeça em uma das mãos, e corria os dedos pelo teclado. Contou-lhe tudo o que se passara; confessou que não esperava a súbita mudança de Félix; que a sua dor fora imensa, e que daria tudo para fazer reviver o recente passado; mas que não nutria nenhuma esperança de reconciliação.
E se eu tentar fazer alguma coisa?
Tentará em vão, respondeu ela. Além de que, eu não tenho nenhum direito de prolongar uma felicidade incompatível com a vontade dele. Errei, confiando demais; errarei se tiver ainda uma esperança…
Quem sabe, Cecília? disse o moço, pondo-lhe a mão no ombro; é possível que Félix tenha cedido a um capricho. Virá a arrepender-se depois, mas o seu orgulho não lhe deixará dar o primeiro passo. Nesse caso uma pessoa influente pode convencê-lo de que a primeira glória é a reparação dos erros.Cecília levantou os ombros; foi a sua única resposta. Meneses perguntou se haveria alguma razão de ciúmes. — Posso jurar-lhe que durante todo este tempo pertenci-lhe exclusivamente. O juramento de Cecília não devia valer muito aos olhos de um homem que conhecesse bem todos os recursos de uma mulher naquelas condições. Mas o nosso Meneses era ingênua em coisas tais. Saiu de lá cheio de piedade. Nessa mesma tarde mandou uma carta às Laranjeiras, justamente na ocasião em que Félix acabava de ler outra carta de Cecília. A carta da moça era tranqüila e até certo ponto nobre. Não lhe fazia nenhuma recriminação, nem implorava nenhum favor. Defendia-se apenas, retirando de si a responsabilidade da separação. A carta de Meneses era cavalheiresca: descobria o estado de alma de Cecília e não hesitava em chamar ingrato ao prófugo dardânio. Félix sorriu lendo ambas as missivas; depois atirou-as a uma cesta e nunca mais as viu.

Machado de Assis, em Ressurreição

domingo, 28 de setembro de 2025

Calvin e Haroldo

 

correções de mim mesmo, sobretudo segundo Whitman:

eu quebraria os bulevares como palhas
e jogaria os velhos poetas confusos que sorvem leite
e levantam pesos
nas detenções de bêbados de Iowa
até San Diego;
eu anunciaria minha própria firme reivindicação de imortalidade
bem quieto
já que ninguém escutaria mesmo,
e eu quebraria a Vitrola
eu quebraria a alma de Caruso
numa noite quente cheia de moscas;
eu sairia empinando uma bunda judaica
requebrando pelos bulevares
numa velha bicicleta italiana de corrida,
lançando olhares para trás
sempre sabendo
como boas-noites na Alemanha
ou luvas atiradas ao chão,
acontece.
eu choraria pelos exércitos da Espanha,
eu choraria pelos índios viciados em vinho,
eu choraria, inclusive, por Gable mortos
e conseguisse achar uma lágrima;
eu escreveria introduções para livros de poesia
de rapazes que já perderam metade da audição
devido à palavra;
eu mataria um elefante com um facão de caça
para ver sua tromba cair feito uma meia vazia.

eu encontraria coisas na areia e coisas
embaixo da minha cama: marcas de dentes, marcas de braço, sinais,
pontas, manchas de tinta, manchas de amor, rabiscos
de Swinburne…

eu derrubaria as montanhas por seus caroços de azeitona,
eu prantearia mergulhadores de narizes mortos
com isso aís,
e por falar nisso
eu esmagaria e mataria mais uma mosca
ou escreveria
mais um poema inútil.

Charles Bukowski, em Tempestade para os vivos e para os mortos

Separação

Voltou-se e mirou-a como se fosse pela última vez, como quem repete um gesto imemorialmente irremediável. No íntimo, preferia não tê-lo feito; mas ao chegar à porta sentiu que nada poderia evitar a reincidência daquela cena tantas vezes contada na história do amor, que é história do mundo. Ela o olhava com um olhar intenso, onde existia uma incompreensão e um anelo, como a pedir-lhe, ao mesmo tempo, que não fosse e que não deixasse de ir, por isso que era tudo impossível entre eles.
Viu-a assim por um lapso, em sua beleza morena, real mas já se distanciando na penumbra ambiente que era para ele como a luz da memória. Quis emprestar tom natural ao olhar que lhe dava, mas em vão, pois sentia todo o seu ser evaporar-se em direção a ela. Mais tarde lembrar-se-ia não recordar nenhuma cor naquele instante de separação, apesar da lâmpada rosa que sabia estar acesa. Lembrar-se-ia haver-se dito que a ausência de cores é completa em todos os instantes de separação.
Seus olhares fulguraram por um instante um contra o outro, depois se acariciaram ternamente e, finalmente, se disseram que não havia nada a fazer. Disse-lhe adeus com doçura, virou-se e cerrou, de golpe, a porta sobre si mesmo numa tentativa de seccionar aqueles dois mundos que eram ele e ela. Mas o brusco movimento de fechar prendera-lhe entre as folhas de madeira o espesso tecido da vida, e ele ficou retido, sem se poder mover do lugar, sentindo o pranto formar-se muito longe em seu íntimo e subir em busca de espaço, como um rio que nasce.
Fechou os olhos, tentando adiantar-se à agonia do momento, mas o fato de sabê-la ali ao lado, e dele separada por imperativos categóricos de suas vidas, não lhe dava forças para desprender-se dela. Sabia que era aquela a sua amada, por quem esperara desde sempre e que por muitos anos buscara em cada mulher, na mais terrível e dolorosa busca. Sabia, também, que o primeiro passo que desse colocaria em movimento sua máquina de viver e ele teria, mesmo como um autômato, de sair, andar, fazer coisas, distanciar-se dela cada vez mais, cada vez mais. E no entanto ali estava, a poucos passos, sua forma feminina que não era nenhuma outra forma feminina, mas a dela, a mulher amada, aquela que ele abençoara com os seus beijos e agasalhara nos instantes do amor de seus corpos. Tentou imaginá-la em sua dolorosa mudez, já envolta em seu espaço próprio, perdida em suas cogitações próprias  um ser desligado dele pelo limite existente entre todas as coisas criadas.
De súbito, sentindo que ia explodir em lágrimas, correu para a rua e pôs-se a andar sem saber para onde…

Vinicius de Moraes, em Para viver um grande amor

sábado, 27 de setembro de 2025

Elis Regina & Hermeto Pascoal | Asa Branca

Mais simples e melhor

Chega dessa vida miserável de murmúrios e macaquices. Por que você está perturbado? O que há de novo nisso? O que o perturba? É a forma da coisa? Olhe para ela. Ou é a matéria? Observe-a. Não há nada além de ambas.
Com respeito aos deuses, torne-se, finalmente, mais simples e melhor. Não há diferença entre examinar essas questões por cem ou três anos.

Marco Aurélio, em Meditações

Téo & O Mini Mundo

Seis ou treze coisas que eu aprendi sozinho

1.

Gravata de urubu não tem cor.
Fincando na sombra um prego ermo, ele nasce.
Luar em cima de casa exorta cachorro.
Em perna de mosca salobra as águas cristalizam.
Besouros não ocupam asas para andar sobre fezes.
Poeta é um ente que lambe as palavras e depois se alucina.
No osso da fala dos loucos há lírios.

Manoel de Barros, em Meu quintal é maior do que o mundo

Feira de amostra

 – Havia mais educação. Dona Noêmia e Dona Otília batiam boca, uma janela em frente da outra, troço de fazer folha de oiti cair mais cedo. Mas se em plena batalha a outra tivesse a falada crise de asma, Dona Noêmia cessava fogo e mandava a Maria Luíza atravessar correndo a Rua dos Artistas com a bombinha de Dyspné-Inhal do Ceceu Rico. Chupava um rebuçado e esperava Dona Otília se refazer. Quando o fole da outra parava de assoviar, Dona Noêmia perguntava: “Melhorou?” Dona Otília, muito digna, concordava com um aceno de cabeça e, por sua vez, mandava a empregada atravessar a rua com um cafezinho. Fazia questão de perguntar se tava bom de açúcar. Dona Noêmia agradecia, devolvia a xicrinha e o pau quebrava de novo, sua vaca pra cá, e é a tua pra lá. Havia mais educação, ora se havia.

Aldir Blanc, em Brasil passado a sujo

Carece de ter muita coragem...


[…]

Como que o senhor visse os catrumanos rir! O da fôice tornou a apanhar a fôice, o no jegue ficou segurando o chapéu em respeito, o velho beobôbo sumiu seu dobrão de prata em alguma algibeira. A mais eles todos riram, as tantas grandes bocas, e não tinham quase nenhum dente. Riam, sem motivo justo, agora mas para nos agradar. Cônscio, o da fôice criou ânimo, mesmo indagou!
O que mal não pergunto! mas donde será que ossenhor está servido de estando vindo, chefe cidadão, com tantos agregados e pertences?
Ei, do Brasil, amigo! ― Zé Bebelo cantou resposta, alta graça. ― Vim departir alçada e foro! outra lei ― em cada esconso, nas toesas deste sertão...
O velho agiu o pelo-sinal. Ia remenicar alguma outra coisa. Mas Zé Bebelo, completo de escutar e ver, deu não com a mão, e abriu a marcha. Tocamos. Ora vi as derradeiras caras daqueles catrumanos, que mostravam por nossa causa muitos pasmos de admiração, e a cobiça que tinham de fazer cento-e-dobro de perguntas, que por receio de atrevimento nunca perguntavam. Só dos rifles! ― Uixe-te, isto é lazarinha moderna?... Donde um deles, o montado no jegue, ainda gritou um conselho! que a gente então principiasse volta, no buritizal duma lagoazinha, da banda da mão direita ― por via de se evitar de passar por dentro do Sucruiú ― e que, retomada a estrada, no quebrar da mão esquerda, num vau perto da mata virgem, era só se andar as sete léguas, num sítio se chegava, de um tal de seôr Abrão, que era hospitaleiro... Isso aquele homem recomendou, não por serviço de préstimo, eu pelo tom e jeito bem entendi! gritou, no fim assim, a fito somente de que os seus outros vissem que ele bem possuía coragem também de dar voz, perante presença nossa, de tantos grandes jagunços donos de arejo d armas. Mas Zé Bebelo, descrendo de temer o que eles anunciavam, do arraial onde estava alastrando a varíola reinante, deu ordem de seguirmos, em reto em diante em frente.
Rir, o que se ria. De mesmo com as penúrias e descômodos, a gente carecia de achar os ases naquele povo de sujeitos, que viviam só por paciência de remedar coisas que nem conheciam. As criaturas.
Mas eu não ri. Ah, daí, não ri honesto nunca mais, em minha vida. Como que marquei: que a gente ter encontrado aqueles catrumanos, e conversado com eles, desobedecido a eles ― isso podia não dar sorte. A hora tinha de ser o começo de muita aflição, eu pressentia. Raça daqueles homens era diverseada distante, cujos modos e usos, mal ensinada. Esses, mesmo no trivial, tinham capacidade para um ódio tão grosso, de muito alcance, que não custava quase que esforço nenhum deles; e isso com os poderes da pobreza inteira e apartada; e de como assim estavam menos arredados dos bichos do que nós mesmos estamos: porque nenhumas más artes do demônio regedor eles nem divulgavam. Só o mau fato de se topar com eles, dava soloturno sombrio. Apunha algum quebranto. Mas mais que, por conosco não avirem medida, haviam de ter rogado praga. De pensar nisso, eu até estremecia; o que estremecia em mim: terreno do corpo, onde está a raiz da alma. Aqueles homens eram orelhudos, que a regra da lua tomava conta deles, e dormiam farejando. E para obra e malefícios tinham muito governo. Aprendi dos antigos. Capatazia de soprar quente qualquer ódio nas folhas, e secar a árvore; ou de rosnar palavras em buraco pequeno que abriam no chão, tapando depois: para o caminho esperar a passagem de alguém, e a ele fazer mal; ou guardavam um punhado de terra no fechado da mão, no prazo de três noites e três dias, sem abrir, sem largar: e quando jogavam fora aquela terra, em algum lugar, nele com data de três meses ficava sendo uma sepultura... De homem que não possui nenhum poder nenhum, dinheiro nenhum, o senhor tenha todo medo! O que mais digo: convém nunca a gente entrar no meio de pessoas muito diferentes da gente. Mesmo que maldade própria não tenham, eles estão com vida cerrada no costume de si, o senhor é de externos, no sutil o senhor sofre perigos. Tem muitos recantos de muita pele de gente. Aprendi dos antigos. O que assenta justo é cada um fugir do que bem não se pertence. Parar o bom longe do ruim, o são longe do doente, o vivo longe do morto, o frio longe do quente, o rico longe do pobre. O senhor não descuide desse regulamento, e com as suas duas mãos o senhor puxe a rédea. Numa o senhor põe ouro, na outra prata; depois, para ninguém não ver, elas o senhor fecha bem. E foi o que eu pensei. Aqueles catrumanos pedindo por maldição, como era que eu podia deixar de pensar neles? Há-de, que se eles tivessem me pegado sozinho, eu apeado e precisado, decerto me matavam, para roubar minhas armas, as coisas e minhas roupas. Amargo que acabavam comigo, sem escrúpulos, hom essa, que nem tinham, porquanto eu era desconhecido e forasteiro. De doente, ou ferido perdendo meu sangue, que eu estivesse, algum deles ia ser capaz de me ceder gole duma cuia dágua? Draste eu duvidava deles. Duvidava dos fojos do mundo. E por que era que há de haver no mundo tantas qualidades de pessoas ― uns já finos de sentir e proceder, acomodados na vida, tão perto de outros, que nem sabem de seu querer, nem da razão bruta do que por necessidades fazem e desfazem. Por que? Por sustos, para vigiação sem descanso, por castigos? E de repente aqueles homens podiam ser montão, montoeira, aos milhares mís e centos milhentos, vinham se desentocando e formando, do brenhal, enchiam os caminhos todos, tomavam conta das cidades. Como é que iam saber ter poder de serem bons, com regra e conformidade, mesmo que quisessem ser? Nem achavam capacidade disso. Haviam de querer usufruir depressa de todas as coisas boas que vissem, haviam de uivar e desatinar. Ah, e bebiam, seguro que bebiam as cachaças inteirinhas da Januária. E pegavam as mulheres, e puxavam para as ruas, com pouco nem se tinha mais ruas, nem roupinhas de meninos, nem casas. Era preciso de mandar tocar depressa os sinos das igrejas, urgência implorando de Deus o socorro. E adiantava? Onde é que os moradores iam achar grotas e fundões para se esconderem ― Deus me diga? Nem me diga o senhor que não ― aí foi que eu pensei o inferno feio deste mundo! que nele não se pode ver a força carregando nas costas a justiça, e o alto poder existindo só para os braços da maior bondade. Isso foi o que eu pensei, muito redoído, no estufo do calor vingante. E foi por durante quase uma hora, montado no meu cavalo ruim chamado Padrim-Selorico, a passo por aqueles ruins campos, até se chegar perto do povoado do Sucruiú, onde que estava arranchada a horrorosa doença, por cima da pior miséria. Bobeia minha? Porque os companheiros, indo cuidando de seu ramerrão comum, nenhum não punha tento em dessas ideias. Então era só eu? Era. Eu, que estava mal-invocado por aqueles catrumanos do sertão. Do fundo do sertão. O sertão! o senhor sabe.
Mas em tanto, então levantei o meu entender para Zé Bebelo ― dele emprestei uma esperança, apreciei uma luz. Dei tino. Zé Bebelo, em testa, chefe como chefe, como executava nossa ida. Da marca de um homem solidado assim, que era sempre alvissareiro. Por ele eu crescia admiração, e que era estima e fiança, respeito era. Da pessoa dele, da grande cabeça dele, era só que podia se repor nossa guarda de amparo e completa proteção, eu via. Porque Zé Bebelo previa de vir, cá em baixo, no escuro sertão, e, o que ele pensava, queria, e mandava! tal a guerra, por confrontação; e para o sertão retroceder, feito pusesse o sertão para trás! E era o que íamos realizar de fazer. Para mim, ele estava sendo feito o canoeiro mestre, com o remo na mão, no atravessar o rebelo dum rio cheio. ― Carece de ter coragem... Carece de ter muita coragem... ― eu relembrei. Eu tinha. Diadorim vindo do meu lado, rosável mocinho antigo, sofrido de tudo mas firme, duro de temporal, naquelas constâncias. Sei que amava, não amava? Os outros, os companheiros outros, semelhavam no rigor umas pobres infâncias na relega ― que deles a gente precisasse de tomar conta. Com Zé Bebelo da minha mão direita, e Diadorim da minha banda esquerda! mas, eu, o que é que eu era? Eu ainda não era ainda. Se ia, se ia. O cavalo pombo de Zé Bebelo era o de mais armada vista, o maior de todos. Cavalo selado, montado, e muito chão adiante. Viajar! ― mas de outras maneiras! transportar o sim desses horizontes!…
[…]

Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas

sexta-feira, 26 de setembro de 2025

Djavan | Um Brinde

Duas antigas

II

Eu também, não resisto. Dans mon île, vendo a barca e as gaivotinhas passarem. Sua resposta vem de barca e passa por aqui, muito rara. Quando tenho insônia me lembro sempre de uma gaffe e de um anúncio do museu: “To see all these works together is an experience not to be missed”. E eu nem nada. Fiz misérias nos caminhos do conhecer. Mas hoje estou doente de tanta estupidez porque espero ardentemente que alguma coisa... divina aconteça. F for fake. Os horóscopos também erram.
Me escreve mais, manda um postal do azul (eu não me espanto).
O lugar do passado? Na próxima te digo quem são os 3, mas os outros grandes... eu resisto.
Não fica aborrecida: beijo político lábios de cada amor que tenho.

Ana Cristina Cesar, em A Teus Pés

Misael, o Misantropo

A roça

Sem casa onde morar, um cunhado lhe emprestou uma fazenda abandonada. Pau-a-pique e adobe, caiação branca já suja pelo tempo, janelas de madeira azuis que o abandono desbotara, rudes largas tábuas no assoalho com buracos apodrecidos, teto de telha vã, os picumãs pendentes sobre o fogão, sem banheiro, as necessidades se faziam na “casinha” durante o dia e nos urinóis durante a noite, a bica d’água cristalina, os banhos de bacia, os “lava-pés” ao fim do dia, o cheiro de querosene das lamparinas à noite, os ratos correndo pelos caibros do telhado, o fogão de lenha, o cheiro de fumaça, o canto dos galos, a gritaria dos porcos na matança, os ninhos das galinhas, os entardeceres tristes, as galinhas esticando o pescoço e piando, avaliando o tamanho do voo até o poleiro mais alto, o pio das aves noturnas, os barulhos estranhos na mata escura, ninguém se atrevia a sair, era noite, podia ser onça, a família espantava o medo passando trancas nas portas e janelas, e ficava junta ao redor do fogão de lenha aceso.
Roça” é um lugar que a esperança abandonou. Havia os que “iam” à roça. Eram os fazendeiros proprietários que moravam na cidade e lá apareciam para ver o seu gado. Para esses havia esperança. Havia também os raros amigos que visitavam aos domingos. Para eles “roça” era piquenique. Mas havia os que “pertenciam” à roça, que estavam plantados nela, companheiros do gado, das matas, dos pastos. Para esses não havia esperança. Quem era da roça morria nela. “Roça” era limbo de onde não se podia sair. Meu pai não era da roça. A roça foi o seu degredo.
Para sobreviver era preciso lutar com a natureza. A natureza é bonita quando a gente a contempla de longe. De longe é um cenário bom de se fotografar. Ou quando ela foi domesticada e transformada em parque ou jardim. Mas a natureza em si, do jeito como nasceu, bruta, a gente dentro dela, é fera que mata sem piedade. Um amigo que morou menino na roça me disse: “Hoje todo mundo fala mal dos pioneiros que cortaram as florestas a machado. Acusam-nos de assassinos da natureza. Mas não havia outro jeito. A mata estava ali, cobra verde de boca aberta, à espreita, sorrateira, se arrastando, se aproximando, pronta a dar o bote. A mata era inimiga. Era preciso matá-la como se mata cobra. Ou nós ou ela... Para se construir uma casa e viver em paz era preciso acabar com a mata. Bom não era o verde. Bom era o ‘terreiro’ bem limpo, apisoado, varridinho, sem nem um capim crescendo nele, garantia de que as aranhas, os escorpiões e as cobras ficariam longe”.
Era no terreiro que as crianças brincavam sem perigo. Quando o Jeca Tatuzinho se curou dos vermes e do amarelão e ganhou saúde, pegou no machado e pôs-se a cortar árvores. Assim escreveu Monteiro Lobato, o desenho do Jeca Tatuzinho cortando árvore, o que indica que até mesmo ele aprovava o que o Jeca fazia.
Lembro-me do meu pai trabalhando com a foice, corpo coberto de suor. Era preciso roçar os pastos para o gado ter o que comer. Batia a exaustão. Exaustão maior para quem não estava acostumado. Depois ele me contou que, quando a sede apertava, ele, de propósito, não bebia água. Esperava que a sede crescesse até ficar insuportável. Aí então ele ia até a mina. A mina estava escondida numa loca coberta de vegetação. Dentro era a sombra. A água borbulhava de mansinho, cristalina. A cuia cortada ao meio estava pendurada num gancho, à sombra. Ele pegava a cuia, enchia-a de água, olhava para a água agradecido, e bebia. Aí ele sentia que valia a pena viver. Não é preciso acreditar em Deus para sentir gratidão. Basta uma cuia d’água...
Tudo o que eu disse sobre a “roça” como lugar que a esperança abandonou só valia para os grandes. Eu era uma criança feliz. A infelicidade começa com a comparação. E eu não tinha com que comparar. Bachelard observou que “a infância conhece a infelicidade através dos homens” (A poética do devaneio, p. 9). Ainda não havia aprendido com os adultos a arte maldita da comparação. Esperança é coisa de gente grande, que vive no tempo, o passado, o presente, o futuro. Esperança é uma fantasia do futuro que alegra o presente. Criança não tem esperança. Não precisa. Se alegra no presente. Criança está fora do tempo. Mora na eternidade. Na eternidade não há tempo, não há passado, não há futuro, só o presente. Criança vive o momento. Eu só vivia o presente. Não tinha ansiedades. Meu irmão Ismael me contou que um dia a mãe lhe disse: “O que nos resta para viver são 800 mil-réis de um carro de bois que o seu pai vendeu...” . Minha mãe e meu irmão estavam ansiosos pelo futuro. Eu não. Sem o saber vivia a sabedoria evangélica que dizia que é inútil se preocupar com o amanhã. Jesus sabia que a cura para nossas doideiras é ficar criança de novo.

Rubem Alves, em O Velho que Acordou Menino

O pedestre


Penetrar no silêncio que era a cidade, às oito horas de uma nevoenta noite de novembro, pôr os pés na calçada de concreto irregular, trincas onde a grama nasceu e seguir de mãos nos bolsos através de silêncios, isso era o que o sr. Leonard Mead adorava fazer. Ele ficaria na esquina de um cruzamento olhando extensas avenidas de calçadas indo em quatro direções, iluminadas pela lua, decidindo qual seguir, embora não fizesse realmente nenhuma diferença, ele estava sozinho nesse mundo do ano de 2053, ou como se estivesse, e com uma decisão final tomada, no caminho escolhido, ele andaria com passos largos, formando desenhos de ar gelado à sua frente, como a fumaça de um charuto.
Às vezes, ele caminhava durante horas e quilômetros e retornava, só à meia-noite, para sua casa. E no seu percurso veria os chalés e as casas com suas janelas escuras, e não parecia diferente de caminhar através de um cemitério, onde apenas a tênue luz bruxuleante de vaga-lumes surgia em lampejos atrás das janelas. Repentinos fantasmas cinzentos se manifestavam dentro das paredes dos cômodos onde uma cortina permanecia fechada contra a noite, ou se ouviam sussurros e murmúrios onde uma janela em um prédio tumular ainda estava aberta.
O sr. Leonard Mead faria uma pausa, aprumaria a cabeça, ouviria, olharia e iria embora sem fazer barulho na calçada irregular. Fazia muito tempo ele sabiamente havia decidido usar tênis para sair à noite, porque os cães, em intermitentes esquadrões, cercariam sua caminhada de latidos se ele usasse sapatos comuns e as luzes poderiam se acender e rostos apareceriam e uma rua inteira se sobressaltaria com a passagem de uma criatura solitária, ele próprio, em uma noite do início de novembro.
Nessa noite em particular, ele iniciou sua caminhada rumo a oeste, na direção do mar escondido. Havia uma geada cristalina no ar; ela invadiu seu nariz e fez os pulmões luzirem como uma árvore de Natal interna, dava para sentir a luz fria piscando, todos os galhos cobertos de neve invisível. Ele ouvia a pressão de seus sapatos macios sobre as folhas de outono prazerosamente e assoviava uma melodia fria e suave por entre os dentes, pegando uma folha ocasionalmente enquanto ia passando, examinando seu desenho esquelético sob a luz de uma ou outra lâmpada, à proporção em que se deslocava, sentindo seu odor ferruginoso.
Ó de casa!”, ele murmurava para cada casa por onde passava. “O que está passando no canal 4, no canal 7, no canal 9? Para onde estão indo os caubóis, posso ver a cavalaria, na próxima colina, pronta para entrar em ação?”
A rua era silenciosa, comprida e vazia, só havia a sombra dele movendo-se como a sombra de um falcão no meio do campo. Se ele fechasse os olhos e ficasse imóvel, enregelado, poderia se ver no centro de uma planície, um invernal deserto americano, sem vento, sem uma só casa por centenas de quilômetros, e apenas leitos secos de rios, as ruas por companhia.
E agora?”, ele perguntava às casas olhando seu relógio de pulso. “Oito e meia da noite? Hora de uma dúzia de assassinatos sortidos? Um programa de perguntas e respostas? Um comediante caindo do palco?”
Aquilo era o som de uma risada saindo da casa cor de lua? Ele hesitou, mas retomou a caminhada quando nada mais aconteceu. Tropeçou em uma região particularmente irregular da calçada. O concreto estava desaparecendo sob flores e grama. Em dez anos de caminhada à noite ou durante o dia, por milhares de milhas, ele nunca havia encontrado outra pessoa, nem mesmo uma única vez.
Ele chegou a um trevo silencioso onde duas rodovias principais cortavam a cidade. Durante o dia, o cruzamento era uma tonitruante onda de carros, postos de gasolina abertos, um imenso ruge-ruge de insetos, um incessante vaivém em manobras de posicionamento como um bando de besouros, um cheiro fraco de incenso saindo dos escapamentos chegava à superfície indo em direção aos lares distantes. Mas agora essas rodovias também pareciam ribeiros em uma estação seca, só brilho de pedra, leito e lua.
Ele virou em uma rua lateral, fazendo meia-volta em direção à sua casa. Estava a uma quadra de seu destino quando um carro solitário dobrou a esquina repentinamente e jogou um violento cone de luz branca sobre ele. Ele ficou estatelado, não muito diferente de uma mariposa noturna, atordoada pela luz e então atraída por ela.
Uma voz metálica disse a ele:
Parado. Fique onde está, não se mexa!”
Ele se deteve.
Mãos ao alto!”
Mas...”, ele disse.
Mãos para cima! Ou atiramos!”
A polícia, claro, mas que coisa rara e incrível; em uma cidade de três milhões de habitantes, havia apenas um único carro de polícia! Desde 2052, um ano antes, ano de eleição, a força havia sido reduzida de três carros para um. A criminalidade estava declinando; não havia mais necessidade de polícia, exceto por esse único e solitário carro vagando e vagando pelas ruas vazias.
Qual o seu nome?”, disse o carro de polícia com um sussurro metálico. Ele não conseguia ver os homens dentro do carro devido ao forte clarão em seus olhos.
Leonard Mead”, ele disse.
Fale alto!”
Leonard Mead!”
Ocupação ou profissão?”
Acho que poderiam me chamar de escritor.”
Sem profissão”, disse o carro de polícia, como se falasse para si próprio. A luz o mantinha estático, como um espécime em um museu, alfinete traspassado no peito.
Pode-se dizer que sim”, disse o sr. Mead. Ele não escrevia fazia muitos anos. Revistas e livros não tinham mais muita saída. Todas as coisas seguiam seu rumo nas casas sepulcrais, agora à noite, ele pensou, prosseguindo em sua fantasia.
Os sepulcros mal iluminados pela luz dos televisores onde as pessoas se sentavam, como os mortos, com as luzes cinza ou multicoloridas tocando seus rostos, mas nunca realmente as tocando.
Sem profissão”, sibilou a voz fonográfica. “O que o senhor está fazendo aqui fora?”
Caminhando”, disse Leonard Mead.
Caminhando!”
Só caminhando”, ele disse simplesmente, mas o rosto ficou gelado.
Caminhando, só caminhando, caminhando?”
Sim, senhor.”
Caminhando aonde? Para quê?”
Caminhando para tomar ar. Caminhando para ver.”
Seu endereço!”
Rua Saint-James, sul, número 11.”
E tem ar em sua casa, o senhor tem um aparelho de ar-condicionado, senhor Mead?”
Sim.”
E o senhor tem uma tela-visor em sua casa para ver as coisas?”
Não.”
Não?”
Houve um silêncio estrepitoso que era por si só uma acusação.
O senhor é casado, senhor Mead?”
Não.”
Não é casado”, disse a voz policial detrás do feixe ofuscante. A lua era alta e clara entre as estrelas e as casas eram cinza e silenciosas.
Ninguém me quis”, disse Leonard Mead com um sorriso.
Não fale, a não ser que lhe dirijam a palavra!”
Leonard Mead esperou na noite fria.
caminhando, senhor Mead?”
Sim.”
Mas o senhor não explicou com que finalidade.”
Expliquei, para tomar ar, e ver as coisas, e caminhar apenas.”
O senhor faz isso freqüentemente?”
Toda noite, há vários anos.”
O carro de polícia permanecia no meio da rua zumbindo fracamente com sua garganta radiofônica.
Bem, senhor Mead”, disse o carro.
Isso é tudo?”, ele perguntou educadamente.
Sim”, disse a voz. “Aqui.”
Houve um suspiro, um estalo. A porta de trás do carro de polícia escancarou-se.
Entre.”
Espere aí, eu não fiz nada!”
Entre.”
Eu protesto!”
Senhor Mead.”
Ele andava como um homem repentinamente embriagado. Ao passar pela janela da frente do carro, olhou para dentro. Conforme esperava, não havia ninguém no banco da frente, ninguém em todo o carro.
Entre.”
Ele pôs a mão na porta e examinou o banco traseiro, uma pequena cela, um carcerezinho negro com barras. Tinha cheiro de aço rebitado, cheiro de anti-séptico acre, cheiro de limpo demais, duro e metálico. Não havia nada suave ali.
Se o senhor pelo menos tivesse uma esposa para lhe servir de álibi”, disse a voz férrea. “Mas...”
Aonde estão me levando?”
O carro hesitou, ou melhor, deu um fraco estalido, como se a informação, em algum lugar, estivesse chegando através de cartão perfurado sob olhos elétricos.
Ao Centro Psiquiátrico de Pesquisa em Tendências Regressivas.”
Ele entrou. A porta se fechou com um baque surdo. O carro de polícia rodou pelas avenidas da noite, projetando suas luzes fracas.
Passaram por uma casa em uma rua, logo em seguida, uma casa em toda a cidade de casas escuras, essa casa em particular tinha todas as suas luzes elétricas brilhantemente acesas, cada janela uma iluminação amarela, quadrada e morna na escuridão fria.
Aquela é a minha casa”, disse Leonard Mead.
Ninguém respondeu.
O carro desceu as ruas vazias como leitos de rio e foi embora, deixando as ruas vazias, com calçadas vazias, e nenhum som e nenhum movimento por todo o resto da fria noite de novembro.

Ray Bradbury, em A cidade inteira dorme e outros contos breves