segunda-feira, 26 de agosto de 2024

Quanto Tempo Demora Um Mês | Biquíni

Caderno de Aprendiz – 3

Eu só faço travessuras com palavras.
Não sei nem me pular quanto mais obstáculos.

Manoel de Barros, em Menino do mato

Coach

Piratas do Tietê, de Laerte

Propósito

Tudo — inclusive o cavalo e a videira — existe para uma finalidade. Por que isso o surpreende? Até o sol e os deuses dirão: “Tenho um propósito.” Para qual você nasceu? Para gozar dos prazeres? Veja se essa resposta resiste a questionamentos.

Marco Aurélio, em Meditações

Profeta urbano

Era a imagem de uma ruína do que antes devia ter sido um monumento de homem e portava as clássicas barbas do profeta.
Pois é – disse, limpando a boca com um gesto que acabou por levar seu dedo em riste em direção ao Corcovado [e no ímpeto quase cai de tão bêbado que estava]. – Pois é. Fica lá ele, coitado, o dia inteiro de braços abertos abençoando a cidade... [seu olhar dardejou em torno], abençoando a cidade que nem liga mais para ele. Eu, Mansueto, filho de Anacleto, digo isso porque sei. Eu, Mansueto, sei que aquele homem lá, que por sinal não é homem não é nada, é Jesus Cristo, filho de Maria, rei dos reis, tábua da salvação, esperança do mundo, conforto dos aflitos, pai dos pecadores [a partir daí sua voz embargou-se e ele começou a choramingar] – eu, Mansueto, sei que aquele homem lá está sozinho, está sozinho no alto daquela montanha também chamada Corcovado. Eu, Mansueto, sei que toda santa noite aquele homem lá derrama as suas santas lágrimas de pena por esta pobre cidade mergulhada no crime e no pecado...
Foi deste ponto em diante que eu tirei a caneta e comecei a anotar rápido o teor das lamentações do profeta urbano.
Porque em cada coração habita a luxúria, a maldade e a sede de ouro! Porque todos só pensam no poder e no luxo! Porque cada um só quer ter o seu rabo-de-peixe [o profeta estava um pouco atrasado no tempo diante da atual mania dos Mercedes] e o povo nem sequer tem peixe para comer... [aí os soluços embargaram-lhe a voz e ele teve de parar para enxugar os olhos com a manga do paletó em farrapos].
E então exclamou com os punhos cerrados na direção do Cristo:
Por que, Senhor, pergunto eu, Mansueto, filho de Anacleto, por que continuas abençoando esta cidade, de vício e abandonas o pobre ao seu triste destino de comer o resto dos ricos? Por que ficas de braços abertos feito um pateta em vez de lançar os vossos exércitos conta o fariseu – feito o seu Guimarães lá do armazém que só fia se apalpar a mulher dos outros. Eu sei porque eu vi. Português descarado! Ainda hei de fazer o mesmo com a tua mulher, ouviu! que embora seja uma santa senhora há de pagar pelo pecador!
Neste momento ele olhou em torno com ar de briga e dando comigo me interpelou com veemência:
Você aí! Que sabes da maldade humana? Repara só nele lá em cima, de braços abertos, abençoando esta cidade toda esburacada, chorando de noite de tristeza porque seus filhos o abandonaram para cair na farra com mulheres que não valem nem para jogar no lixo, em todas essas Copacabanas [seu braço girou violentamente em torno] de mulatinhas todas pintadas como se fossem umas [censura], que aliás são! São umas [censura] de [censura] que saem remexendo a [censura] e atacando os homens como se fossem tigres. E para quê? Dizei-me para quê? Não sabe? Ah! [apontando-me] ele não sabe... Bem se vê que é um mocinho [obrigado, profeta!] rico que não sabe de nada senão cavar o ouro e ir gastar com as mulheres de todas essas Copacabanas! Mas eu te peço, Senhor: lança os vossos exércitos contra o fariseu e deixa dessa pose que não te adianta nada, porque esse negócio de ficar de braço aberto não resolve, a gente quer ver mesmo é diminuir o preço das coisas, as pessoas vão acabar mesmo é comendo umas às outras, porque carne não tem, só a carne dessas [censura] de todas essas Copacabanas que o raio de Deus fulmine e consuma e toque fogo em toda essa [censura] que anda por aí!
Dito o quê, ele me olhou com um olhar cheio de lágrimas, que parecia vir do fundo de um caos bíblico de recordações, misérias, humilhações e ressentimentos sofridos, moveu a cabeça com um ar trêmulo de animal vencido e saiu em frente, dois passos para cá, três para lá, em meio à risota e aos comentários dos circunstantes; mas mesmo de longe sua voz me chegava como a de um Isaías imprecando:
Mas essa sopa vai acabar! Essa sopa vai acabar.

Vinicius de Moraes, em Para viver um grande amor

A viagem


O tumbeiro apitou e partiu pouco tempo depois que paramos de ouvir barulhos na parte de cima, quando acabaram de acomodar todos os homens. Ouvimos um só apito, tão baixo que parecia surgido ao longe, como se não estivesse anunciando a nossa partida, mas que me fez lembrar o canto do pássaro sobre o iroco, naquele fim de tarde em Savalu. A minha avó também deve ter se lembrado, pois durante o apito e por muito tempo depois, enquanto ele continuava ecoando, segurou firme a minha mão, e devia estar fazendo o mesmo com a mão da Taiwo, que, naquele momento, disse estar com vontade de fazer xixi. A minha avó disse para ela esperar. Eu sabia que era medo, pois eu e a Taiwo sempre sentíamos vontade de fazer xixi quando ficávamos com medo, e não sei por que não sentimos naquele dia com os guerreiros do rei Adandozan. Vistos do alto, devíamos estar parecendo um imenso tapete, deitados no chão sem que houvesse espaço entre um corpo e outro, um imenso tapete preto de pele de carneiro. Um dos muçurumins, que parecia ser o chefe de todos eles, andava no barracão com um tapete de pele de carneiro sobre os ombros. Acho que não o deixaram embarcar com ele, como também não tinham deixado a minha avó continuar com os Ibêjis. Mas eu o imaginei tirando o tapete dos ombros e abrindo as suas muitas dobras mágicas, até que ficasse tão grande que cobrisse todos nós. A sensação de calor e sufoco seria a mesma.
Eu tentava imaginar outras coisas para esquecer a vontade de fazer xixi, até que a Taiwo reclamou novamente e a Tanisha disse à minha avó que ela teria que fazer ali mesmo, deitada, como provavelmente todos faríamos quando desse vontade, sem que houvesse terra para jogar por cima. A minha avó então rasgou um pedaço da roupa e o deu à Taiwo, para que se enxugasse depois, tomando cuidado para o xixi não escorrer e molhar a cabeça do homem que estava deitado aos seus pés. O homem não reclamou e nem se mexeu, então eu disse que queria fazer também. Estava acostumada a fazer xixi em qualquer lugar, até mesmo no meio da rua, mas fechada naquele porão era muito difícil. Principalmente por saber que, ao ouvir o barulho ou sentir o cheiro, alguém mais poderia ficar com vontade e fazer também, aumentando o ranço daquele lugar. Tive nojo quando peguei o pano já molhado com o xixi da Taiwo e quis desistir, mas não consegui segurar. Senti o xixi escorrendo por entre as pernas e apertei o máximo que pude uma contra a outra, para que não escorresse muito longe e não molhasse mais o meu vestido, que ainda estava úmido da água do mar. O tumbeiro apitou mais uma vez e pareceu ganhar velocidade, e eu só pensava na hora em que nos deixariam sair dali para tomar a fresca.
Um dos muçurumins gritou algo e os outros repetiram, saudando Alá. A minha avó saudou primeiro a minha mãe e o Kokumo, depois os Ibêjis e Nanã, e então pegou a minha mão e a da Taiwo e as levou ao runjebe pendurado no pescoço, pedindo a proteção e a ajuda de Ayzan, Sogbô, Aguê e Loko e por último deu um kaô kabiecile oba Sango, ao que eu e a Taiwo respondemos “kaô”. Muitas pessoas também responderam, e outras saudações e pedidos de proteção foram ouvidos em várias línguas. Depois que todos acabaram, o silêncio foi ainda maior, com a presença de Iemanjá, Oxum, Exu, Odum, Ogum, Xangô e muitos eguns. A minha avó comentou que, pelas saudações, ali deviam estar jejes, fons, hauçás, igbos, fulanis, maís, popos, tapas, achantis e egbás, além de outros povos que não conhecia. A Aja disse que era uma hauçá convertida e seu marido era um alufá, e nos saudou à maneira dos muçurumins, com um salamaleco. A minha avó não respondeu, pois parecia não gostar muito da Aja e da Jamila, antipatia retribuída pelas duas, que só conversavam comigo e com a Taiwo, e poucas vezes com a Tanisha.
Durante dois ou três dias, não dava para saber ao certo, a portinhola no teto não foi aberta, ninguém desceu ao porão e estava quase impossível respirar. Algumas pessoas se queixavam de falta de ar e do calor, mas o que realmente incomodava era o cheiro de urina e de fezes. A Tanisha descobriu que se nos deitássemos de bruços e empurrássemos o corpo um pouco para a frente, poderíamos respirar o cheiro da madeira do casco do tumbeiro. Era um cheiro de madeira velha impregnada de muitos outros cheiros, mas, mesmo assim, muito melhor, talvez porque do lado de fora ela estava em contato com o mar. Quando não conseguíamos mais ficar naquela posição, porque dava dor no pescoço, a minha avó dizia para nos concentrarmos na lembrança do cheiro, como se, mesmo de longe e fraco, ele fosse o único cheiro a entrar pelo nariz, principalmente quando o navio começou a jogar de um lado para outro. As pessoas enjoaram, inclusive nós, que vomitamos o que não tínhamos no estômago, pois não comíamos desde o dia da partida, colocando boca afora apenas o cheiro azedo que foi tomando conta de tudo. O corpo também doía, jogado contra o chão duro, molhado e frio, pois não tínhamos espaço para uma posição confortável. Quando uma pessoa queria se mexer, as que estavam ao lado dela também tinham que se mexer, o que sempre era motivo de protestos. Tudo o que queríamos saber era se ainda estávamos longe do estrangeiro, e alguns diziam que já tinham ouvido falar que a viagem poderia durar meses, o que provocou grande desespero.
Os muçurumins eram os que mais reclamavam, nem tanto pelas condições em que viajávamos, pois, segundo a Aja, qualquer sacrifício valia a pena se fosse por Alá, mas porque não estavam conseguindo cumprir as obrigações da religião. Cinco vezes por dia eles tinham que se virar na direção de Meca e dizer algumas orações, durante as quais precisavam se levantar e abaixar várias vezes, como eu tinha visto no barracão do forte, em Uidá. Fechados dentro do porão do tumbeiro, sem nenhuma referência da direção que estávamos seguindo, não tinham como saber para que lado ficava Meca. E também por estarem amarrados uns aos outros, inclusive a quem não era muçurumim, não podiam se movimentar, por falta de espaço e porque nem todos queriam acompanhá-los. Nós, as mulheres, não estávamos mais amarradas, mas a Aja e a Jamila também não fizeram as orações, não sei se por terem que esperar pelos homens ou se tinham vergonha, pois elas quase não conversavam quando algum homem estava por perto, nem mesmo o marido delas. Mas ao fim de três dias, nem os muçurumins reclamavam mais, e até a altura das vozes que diziam as rezas foi diminuindo, pois estávamos muito cansados. Pela viagem, pelos enjoos, pela dificuldade de dormir, pela falta de comida, pelo ar que descia apodrecendo a garganta, pela sede. Alguns adoeceram e tiveram febre, mas o que dava mais aflição eram os gemidos de um fulani que tinha sido empurrado da escada e quebrara a perna, o osso chegando a furar a pele. Uma mulher disse que ia rezar o machucado e perguntou o nome dele, mas ninguém sabia e ele já não conseguia mais falar, apenas delirava.
Foi então que ficamos sabendo o motivo da demora no embarque dos homens, pois os brancos tinham batizado todos eles com nomes que chamavam de nomes cristãos, nomes de brancos, e àquele homem da perna machucada, de acordo com um outro que estava logo atrás dele na fila, tinham dado o nome de João. Soubemos que o padre que fez os batizados tinha chegado atrasado, depois do embarque das mulheres. Os guardas colocaram os homens em fila e, um por um, tiveram que dizer o nome africano, o que podia ser revelado, é claro, e o lugar onde tinham nascido, que eram anotados em um livro onde também acrescentavam um nome de branco. Era esse nome que eles tinham que falar para o padre, que então jogava água sobre suas cabeças e pronunciava algumas palavras que ninguém entendia. Sabiam apenas que era com tal nome que teriam que se apresentar no estrangeiro. Foi tudo muito rápido, mas disseram que mesmo assim se formou uma grande fila diante do padre, parecendo uma cobra que ia da beira da água até quase a saída do barracão onde estivemos presos. Uma grande cobra de fogo, pois era ladeada por guardas que formavam um corredor iluminado por tochas.
Alguém lembrou que o padre também tinha dito que, a partir daquele momento, eles deviam acreditar apenas na religião dos brancos, deixando em África toda a fé nos deuses de lá, porque era lá que eles deveriam ficar, visto que os deuses nunca embarcam para o estrangeiro. Quando alguém comentou isso, todos fizeram saudações aos seus orixás, eguns ou voduns, demonstrando que não tinham concordado. Um homem disse que tinha perguntado a um dos guardas onde era o estrangeiro e a resposta foi que estávamos sendo enviados para o Brasil. Ao ouvir isso, os muçurumins protestaram e disseram que não tinham certeza se o Brasil ficava na mesma direção de Meca. Um ketu comentou que já tinha ouvido dois brancos falarem sobre o Brasil, quando trabalhava em uma fazenda de óleo de palma. Os brancos disseram que o óleo seria enviado para o Brasil, junto com algumas peças. Ele desconfiava que nós éramos o que os brancos chamavam de peças, pois pessoas da família dele tinham desaparecido depois da passagem de lançados perto de onde viviam, e que esses lançados também falavam em Brasil. Esse homem se chamava Olaitan e tinham dado a ele o nome de branco de Benevides, que não chegaria a ser usado.

Ana Maria Magalhães, em Um defeito de cor

domingo, 25 de agosto de 2024

Deep Purple | Lazy Sod

Devia morrer-se de outra maneira

Devia morrer-se de outra maneira.
Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.
Ou em nuvens.
Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol
a fingir de novo todas as manhãs, convocaríamos
os amigos mais íntimos com um cartão de convite
para o ritual do Grande Desfazer: “Fulano de tal comunica
a V. Exa. que vai transformar-se em nuvem hoje
às 9 horas. Traje de passeio”.
E então, solenemente, com passos de reter tempo, fatos
escuros, olhos de lua de cerimônia, viríamos todos assistir
a despedida.
Apertos de mãos quentes. Ternura de calafrio.
Adeus! Adeus!”
E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento,
numa lassidão de arrancar raízes...
(primeiro, os olhos... em seguida, os lábios... depois os cabelos... )
a carne, em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se
em fumo... tão leve... tão sutil... tão pólen...
como aquela nuvem além (veem?) — nesta tarde de outono
ainda tocada por um vento de lábios azuis…

José Gomes Ferreira, em Antologia Poética

De quem a ideia?

 

Da dúvida

Os espíritos verdadeiramente religiosos são os que andam e desandam pelas encruzilhadas da Dúvida. Os que atingem a certeza param, satisfeitos. E a certeza, como lá diz o mestre Augusto Meyer no seu Tratado de Metapatafísica, a certeza faz engordar. Exemplo: Santo Tomás de Aquino.

Mário Quintana, em Caderno H

Respiração

Muita gente, pelo fato de minha vida ser escrever, me pergunta como escrevo. E pelo rosto expressivo dessas pessoas adivinho que secretamente estão escrevendo alguma coisa, e com dificuldade. Eu não posso dar lição sobre escrever pois em mim o processo e a elaboração se fazem inconscientemente até que tudo amadureça e venha à tona.
Nem sei bem como se escreve. Escrever é saber respirar dentro da frase. É pôr algum silêncio tanto nas linhas como nas entrelinhas para que o leitor possa respirar comigo, sem pressa, adaptando-se não só ao seu ritmo como ao meu, numa espécie de contraponto indispensável.
Para se chegar pelo menos a esse ponto, o de respirar dentro da frase, adestrei-me desde os sete anos de idade. Sem ter planejado nada antes, aos quinze anos comecei a ser uma profissional paga pelo que escreve.
Não estou dizendo que a preparação tem que ser tão longa: em algumas pessoas talvez as elaborações se façam mais depressa. Minha preparação consistiu em aprender a respirar, em não trair eu mesma o meu modo de escrever que alguns chamam de estilo e eu chamo de: estilo natural. Por isso fico muito grata ao meu revisor que nunca me alterou em nada, nem em palavras, nem em pontuação. Meu revisor se limita em pôr os acentos, pois vivo esquecendo. Um rapaz de Brasília veio ao Rio, e entre as coisas que anotou para fazer, era a de me visitar e, segundo entendi pelo telefone, queria me ver para eu lhe dizer se se pode viver como escritor. No dia em que ele marcou comigo para vir, depois do almoço num domingo, eu infelizmente adormeci, e o rapaz foi embora. Desculpe. Um dia me procure de novo. Mas desde já posso lhe dizer que é praticamente impossível, no Brasil, viver com o que se ganha por livro. O remédio é ser jornalista e ter mais outro empreguinho: acumulando empreguinhos você junta o dinheiro necessário para ter uma vida apenas razoável, financeiramente falando. No meio desse trabalho todo, tem que achar tempo para pesquisar um pouco na sua literatura.

Clarice Lispector, em Todas as crônicas

AS RÃS | Drama em nove atos




PERSONAGENS

TIA, ginecologista aposentada, tem mais de setenta anos.
GIRINO, dramaturgo, sobrinho da tia, tem mais de cinquenta anos.
LEOAZINHA, ex-assistente da tia, mulher de Girino, tem mais de cinquenta anos.
CHEN SOBRANCELHA, barriga de aluguel, tem mais de vinte anos. Sobreviveu a um incêndio que a deixou gravemente desfigurada.
CHEN NARIZ, pai de Sobrancelha, colega de escola de Girino. Morador de rua, tem mais de cinquenta anos.
YUAN BOCHECHA, colega de escola de Girino, executivo de um ranário que opera uma agência clandestina de barrigas de aluguel, tem mais de cinquenta anos.
PRIMO, chamado Jin Xiu, primo de Girino, funcionário de Yuan Bochecha, tem mais de quarenta anos.
LI MÃO, colega de escola de Girino, dono de restaurante, tem mais de cinquenta anos.
DELEGADO, policial com cerca de quarenta anos.
WEI, policial feminina recém-formada na academia de polícia, tem cerca de vinte anos.
HAO MÃO GRANDE, mestre de artesanato folclórico, cria bonecos de barro, marido da tia.
QIN HE, mestre de artesanato folclórico, cria bonecos de barro, admirador da tia.
LIU GUIFANG, colega de escola de Girino, diretora da hospedaria do governo distrital.
GAO MENGJIU, prefeito de Gaomi durante o período da República da China (Período anterior à República Popular da China, encerrado em 1949).
ALGUNS GUARDAS.
DOIS SEGURANÇAS DO HOSPITAL.
DOIS HOMENS MASCARADOS.
CINEGRAFISTAS, UMA REPÓRTER DE TV E OUTRAS PESSOAS.

Ato I

Maternidade Sino-Americana Jiabao. Sua entrada suntuosa lembra um órgão público. Na parede de mármore, à esquerda da entrada, vê-se uma placa com o nome do hospital.

À direta da entrada, um grande outdoor exibe um mosaico formado por centenas de fotos de bebês, cada um numa pose diferente.

À esquerda da entrada, um segurança de uniforme cinza, em posição de sentido, bate continência para cada um dos carros de luxo que passam por ele. Seus movimentos exagerados parecem ridículos.
Brilha uma enorme lua cheia. Ouvem-se barulhos de bombinhas vindos de trás da cortina. De vez em quando, fogos de artifício iluminam o céu.

SEGURANÇA (tira o celular do bolso para ler as mensagens, não se contém e ri em voz alta) Hehe…

O chefe do segurança sai pelo portão silenciosamente.

CHEFE (vai até atrás do segurança e diz em voz baixa, mas em tom severo) Li Jiatai, de que está rindo?! (sente algo saltar sobre seu pé). Ué, em que estação estamos? Por que tantas rãs? De que está rindo?!
SEGURANÇA (assustado, se atrapalha e se apressa em voltar à posição de sentido) Chefe, é o aquecimento global, o efeito estufa; não ri de nada…
CHEFE Como assim, não riu de nada? (sacode o pé para espantar a rã) O que será que é isso? Será que vamos ter outro terremoto? Estou perguntando do que estava rindo?
SEGURANÇA (olha ao redor para se certificar de que ninguém está por perto e ri) Chefe, essa piada é muito engraçada…
CHEFE Já disse que vocês não podem mandar mensagens durante o expediente!
SEGURANÇA Chefe, não mandei mensagem nenhuma. Estava só olhando.
CHEFE E faz diferença? Se o diretor Liu vir isso, você perde seu emprego.
SEGURANÇA Se perder, perdi, não quero mais trabalhar aqui mesmo. O dono do ranário é marido de uma tia minha. Minha mãe já conversou com essa tia e pediu para ela falar para o marido me arrumar um emprego lá…
CHEFE (impaciente) Tudo bem, tudo bem! Você me deixa confuso com todos esses tios e tias. Com um tio desses, é claro que não vai ter medo de perder o emprego. Mas este é o meu ganha-pão. Por isso, enquanto estiver trabalhando, não pode receber nem mandar mensagens, não fale ao telefone, está tudo proibido!
SEGURANÇA (de peito erguido e em alerta) Sim, senhor!
CHEFE Tenha mais cuidado!
SEGURANÇA (de peito erguido e em alerta) Sim, senhor! (não se contém e ri), hehe…
CHEFE Você bebeu mijo de cadela, ou sonhou que casou com mulher rica? Fale logo, de que está rindo?!
SEGURANÇA Não estou rindo de nada…
CHEFE (estende a mão direita) Dá aqui!
SEGURANÇA O quê?
CHEFE O que você acha? O celular!
SEGURANÇA Chefe, juro que não vou olhar mais.
CHEFE Pare de me enrolar! Não vai me entregar? Então vou contar ao diretor Liu.
SEGURANÇA Chefe, estou namorando, não posso ficar sem celular…
CHEFE Quando seu pai namorava, nem telefone fixo tinha, mas nem por isso deixou de se casar com sua mãe, não foi? Anda logo!
SEGURANÇA (relutante, entrega o celular ao chefe) Não queria rir, mas essa mensagem é muito engraçada.
CHEFE (manuseando o celular) Quero ver que mensagem tão engraçada é essa… “Para formar excelentes velocistas, a Comissão Nacional de Esportes ordenou o casamento entre Qian Bao, campeão dos cem metros, com Jin Lu, campeã de maratona. No final da gestação, Jin Lu foi ao hospital para ter o bebê. Qian Bao perguntou ao médico: “Minha esposa teve um filho ou uma filha?”. “Não vi direito”, respondeu, “logo depois de nascer o bebê correu sem deixar rastro.” Que achou de tão engraçado nessa piada velha? Me deixe ler algumas (o chefe saca seu celular, prepara-se para ler, mas logo percebe algo, guarda os dois celulares no próprio bolso). Hoje é o Festival da Lua Cheia de Outono, o diretor Liu recomenda atenção redobrada nos feriados!
SEGURANÇA (estende a mão) O meu celular!
CHEFE Está confiscado temporariamente. Devolvo depois do expediente!
SEGURANÇA (implorando) Chefe, estamos em pleno feriado, todas as famílias reunidas, felizes, alegres, comendo bolo, soltando fogos, admirando a lua cheia, namorando, mas eu estou aqui, parado como um poste, e você ainda me priva desse prazer de enviar torpedos para minha namorada.
CHEFE Pare de enrolar e faça o seu plantão direito. Precisa ficar com olhos e ouvidos em alerta para barrar qualquer suspeito do lado de fora desse portão…
SEGURANÇA Deixe disso, para que cair na conversa do Liu Cabeção? Quem vem aqui em pleno feriado? Bandido também tira férias, não é?
CHEFE Quero mais seriedade! Acha que estou brincando? (em voz baixa, misterioso). Na noite do Ano-Novo chinês, veio um bando de terroristas. Eles invadiram (abaixa a voz) a maternidade, levaram oito bebês como reféns…
SEGURANÇA (sério) Oh…
CHEFE (misterioso) Sabe a amante de quem está no nosso hospital esperando o parto?
SEGURANÇA (ouve atento o que o chefe sussurra)
CHEFE (em voz baixa, misterioso) … entendeu agora? Lembre-se, o Mercedes preto e o BMW verde são dele. Precisa bater continência e seguir com o olhar. Não pode parecer nem um pouco desleixado!
SEGURANÇA Sim, senhor! (estende a mão). Agora pode me devolver meu celular?
CHEFE Não, de jeito nenhum. A noite de hoje é uma data auspiciosa, a esposa do presidente Jin pode ter o bebê agora, a nora do secretário Song também tem o parto previsto para hoje, Audi preto A6, placa 08858. Fique de olho!
SEGURANÇA (descontente) Esses filhos da puta, como sabem escolher o momento para nascer! Minha namorada disse que a lua de hoje é a maior e a mais redonda dos últimos cinquenta anos (ergue a cabeça para olhar a lua e cita um verso tradicional): “A lua brilhante, quando nasceu? Ergo a taça e pergunto ao escuro céu…”.
CHEFE (irônico) Chega de afetação! Se soubesse declamar tão bem na escola, não viraria segurança (em alerta). O que é aquilo?!

Entra Chen Sobrancelha vestindo túnica e véu pretos, segura um pequeno suéter vermelho.

CHEN S. (balança o corpo, parece embriagada) Meu filho… meu filho… cadê você? A mamãe está te procurando. Onde você se escondeu…
SEGURANÇA É ela de novo, aquela doida.
CHEFE Vai, tire-a daqui!
SEGURANÇA (fica em posição de sentido) Não posso me ausentar do plantão!
CHEFE É uma ordem: tire-a daqui!
SEGURANÇA Mas estou de plantão!
CHEFE Sua área de atuação se estende a cinquenta metros de cada lado do portão!
SEGURANÇA Em caso de ocorrência suspeita, o guarda de plantão precisa permanecer no posto para prevenir a entrada de elementos suspeitos pelo portão e comunicar imediatamente ao supervisor (tira o walkie-talkie da cintura). Chefe, comunico o aparecimento de um elemento suspeito embaixo do outdoor à direita do portão. Favor mandar reforços assim que possível!
CHEFE Puta que o pariu, mas que pilantra!

A iluminação foca na frente do outdoor.

CHEN S. (aponta para as fotos de bebês no outdoor) Filho, meu filho, a mamãe está te chamando, escutou? Está brincando de esconde-esconde com a mamãe? Meu danadinho, meu tesouro, venha mamar, senão o cachorrinho vai roubar o leite da mamãe… (aponta para uma das crianças no outdoor). Você quer meu leite? Não deixo, não, você nem é meu filho! Meu filho tem olhos grandes e dobrinha nas pálpebras, mas você tem olhos pequenos demais… E você quer meu leite, mas também não é meu bebê, meu bebê tem o rosto corado feito maçã, mas o seu é amarelado… Você, menos ainda, meu bebê é um menino gorducho, mas você é uma menina, menina não vale nada… (lúcida). Pagam cinquenta mil por um menino, e só trinta mil por uma menina! Seus filhos da puta, valorizam os meninos, desprezam as meninas, que mentalidade feudal. Suas mães não são mulheres? E suas avós não são mulheres? Se todos tivessem só filho homem, e nenhuma filha, este mundo não ia acabar? Vocês, altos funcionários, grandes intelectuais e pessoas de amplo conhecimento, por que não entendem um raciocínio tão simples?… O quê, você está dizendo que é meu filho? Pirralho, você deve estar babando com o cheiro do meu leite? (franze o nariz). Quer me enganar? Seu pirralho, nem em sonho! Escutem aqui, mesmo que tapem meus olhos com uma faixa preta, mesmo que misturem meu bebê com outras mil crianças, ainda consigo saber quem é meu filho só pelo cheiro! Sua mãe nunca te disse? Cada bebê tem um cheiro diferente! Quer mamar? Vá procurar sua mamãe. Ah, pois é, vocês, crianças de ricos não falam mamãe, é “mamã”, não dizem mamar, é amamentar… O quê? Sua mãe não tem leite? Que mãe é essa que não tem leite? Vocês ficam falando de progresso, acho que isso é retrocesso. Retrocederam para não terem o filho pelo canal natural, e os seios não dão mais leite. Deixaram o trabalho para as vacas e ovelhas. Crianças que crescem tomando leite de vaca fedem a gado, as que tomam leite de ovelha recendem a ovelha. Só quem cresce tomando leite humano é que tem cheiro de gente. Querem comprar meu leite? Nem pensar. Não vendo nem que me paguem uma montanha de ouro, estou guardando para meu filho… Meu filho, venha logo… Senão esses meninos vão roubar meu leite. Olha só como eles são gulosos, já abriram a boca; estão todos com fome, suas mães venderam seu leite em troca de cosméticos para passar no rosto, ou de perfume para passar no corpo. Elas não são boas mães, são pura vaidade, não ligam para a saúde da criança… Meu filho querido, venha logo…
CHEFE (fica em posição de sentido, bate continência) Senhora, aqui é uma maternidade, as parturientes e os bebês precisam de um ambiente silencioso. Por isso, peço-lhe que se retire imediatamente e pare de fazer barulho!
CHEN S. Quem é você? O que está fazendo aqui?
CHEFE Sou o segurança!
CHEN S. O que faz um segurança?
CHEFE Mantemos a ordem social e defendemos a segurança de órgãos públicos, escolas, instituições e empresas, correios, bancos, centros comerciais, hotéis, estações e outros!
CHEN S. Conheço você! (dá uma risada). Conheço você! Você é o guarda-costas de Yuan Bochecha. Chamam vocês de cão de guarda!
CHEFE Não pode insultar a nossa dignidade! Sem gente como nós, a sociedade cairia no caos!
CHEN S. Foi você que levou o meu bebê! Consigo reconhecê-lo mesmo sem o jaleco branco e a máscara grande!
CHEFE (chocado) Senhora, tem de se responsabilizar por suas palavras. Posso processá-la por calúnia!
CHEN S. Acha que não o reconheço nessa roupa? Acha que com o uniforme de segurança você se torna uma boa pessoa?! Você é um cachorro criado por Yuan Bochecha. Wan Coração, aquela bruxa, fez o parto do meu filho e só me deixou dar uma olhada… (angustiada). Não… Nem uma olhada ela me deixou dar… Elas taparam meu rosto com um pano branco, queria ver o meu filho, só uma olhada, mas elas o levaram sem me deixar dar sequer uma olhada… Mas ouvi o choro, meu filho estava à minha procura, chorava porque queria me ver também. Não há neste mundo filho que não queira ver a mamãe! Mas elas o levaram à força. Sei que ele estava com fome, queria mamar. Todos vocês sabem como o colostro é valioso para o filho. Acham que tive pouco estudo e não sei dessas coisas? Sei sim, sei de tudo. Consigo canalizar o melhor do meu corpo para os meus seios, o cálcio dos ossos, a essência da medula óssea, a proteína do sangue e as vitaminas da carne, é tudo bombeado para os seios. Depois de beber do meu leite, meu filho não vai pegar resfriado, nem diarreia, nem febre, vai crescer mais rápido, melhor e mais bonito. Mas vocês o levaram de mim sem deixá-lo tomar um gole sequer (avança sobre o chefe e o agarra pela roupa).
CHEFE (perturbado) Senhora, a senhora com certeza está enganada. Que bochecha, que rosto, não sei do que está falando…
CHEN S. É claro que vai dizer que não conhece. Bando de ladrões, bandidos, demônios que roubam crianças para vender. Vocês podem não me conhecer, mas eu conheço vocês. Não foram vocês que levaram meu bebê à força e me deram dois comprimidos para dormir? Quando acordei, não foram vocês que mentiram para mim que o bebê nasceu morto? Não foram vocês que arranjaram um gato morto esfolado e me disseram que era o corpo do meu filho? Seus bandidos, levaram meu filho e ainda não querem me pagar o serviço. Ficou combinado que me pagariam cinquenta mil por um menino, mas só me pagaram dez mil porque disseram que meu bebê nasceu morto. Levaram meu filho e ainda querem roubar meu colostro! Vieram tirar meu leite com tigela e mamadeira e ainda dizem que é dez iuanes o mililitro! Animais. O meu colostro é guardado para meu filho! Dez iuanes? Não vendo nem por cem mil!
CHEFE Senhora, mais uma vez, peço-lhe que se retire daqui, ou vou chamar a polícia.
CHEN S. Chamar a polícia? Ótimo! Estou mesmo querendo encontrar algum policial. Eles são da polícia popular e amam o povo. Se uma pessoa do povo perder sua criança, o policial vai fazer alguma coisa, não vai?
CHEFE Com certeza vai fazer algo. Mesmo que alguém perca um cachorro, a polícia ajuda a procurar, uma criança então, nem se fala.
CHEN S. Pois bem, vou procurar a polícia.
CHEFE Isso mesmo, vá logo (indica a direção). Siga por esta rua, vire à direita no sinal, bem ao lado de um caraoquê fica a delegacia da rua Binhe.

Um carro sai do hospital buzinando.

CHEN S. (para por um momento, parece despertar de repente) Meu filho, eles pegaram meu filho e levaram nesse carro (corre em direção ao carro). Seus ladrões, devolvam meu filho…

O chefe tenta impedi-la, mas Chen Sobrancelha, reunindo uma força súbita e descomunal, se choca contra o chefe, que cambaleia.

CHEFE (irritado) Pare-a!

O segurança no portão avança e agarra Chen Sobrancelha, que quer impedir a passagem do carro. Sobrancelha luta violentamente para se livrar. O chefe a alcança e os dois homens tentam conter Sobrancelha. Na luta, o véu preto cai e mostra o rosto assustador de uma paciente queimada. Os dois seguranças se assustam e dão um passo para trás.

SEGURANÇA Ai, minha mãe…!
CHEFE (olhando para as pequenas rãs esmagadas sob as rodas e os sapatos) Mas que merda, de onde estão vindo essas criaturas?

Cortina.

Mo Yan, em As rãs

sábado, 24 de agosto de 2024

Ítaca

Quando partires em viagem para Ítaca
faz votos para que seja longo o caminho,
pleno de aventuras, pleno de conhecimentos.
Os Lestrigões e os Ciclopes,
o feroz Poseidon, não os temas,
tais seres em teu caminho jamais encontrarás,
se teu pensamento é elevado, se rara
emoção aflora teu espírito e teu corpo.
Os Lestrigões e os Ciclopes,
o irascível Poseidon, não os encontrarás,
se não os levas em tua alma,
se tua alma não os ergue diante de ti.

Faz votos de que seja longo o caminho.
Que numerosas sejam as manhãs estivais,
nas quais, com que prazer, com que alegria,
entrarás em portos vistos pela primeira vez;
para em mercados fenícios
e adquire as belas mercadorias,
nácares e corais, âmbares e ébanos
e perfumes voluptuosos de toda espécie,
e a maior quantidade possível de voluptuosos perfumes;
vai a numerosas cidades egípcias,
aprende, aprende sem cessar dos instruídos.

Guarda sempre Ítaca em teu pensamento.
É teu destino aí chegar.
Mas não apresses absolutamente tua viagem.
É melhor que dure muitos anos
e que, já velho, ancores na ilha,
rico com tudo que ganhaste no caminho,
sem esperar que Ítaca te dê riqueza.

Ítaca deu-te a bela viagem.
Sem ela não te porias a caminho.
Nada mais tem a dar-te.
Embora a encontres pobre, Ítaca não te enganou.
Sábio assim como te tornaste, com tanta experiência,
já deves ter compreendido o que significam as Ítacas.

Konstantinos Kaváfis (Tradução: Isis Borges B. da Fonseca) 

Frank Sinatra & Tom Jobim

Golpe novo...

Piratas do Tietê, de Laerte

Mais ou menos eu

Se eu fosse menos eu
Sendo eu quem
eu menos conheço
estaria eu, enfim,
mais perto de mim?

Pedro Paulo, em Antologia Poética

A Contadora de Filmes | [33]


Meses mais tarde, meu pai morreu.
Expirou uma tarde, em casa, sentado em sua poltrona de rodas, enquanto eu contava um filme mexicano. Acho que foi justo nos instantes em que me ouvia interpretar Ela, o mais belo tema de José Alfredo Jiménez.
Eu não tinha como saber que aquela canção fazia que ele recordasse a traição de minha mãe.

Me cansei de rogar,
Me cansei de dizer
Que sem ela eu
De pena morro.
E não quis me escutar,
E se seus lábios se abriram
Foi só para me dizer: “Já não te amo”.

E lá ficou ele, sentadinho direitinho em sua poltrona, com sua manta boliviana cobrindo suas pernas inúteis; ficou com os olhos abertos, agarrado em sua caneca de vinho tinto. Nós só percebemos sua morte no final da minha narração, quando não irrompeu em aplausos como era seu costume.
O praticante do povoado falou em enfarte.
Além da dor de ficarmos sozinhos no mundo, havia o problema da casa: meus irmãos e eu íamos ficar sem ter onde morar. Depois do acidente, a companhia tinha deixado meu pai continuar usando a casa por causa de sua impecável folha de vida laboral. Em todos aqueles anos de trabalho jamais faltou, nem mesmo por doença. Trabalhava de segunda a domingo, inclusive feriados, sem excluir Natal ou Ano Novo, e até em dois turnos seguidos quando era necessário (essa era uma das coisas de que minha mãe reclamava). Mas agora que ele não estava mais e não havia nenhuma pessoa maior que respondesse pela família, o normal é que tivéssemos que entregar a casa.
Por sorte, Mariano, que faltava só alguns meses para completar dezoito anos, conseguiu um trabalho de mensageiro. Por isso a companhia nos deixou continuar morando na casa.
Muita gente disse que tinha sido de pena do senhor administrador. Mas eu, com meus treze anos feitos – e com um corpo que aparentava pelo menos dezesseis –, percebia que não tinha sido de pena.
Percebi pela maneira com que o gringo não deixou de me olhar no dia do funeral de meu pai.

Hernán Rivera Letelier, em A Contadora de Filmes

Mozart

O teólogo protestante Karl Barth brincava dizendo que os anjos, quando estavam diante de Deus, tocavam Bach. Mas, em suas reuniões particulares, tocavam Mozart. E eu acrescento: E Deus escutava atrás da porta.

Rubem Alves, em Ostra feliz não faz pérola

Menino caçando passarinho


Advogado é padre, minha senhora. Pode confiar.
Eu sei, doutor Nelson.
Não se acanhe. Conte a verdade. Enganava seu marido, não é?
Deus me livre!
Nesta citação a senhora é culpada.
Dez anos casada. Um par de filhos. Seis meses atrás, uma perda. O resguardo, descansar na casa da mãe. De volta, deu com porta e janela trancadas. Na rua, recebeu a contrafé do oficial-de-justiça: desquite, alegação de adultério.
Quem é esse João Maria, citado como cúmplice?
Um compadre, doutor. Esse não vai contra mim.
Luto da mãe, o vestido preto colante, broche de borboleta. O marido tinha horror da sogra. Não lhe dirigiu a palavra nos três meses em que a velha se hospedou na casa, doente da bexiga. Tenha pena dela – suplicava a mulher. E você? Tem pena de mim?
Óculo escuro: olho roxo de um murro.
Homem fraco na cama é forte fora dela.
Como disse, doutor?
Conte os fatos, minha senhora.
Passeio no campo, o marido, ela e as filhas. Desde que se negava, alegando mal de mulher, o bruto queria agarrá-la à traição. Atalho no bosque, mandou as crianças na frente. Derrubou-a na grama. Com os gritos, as crianças voltaram, nele batiam com a sombrinha: Não surre a minha mãe! Não afogue a minha mãe!
Cuidar com carinho, dona Olga, de sua defesa.
Na vez seguinte: assinatura da procuração, os preâmbulos. Tão jovem, não definhava longe do marido? A separação de corpos, morando com o pai
A senhora anda nervosa?
Nem queira saber, doutor.
E antes de casar?
Era bem calma. Agora sofro dos nervos – às vezes tenho ataque!
Ai, que beleza: ela tem ataque.
A senhora... delirava, dona Olga? Olhinho baixo: Sim.
Um bem que Deus lhe concedeu. Sabe, o delírio, o que há de maravilhoso. A mulher tem convulsão, dona Olga.
É fato científico. Não se acanhe. Advogado em serviço não tem sexo.
Eu sei, doutor.
Aqui no escritório muita interrupção. Levo os papéis a um lugar sossegado. No hotel da estação, está bem?
Sim.
Esperou de quinze para as quatro até quatro e meia - assustei a pombinha, essa não volta mais.
Dona Olga. Por que não foi?
Eu fui. O doutor não estava mais. Negaceava, a bichinha, sem dizer que não. No escritório, após o expediente, discutir a pensão do marido para os filhos. Seis em ponto, Olga entrou na sala de espera. O herói fechou a porta e investiu.
O doutor era um ídolo. Pensa que mulher separada não é honesta?
Um beijinho só.
Olhe que eu grito.
Picaria – só um pouco – se abrisse a porta. Ligeiro beijo roubado, a que não correspondeu.
Prometo me comportar.
Com a porta aberta – imagine se alguém! – insistiu no assalto. Passos na escada, o elevador ora subia, ora descia. Sentados no sofá, a bela concedeu-lhe a mãozinha, que cobriu de beijos inflamados.
Olhe que eu saio.
Ia sentar-se na outra cadeira. Ele arrastava-a para o sofá. Luta silenciosa e feroz: os dedos arranhados pela unha afiada. Despedida cerimoniosa na porta:
Passe bem, doutor.
Os seus problemas eu resolvo. A senhora tenha confiança.
Surgiu-lhe o marido uma tarde no escritório:
Mais algum papel para assinar, doutor?
Era só.
Desconfio dela, doutor. Falam muito. Anda enfeitada demais.
É moça direitinha. O senhor tem prova? Sabe de fato concreto?
Fato, não sei, doutor. Desconfiança a gente sempre tem. A mulher capricha na roupa de baixo, que o homem se cuide.
Saia preta e blusa branca de rendinha, braço à mostra – uma cicatriz de vacina meio escondida. A moça lia a petição, o doutor lhe afagava o bracinho. A fingir que lia, o rosto abrasado de excitação.
Vamos lá?
Lá não dá, doutor. Lá não dá certo. Que o senhor quer de mim? O homem só faz as coisas por interesse. É esse o preço do homem!
Afogueada, a penugem do braço arrepiadinha. Ele não se conteve: alisou-o de alto a baixo com as duas mãos.
O doutor era influente – não sabia de uma vaga de professora?
Já se considere nomeada, dona Olga.
À saída, ela fez biquinho com o lábio e, estando de salto alto, forçado a se pôr na pontinha do pé.
Se der, eu vou. Não sei se posso. Eu não devo.
Então às cinco?
Choveu bem na hora. Esbarrou no pai dela, o velho farmacêutico.
Eu mando ela sem falta. O doutor pode confiar.
Olga reagiu, que ele cambaleou de costas.
Não adianta. Eu não quero.
Então tudo acabou. O caso foi processado. Quer ir para casa, vá – e arquejava, de fôlego curto.
Entre os artigos de lei, a se lembrar do bracinho arrepiado, o olho amarelo de quem sofre do fígado – eu tenho ataque, doutor! Recado urgente pelo farmacêutico que ela o esperasse em casa, às duas da tarde.
Bateu palmas na porta dos fundos. Olga assomou à janela.
Entre, que já desço.
Abriu a porta: estaria o diabo do velho? À espreita, quem sabe, atrás da cortina? Ela desceu a escada, repuxando a saia no joelho. O vestido caseiro, em chinelinho.
Imediatamente a agarrou aos beijos e abraços.
Louco por você.
Abatida, sem pintura, de olheira – ai, mãe do céu, de olheira!
Que dizia ela? Não mais que balbucios:
Sim, doutor – e revirava o olho. – Ai, doutor.
Sempre a resguardar-se das três mãos. Uma hora inteira de beijos – o dentinho perfumado.
Sossegue. Papai entra de repente. O senhor é doido?
Iniciação ao beijo de língua. O vestido afogado no colo, ele não podia espirrar o seio. Mordiscava a ponta da orelha.
Sabia o que eu queria?
Sim.
Desde quando?
Desde a primeira vez. Da conversa que advogado é padre.
Ai, Olga. Me beije.
Aqui não dá. Se papai chega?
As crianças?
Mandei no vizinho.
Deixe. Mais um pouco. Só um pouco.
Onde já se viu? É loucura.
Conhece a minha posição. Sou casado. Houvesse risco, o primeiro a não querer.
À roda da casa, fingia coçar o nariz, com a mão no rosto. Na hora combinada, surgiu pressurosa e tossindo, lencinho na boca.
Deu volta à chave. Ela caiu-lhe nos braços, toda trêmula. Nem falar podia, tão assustada. Desabotoava o casaquinho – cuidado, querido, o pregador! Ele arrancou a gravata. Aos cochichos – já era hábito. Bem o marido tinha razão: a maravilhosa roupa de baixo – sedas e rendas! Aos beijos, de pé. Aos beijos, sentados no sofá. Deitados no tapete, rolando.
Quer que morda ou beije?
Sim.
Beije ou morda?
Sim. Ai, sim. Ai, sim.
Abra o olho.
Gema comigo, anjo. Agora.
O herói gemeu. Ela o acompanhou em tom mais baixo.
Ai, ai. Eu morro.
Estirada no tapete, bem quieta, a combinação azul acima do joelho.
Ele abotoou o paletó, acendeu cigarro. A bela mordia um grampo, a observá-lo no espelho:
Mais uma para tua coleção?
Você é a única.
Foi introduzir uma nota na bolsa.
Não sou dessas.
Esperou-a no portão dos fundos. No quintal vizinho, um menino caçava, atiradeira em punho e olhar perdido. Gente na rua: a negra velha, um soldado discutia com o barbeiro.
Saltinhos saltitando na pedra, ele tossiu três vezes.
Que imprudência!
De saia xadrez, blusa de lã. Fechada a porta, dela o primeiro beijo:
Obrigada, meu amor. Pode o que quiser. Agradecida pela nomeação, despiu-se a toda pressa. Ele, em cueca e meia preta:
Fique nua.
O seio róseo empinadinho. Já ritual:
Morda ou beije?
Sim – a mania de repetir sim, sim. Como é que um bruto desprezava dona tão querida?
Suspiros e, ao apertá-lo nos braços, o cheiro capitoso de égua trêmula.
Se não corro me atrasava. Bem louca. Você me deixou assim.
Com o João não fazia... isso?
Credo! Isso nunca aconteceu.
O herói beliscava o biquinho do seio inchado.
Teu marido como é?
Um apressado, procurava-a sem aviso; em seguida dava-lhe as costas. Não ficasse mal acostumada – um trapo sujo atirado no canto.
Tem me seguido. Não é arriscado vir aqui? Estou com medo.
Me beije. Não fale.
Vai enjoar de mim? O homem consegue o que quer. Depois corre atrás de outra.
Me beije. Ai, Olga. Não fale. Abra o olho. Grande olho amarelo agora bem vermelho. Acuda, Olguinha, me deu ataque.
Fique de olho aberto.
À saída, assustou-se com o menino trepado na ameixeira.
Tem gente aí.
Boba. É um menino.
Se ele me vê?
Menino caçando passarinho é cego para o que não for passarinho.

Dalton Trevisan, em O Vampiro de Curitiba