Era
a imagem de uma ruína do que antes devia ter sido um monumento de
homem e portava as clássicas barbas do profeta.
– Pois
é – disse, limpando a boca com um gesto que acabou por levar seu
dedo em riste em direção ao Corcovado [e no ímpeto quase cai de
tão bêbado que estava]. – Pois é. Fica lá ele, coitado, o dia
inteiro de braços abertos abençoando a cidade... [seu olhar
dardejou em torno], abençoando a cidade que nem liga mais para ele.
Eu, Mansueto, filho de Anacleto, digo isso porque sei. Eu, Mansueto,
sei que aquele homem lá, que por sinal não é homem não é nada, é
Jesus Cristo, filho de Maria, rei dos reis, tábua da salvação,
esperança do mundo, conforto dos aflitos, pai dos pecadores [a
partir daí sua voz embargou-se e ele começou a choramingar] – eu,
Mansueto, sei que aquele homem lá está sozinho, está sozinho no
alto daquela montanha também chamada Corcovado. Eu, Mansueto, sei
que toda santa noite aquele homem lá derrama as suas santas lágrimas
de pena por esta pobre cidade mergulhada no crime e no pecado...
Foi
deste ponto em diante que eu tirei a caneta e comecei a anotar rápido
o teor das lamentações do profeta urbano.
– Porque
em cada coração habita a luxúria, a maldade e a sede de ouro!
Porque todos só pensam no poder e no luxo! Porque cada um só quer
ter o seu rabo-de-peixe [o profeta estava um pouco atrasado no tempo
diante da atual mania dos Mercedes] e o povo nem sequer tem peixe
para comer... [aí os soluços embargaram-lhe a voz e ele teve de
parar para enxugar os olhos com a manga do paletó em farrapos].
E
então exclamou com os punhos cerrados na direção do Cristo:
– Por
que, Senhor, pergunto eu, Mansueto, filho de Anacleto, por que
continuas abençoando esta cidade, de vício e abandonas o pobre ao
seu triste destino de comer o resto dos ricos? Por que ficas de
braços abertos feito um pateta em vez de lançar os vossos exércitos
conta o fariseu – feito o seu Guimarães lá do armazém que só
fia se apalpar a mulher dos outros. Eu sei porque eu vi. Português
descarado! Ainda hei de fazer o mesmo com a tua mulher, ouviu! que
embora seja uma santa senhora há de pagar pelo pecador!
Neste
momento ele olhou em torno com ar de briga e dando comigo me
interpelou com veemência:
– Você
aí! Que sabes da maldade humana? Repara só nele lá em cima, de
braços abertos, abençoando esta cidade toda esburacada, chorando de
noite de tristeza porque seus filhos o abandonaram para cair na farra
com mulheres que não valem nem para jogar no lixo, em todas essas
Copacabanas [seu braço girou violentamente em torno] de mulatinhas
todas pintadas como se fossem umas [censura], que aliás são! São
umas [censura] de [censura] que saem remexendo a [censura] e atacando
os homens como se fossem tigres. E para quê? Dizei-me para quê? Não
sabe? Ah! [apontando-me] ele não sabe... Bem se vê que é um
mocinho [obrigado, profeta!] rico que não sabe de nada senão cavar
o ouro e ir gastar com as mulheres de todas essas Copacabanas! Mas eu
te peço, Senhor: lança os vossos exércitos contra o fariseu e
deixa dessa pose que não te adianta nada, porque esse negócio de
ficar de braço aberto não resolve, a gente quer ver mesmo é
diminuir o preço das coisas, as pessoas vão acabar mesmo é comendo
umas às outras, porque carne não tem, só a carne dessas [censura]
de todas essas Copacabanas que o raio de Deus fulmine e consuma e
toque fogo em toda essa [censura] que anda por aí!
Dito
o quê, ele me olhou com um olhar cheio de lágrimas, que parecia vir
do fundo de um caos bíblico de recordações, misérias, humilhações
e ressentimentos sofridos, moveu a cabeça com um ar trêmulo de
animal vencido e saiu em frente, dois passos para cá, três para lá,
em meio à risota e aos comentários dos circunstantes; mas mesmo de
longe sua voz me chegava como a de um Isaías imprecando:
– Mas
essa sopa vai acabar! Essa sopa vai acabar.
Vinicius de Moraes, em Para viver um grande amor
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