terça-feira, 31 de dezembro de 2024

Nascemos para amar

Nascemos para amar; a Humanidade
Vai, tarde ou cedo, aos laços da ternura.
Tu és doce atrativo, ó Formosura,
Que encanta, que seduz, que persuade.

Enleia-se por gosto a liberdade;
E depois que a paixão na alma se apura,
Alguns então lhe chamam desventura,
Chamam-lhe alguns então felicidade.

Qual se abisma nas lôbregas tristezas,
Qual em suaves júbilos discorre,
Com esperanças mil na ideia acesas.

Amor ou desfalece, ou pára, ou corre:
E, segundo as diversas naturezas,
Um porfia, este esquece, aquele morre.

Bocage, em Sonetos

Funkadelic | Maggot Brain

O pássaro azul

há um pássaro azul em meu peito que
quer sair
mas sou duro demais com ele,
eu digo, fique aí, não deixarei
que ninguém o veja.

há um pássaro azul em meu peito que
quer sair
mas eu despejo uísque sobre ele e inalo
fumaça de cigarro
e as putas e os atendentes dos bares
e das mercearias
nunca saberão que
ele está
lá dentro.

há um pássaro azul em meu peito que
quer sair
mas sou duro demais com ele,
eu digo,
fique aí, quer acabar
comigo?
quer foder com minha
escrita?
quer arruinar a venda dos meus livros na
Europa?

há um pássaro azul em meu peito que
quer sair
mas sou bastante esperto, deixo que ele saia
somente em algumas noites
quando todos estão dormindo.
eu digo, sei que você está aí,
então não fique
triste.

depois o coloco de volta em seu lugar,
mas ele ainda canta um pouquinho
lá dentro, não deixo que morra
completamente
e nós dormimos juntos
assim
com nosso pacto secreto
e isto é bom o suficiente para
fazer um homem
chorar, mas eu não
choro, e
você?

Charles Bukowski, em O amor é um cão dos diabos

Entrevista

Meu caro: recebi a revista com minha entrevista, que você não quis fazer por e-mail, como eu tinha sugerido, nem com um gravador, como seria prudente. Confiou na sua memória e nas suas anotações e o resultado aí está. Começando já na primeira pergunta, sobre o meu método de trabalho.
Reconheço que não falo com muita clareza, mas definitivamente não, repito não, disse que antes de começar a escrever traçava uns miúdos, o que pode dar a entender que me preparo para o trabalho atacando sexualmente crianças portuguesas. O que eu disse foi que amiúde faço traços no papel, esperando que venha a inspiração. Também não sei de onde você tirou que só escrevo descalço e ouvindo Mozart.
Em outra pergunta, sobre o começo da minha carreira e as leituras que me influenciaram, onde está “corcundas libertários” deveria ser “concursos literários”, e onde se lê “Frei Beto” deveria ser “Flaubert”. Não me lembro exatamente o que disse sobre o Machado de Assis, mas tenho certeza que não o chamei de “prótese motora”. Talvez fosse algo como “protomoderno”. Só saberíamos ao certo se você tivesse gravado!
Outra coisa. Sua pergunta sobre escritores brasileiros meus contemporâneos.
Se eu for processado — e no caso do Paulo Coelho certamente serei, depois do que você botou na minha boca sobre ele — farei o possível para que você seja responsabilizado criminalmente. Não entendo como a expressão “fenômeno cultural”, a respeito dos novos autores da era da informática, possa ter saído como “fedor monumental”. Vou ter que telefonar para vários escritores amigos meus para desmentir o que está na entrevista, antes que mandem me bater.
Você também ouviu errado o nome da minha mulher. Ela ainda não leu a entrevista, mas fatalmente me perguntará sobre essa Lídia que, segundo você, é minha companheira e musa há tantos anos. Vai querer saber onde eu a mantenho escondida.
Meus dados biográficos também saíram errado. Eu não disse que fui adotado com um ano e pouco. Disse que nasci sem cabelo e por isso fui apelidado de “Coco”. Na infância não gostava de andar pelado na rua. Gostava de jogar peladas na rua. E não consigo imaginar o que eu falei que levou você a escrever que na adolescência fui sequestrado por um casal de ciganos e levado para a Romênia. Eu deveria ter adivinhado que você entendera errado quando antes de escrever me perguntou se o certo era “Romênia” ou “Rumênia”. Também não sei como o senador Demóstenes Torres entrou na minha lista de atores favoritos.
Por fim: eu disse que minha cor preferida era o vermelho. Saiu “azul”. Foi o que mais doeu.

Luís Fernando Veríssimo, em Diálogos Impossíveis

Snoopy

 

Membro social

Caso já tenha avistado uma mão, um pé e uma cabeça decepada, enxerga como é um homem que, até onde consegue, aparta-se dos demais, descontenta-se com os eventos e se comporta antissocialmente.
A natureza o concebeu como um membro. Supondo que se ampute da unidade natural, ainda assim terá esta bela providência: a capacidade de se reincorporar. Deus não permitiu que nenhuma outra parte se reincorpore. Medite sobre a bondade divina. Por intermédio dela, distinguiu o homem ao capacitá-lo para não se separar do universo e para reintegrá-lo e reassumir a sua participação caso se separe.

Marco Aurélio, em Meditações

Certo dia, a casa amanheceu em polvorosa, pois a sinhá Ana Felipa tinha começado a botar sangue e ainda faltavam mais de quatro meses para a época certa de a criança nascer. Foi chamada uma aparadeira famosa na ilha, e ela disse que não podia fazer muita coisa, que a sinhá tinha que ter fé, muita fé. Das outras vezes, nada tinha adiantado, nem as ervas das pretas benzedeiras, a quem ela recorreu achando que ninguém sabia, nem os remédios de botica. Nem a fé, pois todas as tentativas eram amparadas com muita reza. A sinhá exigia que houvesse pelo menos uma preta sempre ao lado dela, desfiando o rosário, e que era substituída assim que a voz demonstrasse cansaço. Já tinha recebido visitas de médicos da capital e até mesmo da corte, que ficava a muitos dias de navio da Bahia, na província do Rio de Janeiro. Mesmo assim, todas as vezes que a sinhá ficava pejada, as crianças não vingavam. Só podiam ser abikus, e eles não iam querer ficar enquanto não fossem tomadas as providências. Mas eu é que não ia voltar a falar nesse assunto, uma vez que a Esméria já tinha me repreendido.
Uma noite, sonhei com a Taiwo, quero dizer, acho que era a Taiwo, vestida com a roupa que a sinhazinha Maria Clara tinha me emprestado, pois tive a mesma sensação de quando nos olhávamos nos olhos por sobre os ombros da minha mãe, em Savalu. Parecia eu, mas era a Taiwo, e estava feliz, olhando nos meus olhos e sorrindo, enrolando a barra do vestido em volta das pernas, de um lado para outro. Logo na manhã seguinte, enquanto eu ajudava a Esméria a torrar e moer o café, a Nega Florinda apareceu e, sem dizer nada além de um breve cumprimento, foi embora depois de me entregar um embrulho com o pingente que todo ibêji que sobrevive à morte do outro deve usar para conservar a sua alma, e mais uma pequena escultura, também em madeira, representando os dois Ibêjis juntos. Mostrei à Esméria e ela me levou de volta à senzala pequena, de onde quase todos já haviam saído, menos os dois moleques, o Tico e o Hilário, que ainda dormiam de roncar. Ela me ajudou a cavar um buraco no local onde estava a minha esteira, suficientemente fundo para atingir a base da parede que entrava para dentro da terra, e deixando um oco, como se fosse uma caverna. Foi assim que descobri como os pretos guardavam os seus santos, escondidos dos olhos dos brancos, e que todas aquelas paredes já deviam estar apoiadas em quase nada. Até a Esméria tinha lá os seus orixás, mesmo já estando acostumada aos santos dos brancos e tendo simpatia por alguns deles, como São Benedito, que era preto como nós, ou Nossa Senhora da Conceição, que se reza como Iemanjá, assim como São Jorge é Xangô e Santo Antônio é Ogum, ou São Cosme e São Damião, que são os Ibêjis. Depois que colocamos a esteira para esconder a entrada do buraco, ela me pediu para tomar bastante cuidado na hora de tirar meus Ibêjis de lá, para ter certeza de que não havia ninguém olhando. Caso contrário, eu arriscaria não só o meu esconderijo, mas o de todos os pretos, pois poderiam mandar fazer uma busca nas senzalas. O pingente de ibêji, ao contrário do que eu pensava, não representava uma criança, como ainda era a Taiwo quando morreu, mas uma adulta com peitos e racha, que era como ela deveria ficar se tivesse crescido. Manter a Taiwo viva, esse era o papel do pingente, ou amuleto, que eu trago sempre comigo, pendurado no pescoço. Dias depois, um Xangô foi se juntar aos Ibêjis no esconderijo, também presente da Nega Florinda.

Ana Maria Gonçalves, em Um defeito de cor

segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

Guilherme Arantes | Sob O Efeito De Um Olhar

Um sonho

Ontem
eu sonhei o teu sonho.
Sonhei que os soldados,
cantando e dançando,
libertando-se de todo mal,
surgiam de todos os lugares
para velar o funeral
de todo arsenal
das ogivas nucleares.
No sonho,
os homens não eram escravos
nem de si, nem dos outros,
tampouco das cores,
pois o dinheiro
havia sido morto
no combate com o amor.
As crianças,
cravo e canela,
dançavam com as flores,
como não tinham fome
caçavam estrelas
e quando cansadas
tornavam­-se nelas!
Sonhei
que as mulheres e os homens
não tinham coisas, mas sentimentos,
e em sinal de alegria,
plantavam suas orações
não de mãos espalmadas,
mas de braços dados
com o milagre do dia.
E Deus – todo pequeno gesto de amor –
não frequentava igrejas,
livros ou estátuas,
apenas corações…

Ontem,
sonhei o teu sonho
sem saber que também era o meu.

Sérgio Vaz, em Colecionador de pedras 

A fogueirinha

Alguém me conta a história de um homem velho que ele viu sentado à porta da casa em uma hora de sol, fazendo uma fogueirinha de gravetos. Passou e deu bom dia. O homem respondeu. Então ele perguntou de brincadeira:
Está se aquecendo?
O homem respondeu: — É.
Mas por que é que você fez esse fogo? Faz sol..
O velho ergueu os olhos tristes: — Porque é bonito — e me faz companhia.

Rubem Braga, em Recado de primavera

Tutu, o Evidente

Medo da libertação

Se eu me demorar demais olhando Paysage aux Oiseaux Jaunes (Paisagem com Pássaros Amarelos, de Klee), nunca mais poderei voltar atrás. Coragem e covardia são um jogo que se joga a cada instante. Assusta a visão talvez irremediável e que talvez seja a da liberdade. O hábito que temos de olhar através das grades da prisão, o conforto que traz segurar com as duas mãos as barras frias de ferro. A covardia nos mata. Pois há aqueles para os quais a prisão é a segurança, as barras um apoio para as mãos. Então reconheço que conheço poucos homens livres. Olho de novo a paisagem e de novo reconheço que covardia e liberdade estiveram em jogo. A burguesia total cai ao se olhar Paysage aux Oiseaux Jaunes. Minha coragem, inteiramente possível, me amedronta. Começo até a pensar que entre os loucos há os que não são loucos. E que a possibilidade, a que é verdadeiramente, não é para ser explicada a um burguês quadrado. E à medida que a pessoa quiser explicar se enreda em palavras, poderá perder a coragem, estará perdendo a liberdade. Les Oiseaux Jaunes não pede sequer que se o entenda: esse grau é ainda mais liberdade: não ter medo de não ser compreendido. Olhando a extrema beleza dos pássaros amarelos calculo o que seria se eu perdesse totalmente o medo. O conforto da prisão burguesa tantas vezes me bate no rosto. E, antes de aprender a ser livre, tudo eu aguentava – só para não ser livre.

Clarice Lispector, em Todas as crônicas

A metamorfose | I



Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava deitado sobre suas costas duras como couraça e, ao levantar um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado, marrom, dividido por nervuras arqueadas, no topo do qual a coberta, prestes a deslizar de vez, ainda mal se sustinha. Suas numerosas pernas, lastimavelmente finas em comparação com o volume do resto do corpo, tremulavam desamparadas diante dos seus olhos.
O que aconteceu comigo? — pensou.
Não era um sonho. Seu quarto, um autêntico quarto humano, só que um pouco pequeno demais, permanecia calmo entre as quatro paredes bem conhecidas. Sobre a mesa, na qual se espalhava, desempacotado, um mostruário de tecidos — Samsa era caixeiro-viajante —, pendia a imagem que ele havia recortado fazia pouco tempo de uma revista ilustrada e colocado numa bela moldura dourada. Representava uma dama de chapéu de pele e boá de pele que, sentada em posição ereta, erguia ao encontro do espectador um pesado regalo também de pele, no qual desaparecia todo o seu antebraço.
O olhar de Gregor dirigiu-se então para a janela e o tempo turvo — ouviam-se gotas de chuva batendo no zinco do parapeito — deixou-o inteiramente melancólico.
Que tal se eu continuasse dormindo mais um pouco e esquecesse todas essas tolices? — pensou, mas isso era completamente irrealizável, pois estava habituado a dormir do lado direito e no seu estado atual não conseguia se colocar nessa posição. Qualquer que fosse a força com que se jogava para o lado direito, balançava sempre de volta à postura de costas. Tentou isso umas cem vezes, fechando os olhos para não ter de enxergar as pernas desordenadamente agitadas, e só desistiu quando começou a sentir do lado uma dor ainda nunca experimentada, leve e surda.
Ah, meu Deus! — pensou. — Que profissão cansativa eu escolhi. Entra dia, sai dia — viajando. A excitação comercial é muito maior que na própria sede da firma e além disso me é imposta essa canseira de viajar, a preocupação com a troca de trens, as refeições irregulares e ruins, um convívio humano que muda sempre, jamais perdura, nunca se torna caloroso. O diabo carregue tudo isso!
Sentiu uma leve coceira na parte de cima do ventre; deslocou-se devagar sobre as costas até mais perto da guarda da cama para poder levantar melhor a cabeça; encontrou o lugar onde estava coçando, ocupado por uma porção de pontinhos brancos que não soube avaliar; quis apalpá-lo com uma perna, mas imediatamente a retirou, pois ao contato acometeram-no calafrios.
Deslizou de volta à antiga posição.
Acordar cedo assim deixa a pessoa completamente embotada — pensou. — O ser humano precisa ter o seu sono. Outros caixeiros-viajantes vivem como mulheres de harém. Por exemplo, quando volto no meio da tarde ao hotel para transcrever as encomendas obtidas, esses senhores ainda estão sentados para o café da manhã. Tentasse eu fazer isso com o chefe que tenho: voaria no ato para a rua. Aliás, quem sabe não seria muito bom para mim? Se não me contivesse, por causa dos meus pais, teria pedido demissão há muito tempo; teria me postado diante do chefe e dito o que penso do fundo do coração. Ele iria cair da sua banca! Também, é estranho o modo como toma assento nela e fala de cima para baixo com o funcionário — que além do mais precisa se aproximar bastante por causa da surdez do chefe. Bem, ainda não renunciei por completo à esperança: assim que juntar o dinheiro para lhe pagar a dívida dos meus pais — deve demorar ainda de cinco a seis anos — vou fazer isso sem falta. Chegará então a vez da grande ruptura. Por enquanto, porém, tenho de me levantar, pois meu trem parte às cinco.
E olhou para o despertador que fazia tique-taque sobre o armário.
Pai do céu! — pensou. Eram seis e meia e os ponteiros avançavam calmamente, passava até da meia hora, já se aproximava de um quarto. Será que o despertador não havia tocado? Via-se da cama que ele estava ajustado certo para quatro horas: seguramente o alarme tinha soado. Sim — mas era possível continuar dormindo tranquilo com esse toque de abalar a mobília? Bem, com tranquilidade ele não havia dormido, mas é provável que por causa disso o sono tenha sido mais profundo. E agora, o que deveria fazer? O próximo trem partia às sete horas; para alcançá-lo precisaria se apressar como louco, o mostruário ainda não estava na mala e ele próprio não se sentia de modo algum particularmente disposto e ágil. E mesmo que pegasse o trem não podia evitar uma explosão do chefe, pois o contínuo da firma tinha aguardado junto ao trem das cinco e fazia muito tempo que havia comunicado sua falta. Era uma criatura do chefe, sem espinha dorsal nem discernimento. E se anunciasse que estava doente? Mas isso seria extremamente penoso e suspeito, pois durante os cinco anos de serviço Gregor ainda não tinha ficado doente uma única vez. Certamente o chefe viria com o médico do seguro de saúde, censuraria os pais por causa do filho preguiçoso e cercearia todas as objeções apoiado no médico, para quem só existem pessoas inteiramente sadias mas refratárias ao trabalho. E neste caso estaria tão errado assim? Com efeito, abstraindo-se uma sonolência realmente supérflua depois do longo sono, Gregor sentia-se muito bem e estava até mesmo com uma fome especialmente forte.
Enquanto refletia sobre tudo isso na maior pressa, sem poder se decidir a deixar a cama — o despertador acabava de dar um quarto para as sete —, bateram cautelosamente na porta junto à cabeceira da sua cama.
Gregor — chamaram; era a mãe. — É um quarto para as sete. Você não queria partir?
Que voz suave! Gregor se assustou quando ouviu sua própria voz responder, era inconfundivelmente a voz antiga, mas nela se imiscuía, como se viesse de baixo, um pipilar irreprimível e doloroso, que só no primeiro momento mantinha literal a clareza das palavras, para destruí-las de tal forma quando acabavam de soar que a pessoa não sabia se havia escutado direito. Gregor quisera responder em minúcia e explicar tudo, mas nestas circunstâncias se limitou a dizer:
Sim, sim, obrigado, mãe, já vou me levantar.
Com certeza por causa da porta de madeira não se podia notar lá fora a alteração na voz de Gregor, pois a mãe se tranquilizou com essa explicação e se afastou arrastando os chinelos. Mas a breve conversa chamou a atenção dos outros membros da família para o fato de que Gregor, contrariando as expectativas, ainda estava em casa — e já o pai batia, fraco mas com o punho, numa porta lateral.
Gregor, Gregor — chamou. — O que está acontecendo?
E depois de um intervalo curto advertiu outra vez, com voz mais profunda:
Gregor, Gregor!
Na outra porta lateral, entretanto, a irmã lamuriava baixinho:
Gregor? Você não está bem? Precisa de alguma coisa?
Gregor respondeu para os dois lados:
Já estou pronto — e através da pronúncia mais cuidadosa e da introdução de longas pausas entre as palavras se esforçou para retirar à sua voz tudo que chamasse a atenção.
O pai também voltou ao seu café da manhã, mas a irmã sussurrou:
Gregor, abra, eu suplico.
Gregor entretanto não pensava absolutamente em abrir, louvando a precaução, adotada nas viagens, de conservar as portas trancadas durante a noite, mesmo em casa.
Queria primeiro levantar-se, calmo e sem perturbação, vestir-se e sobretudo tomar o café da manhã, e só depois pensar no resto, pois percebia muito bem que, na cama, não chegaria, com as suas reflexões, a uma conclusão sensata. Lembrou-se de já ter sentido, várias vezes, alguma dor ligeira na cama, provocada talvez pela posição desajeitada de deitar, mas que depois, ao ficar em pé, mostrava ser pura imaginação, e estava ansioso para ver como iriam gradativamente se dissipar as imagens do dia de hoje. Não duvidava nem um pouco de que a alteração da voz não era outra coisa senão o prenúncio de um severo resfriado, moléstia profissional do caixeiro-viajante.
Afastar a coberta foi muito simples: precisou apenas se inflar um pouco e ela caiu sozinha. Mas daí em diante as coisas ficaram difíceis, em particular porque ele era incomumente largo. Teria necessitado de braços e mãos para se erguer; em vez disso, porém, só tinha as numerosas perninhas que faziam sem cessar os movimentos mais diversos e que, além disso, ele não podia dominar. Se queria dobrar uma, ela era a primeira a se estender; se finalmente conseguia realizar o que queria com essa perna, então todas as outras, nesse ínterim, trabalhavam na mais intensa e dolorosa agitação, como se estivessem soltas.
Não fique inutilmente aí na cama — disse Gregor a si mesmo.
A princípio quis sair da cama com a parte inferior do corpo; mas essa parte de baixo, que ele aliás ainda não tinha visto e da qual não podia fazer uma ideia exata, provou ser difícil demais de mover; ela ia tão devagar; e quando afinal, quase frenético, reunindo todas as suas forças e sem respeitar nada, se atirou para a frente, bateu com violência nos pés da cama, pois tinha escolhido a direção errada; a dor ardida que sentiu ensinou-lhe que justamente a parte inferior do seu corpo era no momento, talvez, a mais sensível de todas.
Tentou por isso tirar em primeiro lugar a parte superior do corpo, voltando com cautela a cabeça para a beira do leito. Conseguiu-o com facilidade: a despeito da sua largura e do seu peso, a massa do corpo acompanhou devagar, finalmente, a virada da cabeça. Mas quando por fim ele a susteve fora da cama, em pleno ar, ficou com medo de avançar mais dessa maneira, pois se enfim se deixasse cair, seria preciso acontecer um milagre para que a cabeça não se ferisse. E precisamente agora não podia, por preço algum, perder a consciência; preferia permanecer na cama.
Entretanto, quando mais uma vez, depois de esforço igual, ficou deitado na mesma posição, suspirando, e viu de novo suas perninhas lutarem umas contra as outras, possivelmente mais que antes, e não encontrou nenhuma possibilidade de imprimir calma e ordem àquele descontrole, disse novamente a si mesmo que era impossível continuar na cama e que o mais razoável seria sacrificar tudo, caso existisse a mínima esperança de com isso se livrar dela. Ao mesmo tempo, porém, não esqueceu de se lembrar, nos intervalos, de que decisões calmas, inclusive as mais calmas, são melhores que as desesperadas. Nesses instantes dirigia o olhar com a maior agudez possível à janela, mas infelizmente só era possível receber pouca confiança e estímulo da visão da névoa matutina que encobria até o outro lado da rua estreita.
Sete horas já — disse a si mesmo quando o despertador bateu outra vez —, sete horas já e ainda essa neblina.
E por um momento permaneceu tranquilamente deitado, com a respiração fraca, como se esperasse talvez do silêncio pleno o retorno das coisas ao seu estado real e natural.
Mas depois disse consigo mesmo:
Antes de soar sete e um quarto preciso de qualquer modo ter deixado completamente a cama. Mesmo porque até então virá alguém da firma perguntar por mim, pois ela abre antes de sete horas.
E pôs-se a balançar o corpo em toda a sua extensão, num ritmo perfeitamente uniforme, para tirá-lo da cama. Deixando-se cair desse modo, a cabeça — que ele queria conservar bem erguida durante a queda — presumivelmente ficaria ilesa. As costas pareciam ser duras; decerto não aconteceria nada a elas caindo no tapete. A maior dúvida vinha da preocupação com o estrondo que iria provocar e que provavelmente causaria, se não susto, pelo menos apreensão atrás de todas as portas. Mas isso era preciso arriscar.
[...]

Franz Kafka, em A metamorfose

domingo, 29 de dezembro de 2024

A lembrança da ternura


Eu estava procurando música boa no rádio e encontrei uma estação que tocava música latina, salsa, sones e coisas assim. Quando acabou a música, começou a falar aquele cara de voz rouca, muito desembaraçado, que conversava sobre tudo, dos seus filhos, da sua bicicleta e do que tinha feito na noite anterior. O cara tinha uma voz potente, com uma dicção vulgar e popular, como se nunca tivesse saído de Centro Havana. Parecia um negro que chega e fala: “Escuta, compadre, tá querendo o quê? Tenho um negocinho pra você.”
Minha mulher e eu ouvíamos e gostávamos. Ninguém mais fazia aquilo no rádio. O cara tocava boa música latina, dizia alguma coisa, esperava um pouco e pronto, botava o disco e vamos lá. Nada de explicar as coisas nem demonstrar sabedoria. Parecia um negro inteligente, e eu sempre fico contente quando encontro negros inteligentes e orgulhosos, e não aqueles outros que não olham você de frente e têm a porra da mentalidade oculta de escravo.
Bom, nós sempre o ouvíamos em casa, quando éramos felizes e vivíamos bem, embora eu ganhasse a vida fazendo um jornalismo insano e covarde, cheio de concessões, em que me censuravam tudo, e isso me deixava angustiado porque cada vez me sentia mais como um mercenário miserável, com minha dose diária de pés na bunda.
Depois ela voltou para Nova York, queria que a vissem e ouvissem. Como todo mundo. Ninguém quer ser condenado à escuridão e ao silêncio. Todos querem ser olhados e ouvidos debaixo dos refletores. E, se possível, comprados, alugados, seduzidos. Escrevi “todos querem”? Não é bem assim. Deveria ter dito: “Todos queremos ser vistos e ouvidos.”
Ela é escultora e pintora. No mundo da arte isto é chamado de “ser bem cotado”. E se supõe que é bom. É muito reconfortante ter uma boa cotação. Enfim, o caso é que ela deu o fora de novo. E eu fui enxotado do jornalismo porque fui ficando cada vez mais visceral. E as pessoas viscerais não são muito apreciadas. Bom, a história é comprida, mas afinal me disseram: “Precisamos é de gente prudente e sensata. Com muito tino. Nada de caras viscerais, porque o país vive um momento muito delicado e fundamental na sua história.”
Na mesma época soube também que o sujeito de voz rouca de aguardente não era negro. Era branco, jovem, universitário e culto. Mas essa imagem lhe caía bem.
Então fiquei muito sozinho. É o que sempre acontece quando você ama sem reservas, como se fosse jovem. Seu amor vai para Nova York por muito tempo — ou seja, some do mapa — e você fica mais solitário e mais perdido que um náufrago no meio da corrente do golfo. Só que um jovem se recupera rápido, mas um sujeito como eu, de quarenta e quatro anos, fica fora do ar por muito mais tempo e pensa: “Ora, que merda, aconteceu de novo. Por que sou tão imbecil?”
Com Jacqueline foi ainda pior, porque ela tem um recorde importante na minha vida de macho: uma vez teve doze orgasmos comigo. Um atrás do outro. Poderia ter mais, mas eu não resisti e gozei. Se eu tivesse esperado mais tempo, ela teria chegado a vinte ou coisa parecida. Em outras vezes teve oito ou dez orgasmos. Mas nunca bateu aquele recorde. Curtíamos muito do sexo, porque éramos felizes. A história dos doze orgasmos não foi uma competição. Foi um jogo. Um bom esporte que mantém você jovem e musculoso. Eu sempre digo Don’t compete. Play.
Bom, de qualquer jeito Jacqueline é fina demais para viver em Havana em 1994. Nasceu em Manhattan, descende de uma mistura de três gerações de ingleses, italianos, espanhóis, franceses e cubanos assentados em Santiago de Cuba e que dali se dispersaram por Nova Orleans e todo o Caribe, até a Venezuela e a Colômbia. Uma família doida. O pai era veterano do Dia D na Normandia. Enfim, um produto muito complicado e pouco assimilável para um macho tropical e visceral como eu. Ela sempre me dizia: “Ah, não tem mais gente fina em Havana. Cada vez as pessoas são mais vulgares, mais toscas, mais malvestidas.” Alguma coisa estava errada em tudo aquilo. Ou a elegância de Jacqueline, ou a vulgaridade das pessoas, ou a minha estupidez, porque eu achava tudo ótimo e me sentia às maravilhas, embora, sem a menor dúvida, a pobreza avançasse a galope.
Quando fiquei sozinho, tinha muito tempo para pensar em tudo isso. Eu morava no melhor lugar possível do mundo: um apartamento no terraço de um velho edifício de oito andares em Centro Havana. De tardezinha preparava um copo de rum bem forte, com gelo, escrevia uns poemas duros (às vezes meio duros, meio melancólicos) que deixava jogados por aí, em qualquer lugar. Ou escrevia cartas. Nessa hora tudo fica dourado e eu olhava ao redor. Ao norte, o Caribe azul, imprevisível, como se a água fosse de ouro e céu. Ao sul e a leste, a cidade velha, arrasada pelo tempo, o salitre, os ventos e os maus-tratos. A oeste, a cidade moderna, os edifícios altos. Cada lugar com sua gente, seus ruídos e sua música. Eu gostava de beber rum sob o crepúsculo dourado e olhar pelas janelas ou ficar um tempo no terraço, olhando a entrada do porto, com seus velhos castelos medievais, de pedra nua, que sob a luz suave da tarde parecem ainda mais belos e eternos. Tudo isso me estimulava a pensar com alguma lucidez. Pensava por que minha vida era assim. Tentava entender alguma coisa. Gosto de me sobrevoar, observar Pedro Juan de longe.
Na verdade esses entardeceres com rum e luz dourada e poemas duros ou melancólicos e cartas aos amigos distantes me davam autoconfiança. Se você tiver ideias próprias — mesmo que sejam só algumas ideias próprias —, precisa entender que vai encontrar continuamente caras fechadas, gente querendo questionar, diminuir você, “fazer compreender” que você não tem nada a dizer, ou que deve evitar aquele fulano porque é louco, ou veado, ou um verme, um vagabundo, outro, porque é punheteiro e voyeur, outro é ladrão, outro, macumbeiro, espírita, maconheiro, a outra é fofoqueira, indecente, puta, sapatona, mal-educada. Eles reduzem o mundo a umas poucas pessoas híbridas, monótonas, tediosas e “perfeitas”. E assim querem transformar você num excluído e num merda. Metem você na seita particular deles para ignorar e suprimir todos os outros. E dizem:
A vida é assim, meu senhor, um processo de seleção e exclusão. Nós temos a verdade. O resto que se dane.” E como passam trinta e cinco anos martelando isto no seu cérebro, quando você fica isolado acha que é o maior e se empobrece porque perde a coisa mais bonita da vida que é desfrutar da diversidade, aceitar que não somos todos iguais e que se fôssemos seria muito chato.
Bom, pois agora o cara de voz rouca de aguardente apareceu de novo no meu rádio, fazendo um pouco de graça, e botou uma orquestra de salseiros de Porto Rico, e eu fiquei ali dançando sozinho um tempo. Até que me perguntei: “E que merda estou fazendo aqui dançando sozinho?” Então desliguei o rádio e fui para a rua. “Vou para Mantilla”, pensei. Dei voltas pelas ruas até conseguir combinar dois ônibus e chegar a Mantilla, que fica nos subúrbios da cidade e me atrai porque lá se veem a terra vermelha e o campo verde e os currais. Nesse bairro tenho alguns amigos. Morei lá muitos anos. Fui à casa de Joseíto, um motorista de táxi que com a crise ficou sem trabalho e ganhava a vida jogando. Estava vivendo do jogo havia dois anos. Em Mantilla havia muitas casas de jogo clandestino. A polícia às vezes dava uma batida e fechava duas ou três, prendia as pessoas durante uns dias e depois soltava. Eu tinha trezentos pesos no bolso, e Joseíto me animou a jogar. Ele estava com dez mil. Jogava pesado. Fomos a uma casa onde ele dava sorte. E deu. Eu perdi meu dinheiro todo em quinze minutos. Não sei por que merda me deixei levar pelo Joseíto. Eu nunca ganhei um centavo no jogo, mas ele começou a ganhar forte desde o começo. Fui embora e quando o deixei ele já estava com uns cinco mil pesos no bolso. Que sorte esse cara tem! Eu, com aquela sorte, viveria muito bem. Quer dizer, na verdade ele vive bem em Mantilla e sempre me diz: “Ah, Pedro Juan, se eu imaginasse como era isso, tinha mandado o táxi à merda muito antes.”
Eu estava puto por causa do dinheiro que perdi. Detesto perder. Fico irritado toda vez que acontece e detestava ver Joseíto ganhando a vida tão fácil enquanto eu, quando abro uma carta ou pego o copo de dados, já estou perdendo. E não sou pé-frio, porque dou sorte para os outros. Sempre. Uma vez comprei um carro velho todo escangalhado e o deixei parado em frente à minha casa durante uma semana, sem sair, porque tinha duas ou três peças estragadas e ia custar caro. Bom, poucos dias depois um galego velho veio me contar que o bairro todo estava jogando no número da placa do carro. 03657. O velho me disse, rindo:
Vamos ter que lhe dar uma comissão, Pedro Juan. Esta noite o açougueiro ganhou três mil pesos com o 57. O que acha?
O que eu acho? Que o safado pelo menos devia me pagar o conserto do carro. Está parado lá há uma semana porque não tenho dinheiro.
Puta merda! Todo mundo ganhando grana com o seu carro, e você comendo mosca.
É isso. Sou um desastre no jogo e em muitas outras coisas.
Quando saí da jogatina onde Jose estava ficando rico, só tinha umas moedas no bolso. O suficiente para o ônibus até Centro Havana. Mas precisava de um gole de rum. Estava emputecido por ter perdido, e começando a ficar agressivo. Um pouco de rum me acalma. “Vou à casa do Rene”, pensei. René (eu o chamo de Rene, na intimidade) é um bom fotógrafo de jornal. Trabalhamos muito juntos. Durante muitos anos. Mas uma vez o pegaram fazendo fotos de nus. Umas simples fotos de umas garotas lindas peladas. Nada de foda, nem chupar a pica de um negro, nada disso. Só nus de umas garotas lindas. Bom, fizeram um escândalo. Ele foi expulso do partido, despedido do jornal e eliminado do Conselho de Jornalistas. O cúmulo foi que até a mulher o expulsou de casa dizendo que “tinha se desencantado” dele. Bom, era assim. Cuba em plena construção do socialismo era de uma pureza virginal, de um delicioso estilo Inquisição. E o sujeito de repente se viu destruído, morando num quartinho em Mantilla, com um filho crápula que vivia de vender maconha mas passava mais tempo na cadeia que no seu quartinho vendendo o bagulho que trazia de Baracoa. Também trazia leite de coco, café e chocolate para vender no mercado negro, mas o dinheiro forte vinha daquela maconha das montanhas, que era da boa, e trazia tanto que vendia barato.
Agora Rene estava sozinho. Seu filho maconheiro tinha ido para Miami numa balsa, durante o êxodo de agosto de 94. E não sabia nada dele.
Não sei onde está. Se conseguiu chegar até Miami, se foi levado para a base naval de Guantánamo. Ou se está no Panamá. Não sei nada. Que se dane, Pedro Juan. Que se dane todo mundo. Quando ele estava aqui, passava o dia inteiro dizendo que se não fosse por ele eu estaria na rua. Que se foda todo mundo! Já levei tantos pés na bunda que não quero mais saber de ninguém.
Começou a chorar. Soluçava. Achei que tinha fumado.
Olha, Rene, eu sou seu amigo. Não enche, compadre. Vamos procurar um pouco de rum por aí.
Na cozinha ainda tem um pouco. Traz pra cá.
Aquilo era raticida. Meia garrafa de veneno para baratas. Tomei um gole.
Rene, pelo amor de Deus, você está se matando com esta aguardente, compadre. Com que porra fazem isto?
Com açúcar, por incrível que pareça. É o vizinho do lado quem faz. Sei que é uma merda, mas já me acostumei. Não acho tão ruim. Quer maconha? Tem uns canutos naquela gaveta.
E por que fala assim? Desde quando virou galego, compadre?
Aprendi das meninas que vêm aqui. São tão idiotas que falam igual aos espanhóis que andam com elas. Dizem “dá-me fogo”, “gosto desse rapazola”, “estamos a conversar”. Falta um pedaço no cérebro delas. E no meu também.
Pois me falta um pedaço de cérebro e acabo falando igual a todos esses galegos e suas negras putas.
Acendemos os baseados e ficamos em silêncio. Eu fechei os olhos para saborear bem. A maconha de Baracoa tem um aroma e um sabor como nenhuma outra. Mas é forte. Não traguei muito. Estava pensando que devia ir até Baracoa e trazer uns pacotes. O filho do Rene também trazia leite de coco, café e chocolate, porque o cheiro do café mata o da maconha. Eu podia fazer a mesma coisa. E ganharia uns pesos. Estava pensando nisso quando sinto que Rene se levanta, pega um álbum de fotos de uma gaveta e me entrega.
Olha isto, Pedro Juan.
Já estava com a língua meio enrolada por causa da bebida e da maconha. Caiu de novo na poltrona, acabrunhado e desiludido. Eu precisava dar o fora. Naquele lugar só se respirava desalento e merda. E isso é contagioso. É como respirar um gás venenoso que entra no sangue e asfixia. Eu não podia continuar conversando com Rene! Precisava de um parceiro durão. Um sujeito que me tirasse do fundo do poço e de todas aquelas lembranças de felicidade. Eu precisava me endurecer feito uma pedra.
Abri o álbum. Era uma coleção de mulheres peladas. Havia pelo menos trezentas. Em todas as posições. Negras, mulatas, brancas, morenas, louras. Alegres, sérias. Algumas estavam em pares, beijando-se ou abraçando-se ou bolinando os peitos.
O que é isto, Rene?
Garotas de programa, compadre. Um catálogo de putas. Muitos motoristas de táxi têm essas fotos para mostrar aos turistas. Assim fazem publicidade do produto, o turista escolhe e eles o levam para o lugar certo.
Então, você é o fotógrafo das estrelas? Rene, o fotógrafo estelar!
Rene, o fotógrafo das putas! Acabaram comigo, compadre. Virei um merda.
Não enche, Rene. Se estiver ganhando uma grana boa com isso…
Você sabe que sou um artista. Isto é uma merda, rapaz.
Olha, você é que está acabando comigo. Deixa de ser veado. Aproveita essas putas. Se fosse eu, fazia essas fotos de merda para os catálogos, mas também fazia uns bons nus, impressionantes em suas camas, em seus quartos, em sua atmosfera. Tudo em branco e preto. Daqui a alguns anos montava uma tremenda exposição: “As putas de Havana”, lançava um ensaio que nem o Sebastião Salgado pode fazer.
Neste país? As putas de Havana?
Neste país ou em qualquer outro. Trabalha e depois arranja um lugar para expor. Afinal, se você está na merda, sai por aí, vai para qualquer outro lugar. Mas começa logo a agir e não fode mais a sua vida largado no abandono deste quarto, velho.
Bom... não é má ideia.
Claro. Mãos à obra. E você vai ver que sai desse buraco. Escuta, o seu filho tinha sócios em Baracoa?
O que você quer fazer?
Trazer um pouco de maconha pra cá. Estou fodido, Rene. Tenho que arrumar uns pesos.
Se vai pra lá, procura Ramoncito El Loco. Ele mora na saída de Baracoa, em La Farola. Até o gato o conhece lá. Diga que você é meu sócio e que o negócio é pra mim. Assim ele faz preço. Mas não aparece muito ao lado dele porque todo mundo sabe que aquele velho sempre viveu de maconha, vão fichar você.
Está bem, meu irmão. Cuide-se. A gente se vê.Eu precisava ir rápido para Baracoa. Além da transação, quem sabe eu encontrava uma dessas índias bundudas que fazem você se sentir o macho mais gostoso do mundo. Esses índios quase não tinham se misturado com os brancos nem com os negros. Valia a pena a viagem. Aquele pessoal é diferente.

Pedro Juan Gutiérrez, em Trilogia suja de Havana

Ares de Bolero | Léa Freire e banda Geleia Solar

1553 – Potosí

O alcaide e o galã

Não dorme sozinha – diz alguém. – Dorme com esse aí.
E o apontam. O preferido da moça é um soldado de boa postura e com mel nos olhos e na voz. Dom Diego mastiga o despeito e resolve esperar.
A oportunidade chega uma noite, em uma das casas de jogo de Potosí, vinda na mão de um frade que tinha jogado o dinheiro das esmolas. Um mago dos baralhos está recolhendo os frutos de seu ofício quando o padre depenado deixa cair um braço, tira um punhal da batina e crava a mão dele no tapete. O galã, que anda por ali por pura curiosidade, se mete na briga.
Vão todos presos.
Toca ao alcaide, dom Diego, decidir. Encara o galã e oferece:
Multa ou chibata.
Multa, não posso pagar. Sou pobre, mas fidalgo de sangue puro e solar conhecido.
Doze chibatadas para este príncipe – decide o alcaide.
A um fidalgo espanhol! protesta o soldado.
Conte-me isso pela outra orelha, porque esta não te crê – diz dom Diego e senta-se para desfrutar as chibatadas.
Quando o desamarram, o castigado amante ameaça:
Em vossas orelhas, senhor alcaide, cobrarei vingança. As empresto a vós por um ano. Podeis usá-las por um ano, mas são minhas.

Eduardo Galeano, em Os Nascimentos

Gameleira

Muito longe do arabesco,
do arlequim e da moda,
à sombra da gameleira
que a previsão já recorta,
naquelas terras perdidas
recuperadas na troca,
vagamos por um caminho:
Mistura de ida e volta.
Naquelas terras estanques
onde a razão era morta:
Araçá, caju do brejo,
mistura de vida e volta.
Mistura de teu soluço
com a nossa ânsia torta:
No ventre da gameleira
a vida era tida morta.
A vida era tida longe
como um sol que não acorda:
No ventre da gameleira
volta e vida, ida e volta.

Cacaso, em Poesia completa 

Téo & O Mini Mundo, de Caetano Cury

Do sobrenatural

Vozes ciciando nas frinchas... vozes de afogados soluçando nas ondas... vozes noturnas, chamando... pancadas no quarto ao lado, por detrás dos móveis, debaixo da cama... gritos de assassinados ecoando ainda nos corredores malditos... Qual nada! O que mais amedronta é o pranto dos recém-nascidos: aí é que está a verdadeira voz do outro mundo.

Mário Quintana, em Sapato Florido

Don Quixote de La Mancha | Livro Primeiro



CAPÍTULO I.
Que trata da condição e exercício do famoso fidalgo D. Quixote de La Mancha.

Num lugar da Mancha, de cujo nome não quero lembrar-me, vivia, não há muito, um fidalgo, dos de lança em cabido, adarga antiga, rocim fraco, e galgo corredor.
Passadio, olha seu tanto mais de vaca do que de carneiro, as mais das ceias restos da carne picados com sua cebola e vinagre, aos sábados outros sobejos ainda somenos, lentilhas às sextas-feiras, algum pombito de crescença aos domingos, consumiam três quartos do seu haver. O remanescente, levavam-no saio de belarte, calças de veludo para as festas, com seus pantufos do mesmo; e para os dias de semana o seu bellori do mais fino.
Tinha em casa uma ama que passava dos quarenta, uma sobrinha que não chegava aos vinte, e um moço da poisada e de porta a fora, tanto para o trato do rocim, como para o da fazenda.
Orçava na idade o nosso fidalgo pelos cinquenta anos. Era rijo de compleição, seco de carnes, enxuto de rosto, madrugador, e amigo da caça.
Querem dizer que tinha o sobrenome de Quijada ou Quesada (que nisto discrepam algum tanto os autores que tratam da matéria), ainda que por conjecturas verossímeis se deixa entender que se chamava Quijana. Isto porém pouco faz para a nossa história; basta que, no que tivermos de contar, não nos desviemos da verdade nem um til.
É pois de saber que este fidalgo, nos intervalos que tinha de ócio (que eram os mais do ano) se dava a ler livros de cavalaria, com tanta afeição e gosto, que se esqueceu quase de todo do exercício da caça, e até da administração dos seus bens; e a tanto chegou a sua curiosidade e desatino neste ponto, que vendeu muitas courelas de semeadura para comprar livros de cavalarias que ler; com o que juntou em casa quantos pôde apanhar daquele gênero.
Dentre todos eles, nenhuns lhe pareciam tão bem como os compostos pelo famoso Feliciano da Silva, porque a clareza da sua prosa e aquelas intrincadas razões suas lhe pareciam de pérolas; e mais, quando chegava a ler aqueles requebros e cartas de desafio, onde em muitas partes achava escrito: a razão da sem-razão que à minha razão se faz, de tal maneira a minha razão enfraquece, que com razão me queixo da vossa formosura; e também quando lia: os altos céus que de vossa divindade divinamente com as estrelas vos fortificam, e vos fazem merecedora do merecimento que merece a vossa grandeza.
Com estas razões perdia o pobre cavaleiro o juízo; e desvelava-se por entendê-las, e desentranhar-lhes o sentido, que nem o próprio Aristóteles o lograria, ainda que só para isso ressuscitara. Não se entendia lá muito bem com as feridas que D. Belianis dava e recebia, por imaginar que, por grandes facultativos que o tivessem curado, não deixaria de ter o rosto e todo o corpo cheio de cicatrizes e costuras. Porém, contudo louvava no autor aquele acabar o seu livro com a promessa daquela inacabável aventura; e muitas vezes lhe veio desejo de pegar na pena, e finalizar ele a coisa ao pé da letra, como ali se promete e sem dúvida alguma o fizera, e até o sacara à luz, se outros maiores e contínuos pensamentos lho não estorvaram.
Teve muitas vezes testilhas com o cura do seu lugar (que era homem douto, graduado em Siguença) sobre qual tinha sido melhor cavaleiro, se Palmeirim de Inglaterra, ou Amadis de Gaula. Mestre Nicolau, barbeiro do mesmo povo, dizia que nenhum chegava ao “Cavaleiro do Febo”; e que, se algum se lhe podia comparar, era D. Galaor, irmão do Amadis de Gaula, o qual era para tudo, e não cavaleiro melindroso nem tão chorão como seu irmão, e que em pontos de valentia lhe não ficava atrás.
Em suma, tanto naquelas leituras se enfrascou, que as noites se lhe passavam a ler desde o sol posto até à alvorada, e os dias, desde o amanhecer até fim da tarde. E assim, do pouco dormir e do muito ler se lhe secou o cérebro, de maneira que chegou a perder o juízo.
Encheu-se-lhe a fantasia de tudo que achava nos livros, assim de encantamentos, como pendências, batalhas, desafios, feridas, requebros, amores, tormentas, e disparates impossíveis; e assentou-se-lhe de tal modo na imaginação ser verdade toda aquela máquina de sonhadas invenções que lia, que para ele não havia história mais certa no mundo.
Dizia ele que Cid Rui Dias fora mui bom cavaleiro; porém que não tinha que ver com o Cavaleiro da Ardente Espada, que de um só revés tinha partido pelo meio a dois feros e descomunais gigantes.
Melhor estava com Bernardo del Cárpio, porque em Roncesvales havia morto a Roldão o encantado, valendo-se da indústria de Hércules quando afogou entre os braços a Anteu, filho da Terra.
Dizia muito bem do gigante Morgante, porque, com ser daquela geração dos gigantes, que todos são soberbos e descomedidos, só ele era afável e bem criado.
Porém sobre todos estava bem com Reinaldo de Montalvão, especialmente quando o via sair do seu castelo, e roubar quantos topava, e quando em Alende se apossou daquele ídolo de Mafoma, que era de ouro maciço, segundo refere a sua história.
Para poder pregar um bom par de pontapés no traidor Galalão, dera ele a ama, e de crescenças a sobrinha.
Afinal, rematado já de todo o juízo, deu no mais estranho pensamento em que nunca jamais caiu louco algum do mundo; e foi: parecer-lhe convinhável e necessário, assim para aumento de sua honra própria, como para proveito da república, fazer-se cavaleiro andante, e ir-se por todo o mundo, com as suas armas e cavalo, à cata de aventuras, e exercitar-se em tudo em que tinha lido se exercitavam os da andante cavalaria, desfazendo todo o gênero de agravos, e pondo-se em ocasiões e perigos, donde, levando-os a cabo, cobrasse perpétuo nome e fama.
Já o coitado se imaginava coroado pelo valor do seu braço, pelo menos com o império de Trapizonda; e assim, com estes pensamentos de tanto gosto, levado do enlevo que neles trazia, se deu pressa a pôr por obra o que desejava; e a primeira coisa que fez foi limpar umas armas que tinham sido dos seus bisavós, e que, desgastadas de ferrugem, jaziam para um canto esquecidas havia séculos. Limpou-as e consertou-as o melhor que pôde; porém viu que tinham uma grande falta, que era não terem celada de encaixe, senão só morrião simples. A isto porém remediou a sua habilidade: arranjou com papelões uma espécie de meia celada, que encaixava com o morrião, representando celada inteira.
Verdade é que, para experimentar se lhe saíra forte e poderia com uma cutilada, sacou da espada e lhe atirou duas. Com a primeira para logo desfez o que lhe tinha levado uma semana a arranjar; não deixou de parecer-lhe mal a facilidade com que dera cabo dela. Para forrar-se a outra que tal, tornou a corregê-la, metendo-lhe por dentro umas barras de ferro, por modo que se deu por satisfeito com a sua fortaleza; e sem querer aventurar-se a mais experiências, a despachou e teve por celada de encaixe das mais finas.
Foi-se logo a ver o seu rocim; e dado tivesse mais quartos que um real, e mais tachas que o próprio cavalo de Gonela, que tantum pellis et ossa fuit, pareceu-lhe que nem o Bucéfalo de Alexandre nem o Babieca do Cid tinham que ver com ele.
Quatro dias levou a cismar que nome lhe poria, porque (segundo ele a si próprio se dizia) não era razão que um cavalo de tão famoso cavaleiro, e ele mesmo de si tão bom, ficasse sem nome aparatoso. Barafustava por lhe dar um, que declarasse o que fora antes de pertencer a cavaleiro andante; pois era coisa muito de razão que, mudando o seu senhor de estado, mudasse ele também de nome, e o cobrasse famoso e de estrondo, como convinha à nova ordem e ao exercício que já professava; e assim, depois de escrever, riscar, e trocar muitos nomes, ajuntou, desfez, e refez na própria lembrança outros, até que acertou em o apelidar Rocinante, nome (em seu conceito) alto, sonoro, e significativo do que havia sido quando não passava de rocim, antes do que ao presente era, como quem dissera que era o primeiro de todos os rocins do mundo.
Posto a seu cavalo nome tanto a contento, quis também arranjar outro para si; nisso gastou mais oito dias; e ao cabo desparou em chamar-se D. Quixote; do que (segundo dito fica) tomaram ocasião alguns autores desta verdadeira história para assentarem que se devia chamar Quijada e não Quesada, como outros quiseram dizer.
Recordando-se porém de que o valoroso Amadis, não contente com chamar-se Amadis sem mais nada, acrescentou o nome com o do seu reino e pátria, para a tornar famosa, e se nomeou Amadis de Gaula, assim quis também ele, como bom cavaleiro, acrescentar ao seu nome o da sua terra, e chamar-se D. Quixote de la Mancha; com o que (a seu parecer) declarava muito ao vivo sua linhagem e pátria, a quem dava honra com tomar dela o sobrenome.
Assim, limpas as suas armas, feita do morrião celada, posto o nome ao rocim, e confirmando-se a si próprio, julgou-se inteirado de que nada mais lhe faltava, senão buscar uma dama de quem se enamorar; que andante cavaleiro sem amores era árvore sem folhas nem frutos, e corpo sem alma.
Dizia ele entre si:
Demos que, por mal dos meus pecados (ou por minha boa sorte), me encontro por aí com algum gigante como de ordinário acontece aos cavaleiros andantes, e o derribo de um recontro, ou o parto em dois, ou finalmente o venço e rendo; não será bem ter a quem mandá-lo apresentar, para que ele entre, e se lance de joelhos aos pés da minha preciosa senhora e lhe diga com voz humilde e rendida: “Eu, senhora, sou o gigante Caraculiambro, senhor da ilha Malindrânia, a quem venceu em singular batalha o jamais dignamente louvado cavaleiro D. Quixote de la Mancha, o qual me ordenou me apresentasse perante Vossa Mercê, para que a vossa grandeza disponha de mim como for servida”?
Como se alegrou o nosso bom cavaleiro de ter engenhado este discurso, e especialmente quando atinou com quem pudesse chamar a sua dama!
Foi o caso, conforme se crê, que, num lugar perto do seu, havia certa moça lavradora de muito bom parecer, de quem ele em tempos andara enamorado, ainda que (segundo se entende) ela nunca o soube, nem de tal desconfiou. Chamava-se Aldonça Lourenço; a esta é que a ele pareceu bem dar o título de senhora dos seus pensamentos; e buscando-lhe nome que não desdissesse muito do que ela tinha, e ao mesmo tempo desse seus ares de princesa e grã-senhora, veio a chamá-la Dulcinéia del Toboso, por ser Toboso a aldeia da sua naturalidade; nome este (em seu entender) músico, peregrino, e significativo, como todos os mais que a si e às suas coisas já havia posto.

Miguel de Cervantes, em Don Quixote de La Mancha