domingo, 29 de dezembro de 2024

A lembrança da ternura


Eu estava procurando música boa no rádio e encontrei uma estação que tocava música latina, salsa, sones e coisas assim. Quando acabou a música, começou a falar aquele cara de voz rouca, muito desembaraçado, que conversava sobre tudo, dos seus filhos, da sua bicicleta e do que tinha feito na noite anterior. O cara tinha uma voz potente, com uma dicção vulgar e popular, como se nunca tivesse saído de Centro Havana. Parecia um negro que chega e fala: “Escuta, compadre, tá querendo o quê? Tenho um negocinho pra você.”
Minha mulher e eu ouvíamos e gostávamos. Ninguém mais fazia aquilo no rádio. O cara tocava boa música latina, dizia alguma coisa, esperava um pouco e pronto, botava o disco e vamos lá. Nada de explicar as coisas nem demonstrar sabedoria. Parecia um negro inteligente, e eu sempre fico contente quando encontro negros inteligentes e orgulhosos, e não aqueles outros que não olham você de frente e têm a porra da mentalidade oculta de escravo.
Bom, nós sempre o ouvíamos em casa, quando éramos felizes e vivíamos bem, embora eu ganhasse a vida fazendo um jornalismo insano e covarde, cheio de concessões, em que me censuravam tudo, e isso me deixava angustiado porque cada vez me sentia mais como um mercenário miserável, com minha dose diária de pés na bunda.
Depois ela voltou para Nova York, queria que a vissem e ouvissem. Como todo mundo. Ninguém quer ser condenado à escuridão e ao silêncio. Todos querem ser olhados e ouvidos debaixo dos refletores. E, se possível, comprados, alugados, seduzidos. Escrevi “todos querem”? Não é bem assim. Deveria ter dito: “Todos queremos ser vistos e ouvidos.”
Ela é escultora e pintora. No mundo da arte isto é chamado de “ser bem cotado”. E se supõe que é bom. É muito reconfortante ter uma boa cotação. Enfim, o caso é que ela deu o fora de novo. E eu fui enxotado do jornalismo porque fui ficando cada vez mais visceral. E as pessoas viscerais não são muito apreciadas. Bom, a história é comprida, mas afinal me disseram: “Precisamos é de gente prudente e sensata. Com muito tino. Nada de caras viscerais, porque o país vive um momento muito delicado e fundamental na sua história.”
Na mesma época soube também que o sujeito de voz rouca de aguardente não era negro. Era branco, jovem, universitário e culto. Mas essa imagem lhe caía bem.
Então fiquei muito sozinho. É o que sempre acontece quando você ama sem reservas, como se fosse jovem. Seu amor vai para Nova York por muito tempo — ou seja, some do mapa — e você fica mais solitário e mais perdido que um náufrago no meio da corrente do golfo. Só que um jovem se recupera rápido, mas um sujeito como eu, de quarenta e quatro anos, fica fora do ar por muito mais tempo e pensa: “Ora, que merda, aconteceu de novo. Por que sou tão imbecil?”
Com Jacqueline foi ainda pior, porque ela tem um recorde importante na minha vida de macho: uma vez teve doze orgasmos comigo. Um atrás do outro. Poderia ter mais, mas eu não resisti e gozei. Se eu tivesse esperado mais tempo, ela teria chegado a vinte ou coisa parecida. Em outras vezes teve oito ou dez orgasmos. Mas nunca bateu aquele recorde. Curtíamos muito do sexo, porque éramos felizes. A história dos doze orgasmos não foi uma competição. Foi um jogo. Um bom esporte que mantém você jovem e musculoso. Eu sempre digo Don’t compete. Play.
Bom, de qualquer jeito Jacqueline é fina demais para viver em Havana em 1994. Nasceu em Manhattan, descende de uma mistura de três gerações de ingleses, italianos, espanhóis, franceses e cubanos assentados em Santiago de Cuba e que dali se dispersaram por Nova Orleans e todo o Caribe, até a Venezuela e a Colômbia. Uma família doida. O pai era veterano do Dia D na Normandia. Enfim, um produto muito complicado e pouco assimilável para um macho tropical e visceral como eu. Ela sempre me dizia: “Ah, não tem mais gente fina em Havana. Cada vez as pessoas são mais vulgares, mais toscas, mais malvestidas.” Alguma coisa estava errada em tudo aquilo. Ou a elegância de Jacqueline, ou a vulgaridade das pessoas, ou a minha estupidez, porque eu achava tudo ótimo e me sentia às maravilhas, embora, sem a menor dúvida, a pobreza avançasse a galope.
Quando fiquei sozinho, tinha muito tempo para pensar em tudo isso. Eu morava no melhor lugar possível do mundo: um apartamento no terraço de um velho edifício de oito andares em Centro Havana. De tardezinha preparava um copo de rum bem forte, com gelo, escrevia uns poemas duros (às vezes meio duros, meio melancólicos) que deixava jogados por aí, em qualquer lugar. Ou escrevia cartas. Nessa hora tudo fica dourado e eu olhava ao redor. Ao norte, o Caribe azul, imprevisível, como se a água fosse de ouro e céu. Ao sul e a leste, a cidade velha, arrasada pelo tempo, o salitre, os ventos e os maus-tratos. A oeste, a cidade moderna, os edifícios altos. Cada lugar com sua gente, seus ruídos e sua música. Eu gostava de beber rum sob o crepúsculo dourado e olhar pelas janelas ou ficar um tempo no terraço, olhando a entrada do porto, com seus velhos castelos medievais, de pedra nua, que sob a luz suave da tarde parecem ainda mais belos e eternos. Tudo isso me estimulava a pensar com alguma lucidez. Pensava por que minha vida era assim. Tentava entender alguma coisa. Gosto de me sobrevoar, observar Pedro Juan de longe.
Na verdade esses entardeceres com rum e luz dourada e poemas duros ou melancólicos e cartas aos amigos distantes me davam autoconfiança. Se você tiver ideias próprias — mesmo que sejam só algumas ideias próprias —, precisa entender que vai encontrar continuamente caras fechadas, gente querendo questionar, diminuir você, “fazer compreender” que você não tem nada a dizer, ou que deve evitar aquele fulano porque é louco, ou veado, ou um verme, um vagabundo, outro, porque é punheteiro e voyeur, outro é ladrão, outro, macumbeiro, espírita, maconheiro, a outra é fofoqueira, indecente, puta, sapatona, mal-educada. Eles reduzem o mundo a umas poucas pessoas híbridas, monótonas, tediosas e “perfeitas”. E assim querem transformar você num excluído e num merda. Metem você na seita particular deles para ignorar e suprimir todos os outros. E dizem:
A vida é assim, meu senhor, um processo de seleção e exclusão. Nós temos a verdade. O resto que se dane.” E como passam trinta e cinco anos martelando isto no seu cérebro, quando você fica isolado acha que é o maior e se empobrece porque perde a coisa mais bonita da vida que é desfrutar da diversidade, aceitar que não somos todos iguais e que se fôssemos seria muito chato.
Bom, pois agora o cara de voz rouca de aguardente apareceu de novo no meu rádio, fazendo um pouco de graça, e botou uma orquestra de salseiros de Porto Rico, e eu fiquei ali dançando sozinho um tempo. Até que me perguntei: “E que merda estou fazendo aqui dançando sozinho?” Então desliguei o rádio e fui para a rua. “Vou para Mantilla”, pensei. Dei voltas pelas ruas até conseguir combinar dois ônibus e chegar a Mantilla, que fica nos subúrbios da cidade e me atrai porque lá se veem a terra vermelha e o campo verde e os currais. Nesse bairro tenho alguns amigos. Morei lá muitos anos. Fui à casa de Joseíto, um motorista de táxi que com a crise ficou sem trabalho e ganhava a vida jogando. Estava vivendo do jogo havia dois anos. Em Mantilla havia muitas casas de jogo clandestino. A polícia às vezes dava uma batida e fechava duas ou três, prendia as pessoas durante uns dias e depois soltava. Eu tinha trezentos pesos no bolso, e Joseíto me animou a jogar. Ele estava com dez mil. Jogava pesado. Fomos a uma casa onde ele dava sorte. E deu. Eu perdi meu dinheiro todo em quinze minutos. Não sei por que merda me deixei levar pelo Joseíto. Eu nunca ganhei um centavo no jogo, mas ele começou a ganhar forte desde o começo. Fui embora e quando o deixei ele já estava com uns cinco mil pesos no bolso. Que sorte esse cara tem! Eu, com aquela sorte, viveria muito bem. Quer dizer, na verdade ele vive bem em Mantilla e sempre me diz: “Ah, Pedro Juan, se eu imaginasse como era isso, tinha mandado o táxi à merda muito antes.”
Eu estava puto por causa do dinheiro que perdi. Detesto perder. Fico irritado toda vez que acontece e detestava ver Joseíto ganhando a vida tão fácil enquanto eu, quando abro uma carta ou pego o copo de dados, já estou perdendo. E não sou pé-frio, porque dou sorte para os outros. Sempre. Uma vez comprei um carro velho todo escangalhado e o deixei parado em frente à minha casa durante uma semana, sem sair, porque tinha duas ou três peças estragadas e ia custar caro. Bom, poucos dias depois um galego velho veio me contar que o bairro todo estava jogando no número da placa do carro. 03657. O velho me disse, rindo:
Vamos ter que lhe dar uma comissão, Pedro Juan. Esta noite o açougueiro ganhou três mil pesos com o 57. O que acha?
O que eu acho? Que o safado pelo menos devia me pagar o conserto do carro. Está parado lá há uma semana porque não tenho dinheiro.
Puta merda! Todo mundo ganhando grana com o seu carro, e você comendo mosca.
É isso. Sou um desastre no jogo e em muitas outras coisas.
Quando saí da jogatina onde Jose estava ficando rico, só tinha umas moedas no bolso. O suficiente para o ônibus até Centro Havana. Mas precisava de um gole de rum. Estava emputecido por ter perdido, e começando a ficar agressivo. Um pouco de rum me acalma. “Vou à casa do Rene”, pensei. René (eu o chamo de Rene, na intimidade) é um bom fotógrafo de jornal. Trabalhamos muito juntos. Durante muitos anos. Mas uma vez o pegaram fazendo fotos de nus. Umas simples fotos de umas garotas lindas peladas. Nada de foda, nem chupar a pica de um negro, nada disso. Só nus de umas garotas lindas. Bom, fizeram um escândalo. Ele foi expulso do partido, despedido do jornal e eliminado do Conselho de Jornalistas. O cúmulo foi que até a mulher o expulsou de casa dizendo que “tinha se desencantado” dele. Bom, era assim. Cuba em plena construção do socialismo era de uma pureza virginal, de um delicioso estilo Inquisição. E o sujeito de repente se viu destruído, morando num quartinho em Mantilla, com um filho crápula que vivia de vender maconha mas passava mais tempo na cadeia que no seu quartinho vendendo o bagulho que trazia de Baracoa. Também trazia leite de coco, café e chocolate para vender no mercado negro, mas o dinheiro forte vinha daquela maconha das montanhas, que era da boa, e trazia tanto que vendia barato.
Agora Rene estava sozinho. Seu filho maconheiro tinha ido para Miami numa balsa, durante o êxodo de agosto de 94. E não sabia nada dele.
Não sei onde está. Se conseguiu chegar até Miami, se foi levado para a base naval de Guantánamo. Ou se está no Panamá. Não sei nada. Que se dane, Pedro Juan. Que se dane todo mundo. Quando ele estava aqui, passava o dia inteiro dizendo que se não fosse por ele eu estaria na rua. Que se foda todo mundo! Já levei tantos pés na bunda que não quero mais saber de ninguém.
Começou a chorar. Soluçava. Achei que tinha fumado.
Olha, Rene, eu sou seu amigo. Não enche, compadre. Vamos procurar um pouco de rum por aí.
Na cozinha ainda tem um pouco. Traz pra cá.
Aquilo era raticida. Meia garrafa de veneno para baratas. Tomei um gole.
Rene, pelo amor de Deus, você está se matando com esta aguardente, compadre. Com que porra fazem isto?
Com açúcar, por incrível que pareça. É o vizinho do lado quem faz. Sei que é uma merda, mas já me acostumei. Não acho tão ruim. Quer maconha? Tem uns canutos naquela gaveta.
E por que fala assim? Desde quando virou galego, compadre?
Aprendi das meninas que vêm aqui. São tão idiotas que falam igual aos espanhóis que andam com elas. Dizem “dá-me fogo”, “gosto desse rapazola”, “estamos a conversar”. Falta um pedaço no cérebro delas. E no meu também.
Pois me falta um pedaço de cérebro e acabo falando igual a todos esses galegos e suas negras putas.
Acendemos os baseados e ficamos em silêncio. Eu fechei os olhos para saborear bem. A maconha de Baracoa tem um aroma e um sabor como nenhuma outra. Mas é forte. Não traguei muito. Estava pensando que devia ir até Baracoa e trazer uns pacotes. O filho do Rene também trazia leite de coco, café e chocolate, porque o cheiro do café mata o da maconha. Eu podia fazer a mesma coisa. E ganharia uns pesos. Estava pensando nisso quando sinto que Rene se levanta, pega um álbum de fotos de uma gaveta e me entrega.
Olha isto, Pedro Juan.
Já estava com a língua meio enrolada por causa da bebida e da maconha. Caiu de novo na poltrona, acabrunhado e desiludido. Eu precisava dar o fora. Naquele lugar só se respirava desalento e merda. E isso é contagioso. É como respirar um gás venenoso que entra no sangue e asfixia. Eu não podia continuar conversando com Rene! Precisava de um parceiro durão. Um sujeito que me tirasse do fundo do poço e de todas aquelas lembranças de felicidade. Eu precisava me endurecer feito uma pedra.
Abri o álbum. Era uma coleção de mulheres peladas. Havia pelo menos trezentas. Em todas as posições. Negras, mulatas, brancas, morenas, louras. Alegres, sérias. Algumas estavam em pares, beijando-se ou abraçando-se ou bolinando os peitos.
O que é isto, Rene?
Garotas de programa, compadre. Um catálogo de putas. Muitos motoristas de táxi têm essas fotos para mostrar aos turistas. Assim fazem publicidade do produto, o turista escolhe e eles o levam para o lugar certo.
Então, você é o fotógrafo das estrelas? Rene, o fotógrafo estelar!
Rene, o fotógrafo das putas! Acabaram comigo, compadre. Virei um merda.
Não enche, Rene. Se estiver ganhando uma grana boa com isso…
Você sabe que sou um artista. Isto é uma merda, rapaz.
Olha, você é que está acabando comigo. Deixa de ser veado. Aproveita essas putas. Se fosse eu, fazia essas fotos de merda para os catálogos, mas também fazia uns bons nus, impressionantes em suas camas, em seus quartos, em sua atmosfera. Tudo em branco e preto. Daqui a alguns anos montava uma tremenda exposição: “As putas de Havana”, lançava um ensaio que nem o Sebastião Salgado pode fazer.
Neste país? As putas de Havana?
Neste país ou em qualquer outro. Trabalha e depois arranja um lugar para expor. Afinal, se você está na merda, sai por aí, vai para qualquer outro lugar. Mas começa logo a agir e não fode mais a sua vida largado no abandono deste quarto, velho.
Bom... não é má ideia.
Claro. Mãos à obra. E você vai ver que sai desse buraco. Escuta, o seu filho tinha sócios em Baracoa?
O que você quer fazer?
Trazer um pouco de maconha pra cá. Estou fodido, Rene. Tenho que arrumar uns pesos.
Se vai pra lá, procura Ramoncito El Loco. Ele mora na saída de Baracoa, em La Farola. Até o gato o conhece lá. Diga que você é meu sócio e que o negócio é pra mim. Assim ele faz preço. Mas não aparece muito ao lado dele porque todo mundo sabe que aquele velho sempre viveu de maconha, vão fichar você.
Está bem, meu irmão. Cuide-se. A gente se vê.Eu precisava ir rápido para Baracoa. Além da transação, quem sabe eu encontrava uma dessas índias bundudas que fazem você se sentir o macho mais gostoso do mundo. Esses índios quase não tinham se misturado com os brancos nem com os negros. Valia a pena a viagem. Aquele pessoal é diferente.

Pedro Juan Gutiérrez, em Trilogia suja de Havana

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