domingo, 25 de agosto de 2024

AS RÃS | Drama em nove atos




PERSONAGENS

TIA, ginecologista aposentada, tem mais de setenta anos.
GIRINO, dramaturgo, sobrinho da tia, tem mais de cinquenta anos.
LEOAZINHA, ex-assistente da tia, mulher de Girino, tem mais de cinquenta anos.
CHEN SOBRANCELHA, barriga de aluguel, tem mais de vinte anos. Sobreviveu a um incêndio que a deixou gravemente desfigurada.
CHEN NARIZ, pai de Sobrancelha, colega de escola de Girino. Morador de rua, tem mais de cinquenta anos.
YUAN BOCHECHA, colega de escola de Girino, executivo de um ranário que opera uma agência clandestina de barrigas de aluguel, tem mais de cinquenta anos.
PRIMO, chamado Jin Xiu, primo de Girino, funcionário de Yuan Bochecha, tem mais de quarenta anos.
LI MÃO, colega de escola de Girino, dono de restaurante, tem mais de cinquenta anos.
DELEGADO, policial com cerca de quarenta anos.
WEI, policial feminina recém-formada na academia de polícia, tem cerca de vinte anos.
HAO MÃO GRANDE, mestre de artesanato folclórico, cria bonecos de barro, marido da tia.
QIN HE, mestre de artesanato folclórico, cria bonecos de barro, admirador da tia.
LIU GUIFANG, colega de escola de Girino, diretora da hospedaria do governo distrital.
GAO MENGJIU, prefeito de Gaomi durante o período da República da China (Período anterior à República Popular da China, encerrado em 1949).
ALGUNS GUARDAS.
DOIS SEGURANÇAS DO HOSPITAL.
DOIS HOMENS MASCARADOS.
CINEGRAFISTAS, UMA REPÓRTER DE TV E OUTRAS PESSOAS.

Ato I

Maternidade Sino-Americana Jiabao. Sua entrada suntuosa lembra um órgão público. Na parede de mármore, à esquerda da entrada, vê-se uma placa com o nome do hospital.

À direta da entrada, um grande outdoor exibe um mosaico formado por centenas de fotos de bebês, cada um numa pose diferente.

À esquerda da entrada, um segurança de uniforme cinza, em posição de sentido, bate continência para cada um dos carros de luxo que passam por ele. Seus movimentos exagerados parecem ridículos.
Brilha uma enorme lua cheia. Ouvem-se barulhos de bombinhas vindos de trás da cortina. De vez em quando, fogos de artifício iluminam o céu.

SEGURANÇA (tira o celular do bolso para ler as mensagens, não se contém e ri em voz alta) Hehe…

O chefe do segurança sai pelo portão silenciosamente.

CHEFE (vai até atrás do segurança e diz em voz baixa, mas em tom severo) Li Jiatai, de que está rindo?! (sente algo saltar sobre seu pé). Ué, em que estação estamos? Por que tantas rãs? De que está rindo?!
SEGURANÇA (assustado, se atrapalha e se apressa em voltar à posição de sentido) Chefe, é o aquecimento global, o efeito estufa; não ri de nada…
CHEFE Como assim, não riu de nada? (sacode o pé para espantar a rã) O que será que é isso? Será que vamos ter outro terremoto? Estou perguntando do que estava rindo?
SEGURANÇA (olha ao redor para se certificar de que ninguém está por perto e ri) Chefe, essa piada é muito engraçada…
CHEFE Já disse que vocês não podem mandar mensagens durante o expediente!
SEGURANÇA Chefe, não mandei mensagem nenhuma. Estava só olhando.
CHEFE E faz diferença? Se o diretor Liu vir isso, você perde seu emprego.
SEGURANÇA Se perder, perdi, não quero mais trabalhar aqui mesmo. O dono do ranário é marido de uma tia minha. Minha mãe já conversou com essa tia e pediu para ela falar para o marido me arrumar um emprego lá…
CHEFE (impaciente) Tudo bem, tudo bem! Você me deixa confuso com todos esses tios e tias. Com um tio desses, é claro que não vai ter medo de perder o emprego. Mas este é o meu ganha-pão. Por isso, enquanto estiver trabalhando, não pode receber nem mandar mensagens, não fale ao telefone, está tudo proibido!
SEGURANÇA (de peito erguido e em alerta) Sim, senhor!
CHEFE Tenha mais cuidado!
SEGURANÇA (de peito erguido e em alerta) Sim, senhor! (não se contém e ri), hehe…
CHEFE Você bebeu mijo de cadela, ou sonhou que casou com mulher rica? Fale logo, de que está rindo?!
SEGURANÇA Não estou rindo de nada…
CHEFE (estende a mão direita) Dá aqui!
SEGURANÇA O quê?
CHEFE O que você acha? O celular!
SEGURANÇA Chefe, juro que não vou olhar mais.
CHEFE Pare de me enrolar! Não vai me entregar? Então vou contar ao diretor Liu.
SEGURANÇA Chefe, estou namorando, não posso ficar sem celular…
CHEFE Quando seu pai namorava, nem telefone fixo tinha, mas nem por isso deixou de se casar com sua mãe, não foi? Anda logo!
SEGURANÇA (relutante, entrega o celular ao chefe) Não queria rir, mas essa mensagem é muito engraçada.
CHEFE (manuseando o celular) Quero ver que mensagem tão engraçada é essa… “Para formar excelentes velocistas, a Comissão Nacional de Esportes ordenou o casamento entre Qian Bao, campeão dos cem metros, com Jin Lu, campeã de maratona. No final da gestação, Jin Lu foi ao hospital para ter o bebê. Qian Bao perguntou ao médico: “Minha esposa teve um filho ou uma filha?”. “Não vi direito”, respondeu, “logo depois de nascer o bebê correu sem deixar rastro.” Que achou de tão engraçado nessa piada velha? Me deixe ler algumas (o chefe saca seu celular, prepara-se para ler, mas logo percebe algo, guarda os dois celulares no próprio bolso). Hoje é o Festival da Lua Cheia de Outono, o diretor Liu recomenda atenção redobrada nos feriados!
SEGURANÇA (estende a mão) O meu celular!
CHEFE Está confiscado temporariamente. Devolvo depois do expediente!
SEGURANÇA (implorando) Chefe, estamos em pleno feriado, todas as famílias reunidas, felizes, alegres, comendo bolo, soltando fogos, admirando a lua cheia, namorando, mas eu estou aqui, parado como um poste, e você ainda me priva desse prazer de enviar torpedos para minha namorada.
CHEFE Pare de enrolar e faça o seu plantão direito. Precisa ficar com olhos e ouvidos em alerta para barrar qualquer suspeito do lado de fora desse portão…
SEGURANÇA Deixe disso, para que cair na conversa do Liu Cabeção? Quem vem aqui em pleno feriado? Bandido também tira férias, não é?
CHEFE Quero mais seriedade! Acha que estou brincando? (em voz baixa, misterioso). Na noite do Ano-Novo chinês, veio um bando de terroristas. Eles invadiram (abaixa a voz) a maternidade, levaram oito bebês como reféns…
SEGURANÇA (sério) Oh…
CHEFE (misterioso) Sabe a amante de quem está no nosso hospital esperando o parto?
SEGURANÇA (ouve atento o que o chefe sussurra)
CHEFE (em voz baixa, misterioso) … entendeu agora? Lembre-se, o Mercedes preto e o BMW verde são dele. Precisa bater continência e seguir com o olhar. Não pode parecer nem um pouco desleixado!
SEGURANÇA Sim, senhor! (estende a mão). Agora pode me devolver meu celular?
CHEFE Não, de jeito nenhum. A noite de hoje é uma data auspiciosa, a esposa do presidente Jin pode ter o bebê agora, a nora do secretário Song também tem o parto previsto para hoje, Audi preto A6, placa 08858. Fique de olho!
SEGURANÇA (descontente) Esses filhos da puta, como sabem escolher o momento para nascer! Minha namorada disse que a lua de hoje é a maior e a mais redonda dos últimos cinquenta anos (ergue a cabeça para olhar a lua e cita um verso tradicional): “A lua brilhante, quando nasceu? Ergo a taça e pergunto ao escuro céu…”.
CHEFE (irônico) Chega de afetação! Se soubesse declamar tão bem na escola, não viraria segurança (em alerta). O que é aquilo?!

Entra Chen Sobrancelha vestindo túnica e véu pretos, segura um pequeno suéter vermelho.

CHEN S. (balança o corpo, parece embriagada) Meu filho… meu filho… cadê você? A mamãe está te procurando. Onde você se escondeu…
SEGURANÇA É ela de novo, aquela doida.
CHEFE Vai, tire-a daqui!
SEGURANÇA (fica em posição de sentido) Não posso me ausentar do plantão!
CHEFE É uma ordem: tire-a daqui!
SEGURANÇA Mas estou de plantão!
CHEFE Sua área de atuação se estende a cinquenta metros de cada lado do portão!
SEGURANÇA Em caso de ocorrência suspeita, o guarda de plantão precisa permanecer no posto para prevenir a entrada de elementos suspeitos pelo portão e comunicar imediatamente ao supervisor (tira o walkie-talkie da cintura). Chefe, comunico o aparecimento de um elemento suspeito embaixo do outdoor à direita do portão. Favor mandar reforços assim que possível!
CHEFE Puta que o pariu, mas que pilantra!

A iluminação foca na frente do outdoor.

CHEN S. (aponta para as fotos de bebês no outdoor) Filho, meu filho, a mamãe está te chamando, escutou? Está brincando de esconde-esconde com a mamãe? Meu danadinho, meu tesouro, venha mamar, senão o cachorrinho vai roubar o leite da mamãe… (aponta para uma das crianças no outdoor). Você quer meu leite? Não deixo, não, você nem é meu filho! Meu filho tem olhos grandes e dobrinha nas pálpebras, mas você tem olhos pequenos demais… E você quer meu leite, mas também não é meu bebê, meu bebê tem o rosto corado feito maçã, mas o seu é amarelado… Você, menos ainda, meu bebê é um menino gorducho, mas você é uma menina, menina não vale nada… (lúcida). Pagam cinquenta mil por um menino, e só trinta mil por uma menina! Seus filhos da puta, valorizam os meninos, desprezam as meninas, que mentalidade feudal. Suas mães não são mulheres? E suas avós não são mulheres? Se todos tivessem só filho homem, e nenhuma filha, este mundo não ia acabar? Vocês, altos funcionários, grandes intelectuais e pessoas de amplo conhecimento, por que não entendem um raciocínio tão simples?… O quê, você está dizendo que é meu filho? Pirralho, você deve estar babando com o cheiro do meu leite? (franze o nariz). Quer me enganar? Seu pirralho, nem em sonho! Escutem aqui, mesmo que tapem meus olhos com uma faixa preta, mesmo que misturem meu bebê com outras mil crianças, ainda consigo saber quem é meu filho só pelo cheiro! Sua mãe nunca te disse? Cada bebê tem um cheiro diferente! Quer mamar? Vá procurar sua mamãe. Ah, pois é, vocês, crianças de ricos não falam mamãe, é “mamã”, não dizem mamar, é amamentar… O quê? Sua mãe não tem leite? Que mãe é essa que não tem leite? Vocês ficam falando de progresso, acho que isso é retrocesso. Retrocederam para não terem o filho pelo canal natural, e os seios não dão mais leite. Deixaram o trabalho para as vacas e ovelhas. Crianças que crescem tomando leite de vaca fedem a gado, as que tomam leite de ovelha recendem a ovelha. Só quem cresce tomando leite humano é que tem cheiro de gente. Querem comprar meu leite? Nem pensar. Não vendo nem que me paguem uma montanha de ouro, estou guardando para meu filho… Meu filho, venha logo… Senão esses meninos vão roubar meu leite. Olha só como eles são gulosos, já abriram a boca; estão todos com fome, suas mães venderam seu leite em troca de cosméticos para passar no rosto, ou de perfume para passar no corpo. Elas não são boas mães, são pura vaidade, não ligam para a saúde da criança… Meu filho querido, venha logo…
CHEFE (fica em posição de sentido, bate continência) Senhora, aqui é uma maternidade, as parturientes e os bebês precisam de um ambiente silencioso. Por isso, peço-lhe que se retire imediatamente e pare de fazer barulho!
CHEN S. Quem é você? O que está fazendo aqui?
CHEFE Sou o segurança!
CHEN S. O que faz um segurança?
CHEFE Mantemos a ordem social e defendemos a segurança de órgãos públicos, escolas, instituições e empresas, correios, bancos, centros comerciais, hotéis, estações e outros!
CHEN S. Conheço você! (dá uma risada). Conheço você! Você é o guarda-costas de Yuan Bochecha. Chamam vocês de cão de guarda!
CHEFE Não pode insultar a nossa dignidade! Sem gente como nós, a sociedade cairia no caos!
CHEN S. Foi você que levou o meu bebê! Consigo reconhecê-lo mesmo sem o jaleco branco e a máscara grande!
CHEFE (chocado) Senhora, tem de se responsabilizar por suas palavras. Posso processá-la por calúnia!
CHEN S. Acha que não o reconheço nessa roupa? Acha que com o uniforme de segurança você se torna uma boa pessoa?! Você é um cachorro criado por Yuan Bochecha. Wan Coração, aquela bruxa, fez o parto do meu filho e só me deixou dar uma olhada… (angustiada). Não… Nem uma olhada ela me deixou dar… Elas taparam meu rosto com um pano branco, queria ver o meu filho, só uma olhada, mas elas o levaram sem me deixar dar sequer uma olhada… Mas ouvi o choro, meu filho estava à minha procura, chorava porque queria me ver também. Não há neste mundo filho que não queira ver a mamãe! Mas elas o levaram à força. Sei que ele estava com fome, queria mamar. Todos vocês sabem como o colostro é valioso para o filho. Acham que tive pouco estudo e não sei dessas coisas? Sei sim, sei de tudo. Consigo canalizar o melhor do meu corpo para os meus seios, o cálcio dos ossos, a essência da medula óssea, a proteína do sangue e as vitaminas da carne, é tudo bombeado para os seios. Depois de beber do meu leite, meu filho não vai pegar resfriado, nem diarreia, nem febre, vai crescer mais rápido, melhor e mais bonito. Mas vocês o levaram de mim sem deixá-lo tomar um gole sequer (avança sobre o chefe e o agarra pela roupa).
CHEFE (perturbado) Senhora, a senhora com certeza está enganada. Que bochecha, que rosto, não sei do que está falando…
CHEN S. É claro que vai dizer que não conhece. Bando de ladrões, bandidos, demônios que roubam crianças para vender. Vocês podem não me conhecer, mas eu conheço vocês. Não foram vocês que levaram meu bebê à força e me deram dois comprimidos para dormir? Quando acordei, não foram vocês que mentiram para mim que o bebê nasceu morto? Não foram vocês que arranjaram um gato morto esfolado e me disseram que era o corpo do meu filho? Seus bandidos, levaram meu filho e ainda não querem me pagar o serviço. Ficou combinado que me pagariam cinquenta mil por um menino, mas só me pagaram dez mil porque disseram que meu bebê nasceu morto. Levaram meu filho e ainda querem roubar meu colostro! Vieram tirar meu leite com tigela e mamadeira e ainda dizem que é dez iuanes o mililitro! Animais. O meu colostro é guardado para meu filho! Dez iuanes? Não vendo nem por cem mil!
CHEFE Senhora, mais uma vez, peço-lhe que se retire daqui, ou vou chamar a polícia.
CHEN S. Chamar a polícia? Ótimo! Estou mesmo querendo encontrar algum policial. Eles são da polícia popular e amam o povo. Se uma pessoa do povo perder sua criança, o policial vai fazer alguma coisa, não vai?
CHEFE Com certeza vai fazer algo. Mesmo que alguém perca um cachorro, a polícia ajuda a procurar, uma criança então, nem se fala.
CHEN S. Pois bem, vou procurar a polícia.
CHEFE Isso mesmo, vá logo (indica a direção). Siga por esta rua, vire à direita no sinal, bem ao lado de um caraoquê fica a delegacia da rua Binhe.

Um carro sai do hospital buzinando.

CHEN S. (para por um momento, parece despertar de repente) Meu filho, eles pegaram meu filho e levaram nesse carro (corre em direção ao carro). Seus ladrões, devolvam meu filho…

O chefe tenta impedi-la, mas Chen Sobrancelha, reunindo uma força súbita e descomunal, se choca contra o chefe, que cambaleia.

CHEFE (irritado) Pare-a!

O segurança no portão avança e agarra Chen Sobrancelha, que quer impedir a passagem do carro. Sobrancelha luta violentamente para se livrar. O chefe a alcança e os dois homens tentam conter Sobrancelha. Na luta, o véu preto cai e mostra o rosto assustador de uma paciente queimada. Os dois seguranças se assustam e dão um passo para trás.

SEGURANÇA Ai, minha mãe…!
CHEFE (olhando para as pequenas rãs esmagadas sob as rodas e os sapatos) Mas que merda, de onde estão vindo essas criaturas?

Cortina.

Mo Yan, em As rãs

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