segunda-feira, 26 de agosto de 2024

A viagem


O tumbeiro apitou e partiu pouco tempo depois que paramos de ouvir barulhos na parte de cima, quando acabaram de acomodar todos os homens. Ouvimos um só apito, tão baixo que parecia surgido ao longe, como se não estivesse anunciando a nossa partida, mas que me fez lembrar o canto do pássaro sobre o iroco, naquele fim de tarde em Savalu. A minha avó também deve ter se lembrado, pois durante o apito e por muito tempo depois, enquanto ele continuava ecoando, segurou firme a minha mão, e devia estar fazendo o mesmo com a mão da Taiwo, que, naquele momento, disse estar com vontade de fazer xixi. A minha avó disse para ela esperar. Eu sabia que era medo, pois eu e a Taiwo sempre sentíamos vontade de fazer xixi quando ficávamos com medo, e não sei por que não sentimos naquele dia com os guerreiros do rei Adandozan. Vistos do alto, devíamos estar parecendo um imenso tapete, deitados no chão sem que houvesse espaço entre um corpo e outro, um imenso tapete preto de pele de carneiro. Um dos muçurumins, que parecia ser o chefe de todos eles, andava no barracão com um tapete de pele de carneiro sobre os ombros. Acho que não o deixaram embarcar com ele, como também não tinham deixado a minha avó continuar com os Ibêjis. Mas eu o imaginei tirando o tapete dos ombros e abrindo as suas muitas dobras mágicas, até que ficasse tão grande que cobrisse todos nós. A sensação de calor e sufoco seria a mesma.
Eu tentava imaginar outras coisas para esquecer a vontade de fazer xixi, até que a Taiwo reclamou novamente e a Tanisha disse à minha avó que ela teria que fazer ali mesmo, deitada, como provavelmente todos faríamos quando desse vontade, sem que houvesse terra para jogar por cima. A minha avó então rasgou um pedaço da roupa e o deu à Taiwo, para que se enxugasse depois, tomando cuidado para o xixi não escorrer e molhar a cabeça do homem que estava deitado aos seus pés. O homem não reclamou e nem se mexeu, então eu disse que queria fazer também. Estava acostumada a fazer xixi em qualquer lugar, até mesmo no meio da rua, mas fechada naquele porão era muito difícil. Principalmente por saber que, ao ouvir o barulho ou sentir o cheiro, alguém mais poderia ficar com vontade e fazer também, aumentando o ranço daquele lugar. Tive nojo quando peguei o pano já molhado com o xixi da Taiwo e quis desistir, mas não consegui segurar. Senti o xixi escorrendo por entre as pernas e apertei o máximo que pude uma contra a outra, para que não escorresse muito longe e não molhasse mais o meu vestido, que ainda estava úmido da água do mar. O tumbeiro apitou mais uma vez e pareceu ganhar velocidade, e eu só pensava na hora em que nos deixariam sair dali para tomar a fresca.
Um dos muçurumins gritou algo e os outros repetiram, saudando Alá. A minha avó saudou primeiro a minha mãe e o Kokumo, depois os Ibêjis e Nanã, e então pegou a minha mão e a da Taiwo e as levou ao runjebe pendurado no pescoço, pedindo a proteção e a ajuda de Ayzan, Sogbô, Aguê e Loko e por último deu um kaô kabiecile oba Sango, ao que eu e a Taiwo respondemos “kaô”. Muitas pessoas também responderam, e outras saudações e pedidos de proteção foram ouvidos em várias línguas. Depois que todos acabaram, o silêncio foi ainda maior, com a presença de Iemanjá, Oxum, Exu, Odum, Ogum, Xangô e muitos eguns. A minha avó comentou que, pelas saudações, ali deviam estar jejes, fons, hauçás, igbos, fulanis, maís, popos, tapas, achantis e egbás, além de outros povos que não conhecia. A Aja disse que era uma hauçá convertida e seu marido era um alufá, e nos saudou à maneira dos muçurumins, com um salamaleco. A minha avó não respondeu, pois parecia não gostar muito da Aja e da Jamila, antipatia retribuída pelas duas, que só conversavam comigo e com a Taiwo, e poucas vezes com a Tanisha.
Durante dois ou três dias, não dava para saber ao certo, a portinhola no teto não foi aberta, ninguém desceu ao porão e estava quase impossível respirar. Algumas pessoas se queixavam de falta de ar e do calor, mas o que realmente incomodava era o cheiro de urina e de fezes. A Tanisha descobriu que se nos deitássemos de bruços e empurrássemos o corpo um pouco para a frente, poderíamos respirar o cheiro da madeira do casco do tumbeiro. Era um cheiro de madeira velha impregnada de muitos outros cheiros, mas, mesmo assim, muito melhor, talvez porque do lado de fora ela estava em contato com o mar. Quando não conseguíamos mais ficar naquela posição, porque dava dor no pescoço, a minha avó dizia para nos concentrarmos na lembrança do cheiro, como se, mesmo de longe e fraco, ele fosse o único cheiro a entrar pelo nariz, principalmente quando o navio começou a jogar de um lado para outro. As pessoas enjoaram, inclusive nós, que vomitamos o que não tínhamos no estômago, pois não comíamos desde o dia da partida, colocando boca afora apenas o cheiro azedo que foi tomando conta de tudo. O corpo também doía, jogado contra o chão duro, molhado e frio, pois não tínhamos espaço para uma posição confortável. Quando uma pessoa queria se mexer, as que estavam ao lado dela também tinham que se mexer, o que sempre era motivo de protestos. Tudo o que queríamos saber era se ainda estávamos longe do estrangeiro, e alguns diziam que já tinham ouvido falar que a viagem poderia durar meses, o que provocou grande desespero.
Os muçurumins eram os que mais reclamavam, nem tanto pelas condições em que viajávamos, pois, segundo a Aja, qualquer sacrifício valia a pena se fosse por Alá, mas porque não estavam conseguindo cumprir as obrigações da religião. Cinco vezes por dia eles tinham que se virar na direção de Meca e dizer algumas orações, durante as quais precisavam se levantar e abaixar várias vezes, como eu tinha visto no barracão do forte, em Uidá. Fechados dentro do porão do tumbeiro, sem nenhuma referência da direção que estávamos seguindo, não tinham como saber para que lado ficava Meca. E também por estarem amarrados uns aos outros, inclusive a quem não era muçurumim, não podiam se movimentar, por falta de espaço e porque nem todos queriam acompanhá-los. Nós, as mulheres, não estávamos mais amarradas, mas a Aja e a Jamila também não fizeram as orações, não sei se por terem que esperar pelos homens ou se tinham vergonha, pois elas quase não conversavam quando algum homem estava por perto, nem mesmo o marido delas. Mas ao fim de três dias, nem os muçurumins reclamavam mais, e até a altura das vozes que diziam as rezas foi diminuindo, pois estávamos muito cansados. Pela viagem, pelos enjoos, pela dificuldade de dormir, pela falta de comida, pelo ar que descia apodrecendo a garganta, pela sede. Alguns adoeceram e tiveram febre, mas o que dava mais aflição eram os gemidos de um fulani que tinha sido empurrado da escada e quebrara a perna, o osso chegando a furar a pele. Uma mulher disse que ia rezar o machucado e perguntou o nome dele, mas ninguém sabia e ele já não conseguia mais falar, apenas delirava.
Foi então que ficamos sabendo o motivo da demora no embarque dos homens, pois os brancos tinham batizado todos eles com nomes que chamavam de nomes cristãos, nomes de brancos, e àquele homem da perna machucada, de acordo com um outro que estava logo atrás dele na fila, tinham dado o nome de João. Soubemos que o padre que fez os batizados tinha chegado atrasado, depois do embarque das mulheres. Os guardas colocaram os homens em fila e, um por um, tiveram que dizer o nome africano, o que podia ser revelado, é claro, e o lugar onde tinham nascido, que eram anotados em um livro onde também acrescentavam um nome de branco. Era esse nome que eles tinham que falar para o padre, que então jogava água sobre suas cabeças e pronunciava algumas palavras que ninguém entendia. Sabiam apenas que era com tal nome que teriam que se apresentar no estrangeiro. Foi tudo muito rápido, mas disseram que mesmo assim se formou uma grande fila diante do padre, parecendo uma cobra que ia da beira da água até quase a saída do barracão onde estivemos presos. Uma grande cobra de fogo, pois era ladeada por guardas que formavam um corredor iluminado por tochas.
Alguém lembrou que o padre também tinha dito que, a partir daquele momento, eles deviam acreditar apenas na religião dos brancos, deixando em África toda a fé nos deuses de lá, porque era lá que eles deveriam ficar, visto que os deuses nunca embarcam para o estrangeiro. Quando alguém comentou isso, todos fizeram saudações aos seus orixás, eguns ou voduns, demonstrando que não tinham concordado. Um homem disse que tinha perguntado a um dos guardas onde era o estrangeiro e a resposta foi que estávamos sendo enviados para o Brasil. Ao ouvir isso, os muçurumins protestaram e disseram que não tinham certeza se o Brasil ficava na mesma direção de Meca. Um ketu comentou que já tinha ouvido dois brancos falarem sobre o Brasil, quando trabalhava em uma fazenda de óleo de palma. Os brancos disseram que o óleo seria enviado para o Brasil, junto com algumas peças. Ele desconfiava que nós éramos o que os brancos chamavam de peças, pois pessoas da família dele tinham desaparecido depois da passagem de lançados perto de onde viviam, e que esses lançados também falavam em Brasil. Esse homem se chamava Olaitan e tinham dado a ele o nome de branco de Benevides, que não chegaria a ser usado.

Ana Maria Magalhães, em Um defeito de cor

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