O
tumbeiro apitou e partiu pouco tempo depois que paramos de ouvir
barulhos na parte de cima, quando acabaram de acomodar todos os
homens. Ouvimos um só apito, tão baixo que parecia surgido ao
longe, como se não estivesse anunciando a nossa partida, mas que me
fez lembrar o canto do pássaro sobre o iroco, naquele fim de tarde
em Savalu. A minha avó também deve ter se lembrado, pois durante o
apito e por muito tempo depois, enquanto ele continuava ecoando,
segurou firme a minha mão, e devia estar fazendo o mesmo com a mão
da Taiwo, que, naquele momento, disse estar com vontade de fazer
xixi. A minha avó disse para ela esperar. Eu sabia que era medo,
pois eu e a Taiwo sempre sentíamos vontade de fazer xixi quando
ficávamos com medo, e não sei por que não sentimos naquele dia com
os guerreiros do rei Adandozan. Vistos do alto, devíamos estar
parecendo um imenso tapete, deitados no chão sem que houvesse espaço
entre um corpo e outro, um imenso tapete preto de pele de carneiro.
Um dos muçurumins, que parecia ser o chefe de todos eles, andava no
barracão com um tapete de pele de carneiro sobre os ombros. Acho que
não o deixaram embarcar com ele, como também não tinham deixado a
minha avó continuar com os Ibêjis. Mas eu o imaginei tirando o
tapete dos ombros e abrindo as suas muitas dobras mágicas, até que
ficasse tão grande que cobrisse todos nós. A sensação de calor e
sufoco seria a mesma.
Eu
tentava imaginar outras coisas para esquecer a vontade de fazer xixi,
até que a Taiwo reclamou novamente e a Tanisha disse à minha avó
que ela teria que fazer ali mesmo, deitada, como provavelmente todos
faríamos quando desse vontade, sem que houvesse terra para jogar por
cima. A minha avó então rasgou um pedaço da roupa e o deu à
Taiwo, para que se enxugasse depois, tomando cuidado para o xixi não
escorrer e molhar a cabeça do homem que estava deitado aos seus pés.
O homem não reclamou e nem se mexeu, então eu disse que queria
fazer também. Estava acostumada a fazer xixi em qualquer lugar, até
mesmo no meio da rua, mas fechada naquele porão era muito difícil.
Principalmente por saber que, ao ouvir o barulho ou sentir o cheiro,
alguém mais poderia ficar com vontade e fazer também, aumentando o
ranço daquele lugar. Tive nojo quando peguei o pano já molhado com
o xixi da Taiwo e quis desistir, mas não consegui segurar. Senti o
xixi escorrendo por entre as pernas e apertei o máximo que pude uma
contra a outra, para que não escorresse muito longe e não molhasse
mais o meu vestido, que ainda estava úmido da água do mar. O
tumbeiro apitou mais uma vez e pareceu ganhar velocidade, e eu só
pensava na hora em que nos deixariam sair dali para tomar a fresca.
Um
dos muçurumins gritou algo e os outros repetiram, saudando Alá. A
minha avó saudou primeiro a minha mãe e o Kokumo, depois os Ibêjis
e Nanã, e então pegou a minha mão e a da Taiwo e as levou ao
runjebe pendurado no pescoço, pedindo a proteção e a ajuda
de Ayzan, Sogbô, Aguê e Loko e por último deu um kaô
kabiecile oba Sango, ao que eu e a Taiwo respondemos “kaô”.
Muitas pessoas também responderam, e outras saudações e pedidos de
proteção foram ouvidos em várias línguas. Depois que todos
acabaram, o silêncio foi ainda maior, com a presença de Iemanjá,
Oxum, Exu, Odum, Ogum, Xangô e muitos eguns. A minha avó
comentou que, pelas saudações, ali deviam estar jejes, fons,
hauçás, igbos, fulanis, maís, popos, tapas, achantis e egbás,
além de outros povos que não conhecia. A Aja disse que era uma
hauçá convertida e seu marido era um alufá, e nos saudou à
maneira dos muçurumins, com um salamaleco. A minha avó não
respondeu, pois parecia não gostar muito da Aja e da Jamila,
antipatia retribuída pelas duas, que só conversavam comigo e com a
Taiwo, e poucas vezes com a Tanisha.
Durante
dois ou três dias, não dava para saber ao certo, a portinhola no
teto não foi aberta, ninguém desceu ao porão e estava quase
impossível respirar. Algumas pessoas se queixavam de falta de ar e
do calor, mas o que realmente incomodava era o cheiro de urina e de
fezes. A Tanisha descobriu que se nos deitássemos de bruços e
empurrássemos o corpo um pouco para a frente, poderíamos respirar o
cheiro da madeira do casco do tumbeiro. Era um cheiro de madeira
velha impregnada de muitos outros cheiros, mas, mesmo assim, muito
melhor, talvez porque do lado de fora ela estava em contato com o
mar. Quando não conseguíamos mais ficar naquela posição, porque
dava dor no pescoço, a minha avó dizia para nos concentrarmos na
lembrança do cheiro, como se, mesmo de longe e fraco, ele fosse o
único cheiro a entrar pelo nariz, principalmente quando o navio
começou a jogar de um lado para outro. As pessoas enjoaram,
inclusive nós, que vomitamos o que não tínhamos no estômago, pois
não comíamos desde o dia da partida, colocando boca afora apenas o
cheiro azedo que foi tomando conta de tudo. O corpo também doía,
jogado contra o chão duro, molhado e frio, pois não tínhamos
espaço para uma posição confortável. Quando uma pessoa queria se
mexer, as que estavam ao lado dela também tinham que se mexer, o que
sempre era motivo de protestos. Tudo o que queríamos saber era se
ainda estávamos longe do estrangeiro, e alguns diziam que já tinham
ouvido falar que a viagem poderia durar meses, o que provocou grande
desespero.
Os
muçurumins eram os que mais reclamavam, nem tanto pelas condições
em que viajávamos, pois, segundo a Aja, qualquer sacrifício valia a
pena se fosse por Alá, mas porque não estavam conseguindo cumprir
as obrigações da religião. Cinco vezes por dia eles tinham que se
virar na direção de Meca e dizer algumas orações, durante as
quais precisavam se levantar e abaixar várias vezes, como eu tinha
visto no barracão do forte, em Uidá. Fechados dentro do porão do
tumbeiro, sem nenhuma referência da direção que estávamos
seguindo, não tinham como saber para que lado ficava Meca. E também
por estarem amarrados uns aos outros, inclusive a quem não era
muçurumim, não podiam se movimentar, por falta de espaço e porque
nem todos queriam acompanhá-los. Nós, as mulheres, não estávamos
mais amarradas, mas a Aja e a Jamila também não fizeram as orações,
não sei se por terem que esperar pelos homens ou se tinham vergonha,
pois elas quase não conversavam quando algum homem estava por perto,
nem mesmo o marido delas. Mas ao fim de três dias, nem os muçurumins
reclamavam mais, e até a altura das vozes que diziam as rezas foi
diminuindo, pois estávamos muito cansados. Pela viagem, pelos
enjoos, pela dificuldade de dormir, pela falta de comida, pelo ar que
descia apodrecendo a garganta, pela sede. Alguns adoeceram e tiveram
febre, mas o que dava mais aflição eram os gemidos de um fulani que
tinha sido empurrado da escada e quebrara a perna, o osso chegando a
furar a pele. Uma mulher disse que ia rezar o machucado e perguntou o
nome dele, mas ninguém sabia e ele já não conseguia mais falar,
apenas delirava.
Foi
então que ficamos sabendo o motivo da demora no embarque dos homens,
pois os brancos tinham batizado todos eles com nomes que chamavam de
nomes cristãos, nomes de brancos, e àquele homem da perna
machucada, de acordo com um outro que estava logo atrás dele na
fila, tinham dado o nome de João. Soubemos que o padre que fez os
batizados tinha chegado atrasado, depois do embarque das mulheres. Os
guardas colocaram os homens em fila e, um por um, tiveram que dizer o
nome africano, o que podia ser revelado, é claro, e o lugar onde
tinham nascido, que eram anotados em um livro onde também
acrescentavam um nome de branco. Era esse nome que eles tinham que
falar para o padre, que então jogava água sobre suas cabeças e
pronunciava algumas palavras que ninguém entendia. Sabiam apenas que
era com tal nome que teriam que se apresentar no estrangeiro. Foi
tudo muito rápido, mas disseram que mesmo assim se formou uma grande
fila diante do padre, parecendo uma cobra que ia da beira da água
até quase a saída do barracão onde estivemos presos. Uma grande
cobra de fogo, pois era ladeada por guardas que formavam um corredor
iluminado por tochas.
Alguém
lembrou que o padre também tinha dito que, a partir daquele momento,
eles deviam acreditar apenas na religião dos brancos, deixando em
África toda a fé nos deuses de lá, porque era lá que eles
deveriam ficar, visto que os deuses nunca embarcam para o
estrangeiro. Quando alguém comentou isso, todos fizeram saudações
aos seus orixás, eguns ou voduns, demonstrando que não tinham
concordado. Um homem disse que tinha perguntado a um dos guardas onde
era o estrangeiro e a resposta foi que estávamos sendo enviados para
o Brasil. Ao ouvir isso, os muçurumins protestaram e disseram que
não tinham certeza se o Brasil ficava na mesma direção de Meca. Um
ketu comentou que já tinha ouvido dois brancos falarem sobre o
Brasil, quando trabalhava em uma fazenda de óleo de palma. Os
brancos disseram que o óleo seria enviado para o Brasil, junto com
algumas peças. Ele desconfiava que nós éramos o que os brancos
chamavam de peças, pois pessoas da família dele tinham desaparecido
depois da passagem de lançados perto de onde viviam, e que esses
lançados também falavam em Brasil. Esse homem se chamava Olaitan e
tinham dado a ele o nome de branco de Benevides, que não chegaria a
ser usado.
Ana Maria Magalhães, em Um defeito de cor
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