essas
coisas do sexo eram muito importantes, por isso parecia muito difícil
conciliar uma fidelidade amorosa com a vontade tão desenfreada de
entrar numa rapariga. e quantas técnicas poderiam ocorrer-me para
que uma moça apreciasse o meu desejo, mijando nas ruas e tossindo
alto para que não se desapercebessem da minha presença. e logo tão
depressa se ruborizavam e deixavam apreender de suspiros,
envergonhadas de vontade, muito atazanadas pelas carnes. e era tão
mais simples quando pudessem escapar-se para fora dos caminhos que
percorriam, corajosas e impensáveis a fugir dos trajectos, por um
momento de volúpia em que se teriam conspurcadas na honra. mas nada
para que eu contribuísse, calado de orgulhos, só aproveitando o que
era dado sem vãs glórias, sem notícia que não a do segredo mais
absoluto da memória. era como fazia, usando-as para belo prazer de
ambos e emudecendo o orgulho que pudesse ter em contar o sucedido.
depois do acto, honrados de novo os dois, éramos desconhecidos
daquilo e ninguém que nos perguntasse, se pudesse desconfiar, teria
resposta afirmativa, que convictamente lhe diríamos que não. que
nunca o fizemos. e assim o dizia à brunilde, dizia que eu conhecera
rapariga desta cor clara ou ruiva, ou morena, ou mamuda ou lisa,
dentro ou fora das ruas, mas nunca que nome teria. soubesse eu muitas
vezes os seus nomes, e nunca quem me pareciam ser, como se as olhasse
e pudesse reconhecer-lhes as famílias, és dos sargas, cara chapada,
como aliás algumas acabavam por dizê-lo de mim, e eu disfarçava,
encolhia os ombros e saía ligeiro a pensar em mais nada.
a
brunilde achava que dom afonso era pouco competente, e eu começara a
desconfiar que alguém mais se punha nela, tão sabedora começava a
soar. o meu pai arredava-me dela, talvez já consciente de que se
deitava aos préstimos de puta para dom afonso. eu recolhia-me aos
animais, a sonhar com a minha noiva. arranjado para a receber logo
que pudesse, casado de igreja, autorizado para a ter só minha e a
educar à maneira das minhas fantasias, como devia ser. como devia
ser um pai de família, servido de esposa, a precaver tudo, a ter as
vezes de responsável.
a
minha mulher haveria de ser a ermesinda. eu sabia quem ela era, já a
tivera perto por diversas vezes. era filha de um pobre homem que o
meu pai conhecia da vida toda. mais nova do que eu dois anos, queriam
casá-la para que se tivesse em honras antes que algum malandro lhe
deitasse a mão. era muito bela, a mais bela das raparigas que
existiam, diziam, e por isso os riscos de a levarem à força eram
muitos, mais valia que um rapaz a tomasse em casamento e lhe
ensinasse o de ser esposa, bem como aturasse ele as forças de a
preservar em casa. era uma rapariga feliz, mostrava, muito rosada
como as flores e, quando passava nas ruas a buscar coisas que os pais
mandavam, era muito parecida com uma coisa branca que impressionasse
a escuridão das casas e das outras pessoas. quantas vezes eu a ia
ver de propósito a descer rua abaixo sem olhar para os lados, já os
homens coçados dela, a ganirem alfabetos porcos para a encostarem de
sexo às paredes e ao chão. mas ela descia e subia trajecto abaixo e
acima sem abrir os olhos dos pés, calada sem nada, à espera de
sobreviver virgem a uma beleza que se tornava famosa. e era como se
metia em casa, ansiosa por sair, portadas das janelas abertas, a mãe
espalmando-lhe a mão no rabo, não fosse ver à janela algum moço
que a fizesse cair de perdição lá abaixo. caísse ela janela
abaixo aos meus braços, esperava eu, e ela já me olhava por vezes,
sem saber que era eu quem lhe rondava o destino, tido ali em sorte
pelo facto de os nossos pais se identificarem em amizades antigas.
era eu, por sorte ali distinguido, um moço como outro qualquer, mas
dos sargas, sem estropios de corpo nem maleitas de cabeça,
escorreito nos trabalhos e incumbências, ao serviço de um grande
senhor, protegido assim por deferência divina, como garantido no
tempo que me restasse de vida. e assim ela se teria, guardada em asa
de grande senhor, para cumprir vezes de mulher pobre mas digna de
carnes e direcção.
claro
que me corria à cabeça a ideia de que abriria perigos novos por
trazer a mim tão doce rapariga. como custaria manter o meu
território em redor dela, fazer dela algo tanto meu que outros
estafermos não se abeirassem para deitar mão do seu fruto
apetecido. e como me seria impossível reconhecer o desgaste desse
fruto se era virgem e tão cedo não se acusaria de marcas que o
desfizessem aos meus sentidos. assim estava eu de ansiedades, a
contar as épocas para que chegasse a promessa e logo o casamento, e
entre os prazeres se conhecessem, enfim, as dificuldades. podia
imaginar, assim eu o fazia às outras mulheres comprometidas, algumas
profissionais de homens, juntas em casas deles após viuvez
acumulada, como mulheres sem poiso, a viver de andar constantemente à
procura de algo que não se encontrava. eu teria espírito para
proteger a minha mulher e lhe pôr freios. ela haveria de sentir por
mim amor, como às mulheres era competido, e viveria nessa ilusão,
enganada na cabeça para me garantir a propriedade do corpo.
invadirei a sua alma, pensava eu, como coisa de outro mundo a
possuí-la de ideias para que nunca se desvie de mim por vontade ou
instinto, amando-me de completo sem hesitações nem repugnâncias. e
assim me servirá vida toda, feliz e convencida da verdade.
os
pedidos estavam feitos. era tão simples quanto isso. que a filha
deles precisava de homem para um nome que a assinasse, e eu, dos
sargas, chamar-lhe-ia de pontes para a deixar a salvo de desonras por
qualquer prenhez que lhe aparecesse na barriga. serapião, que era,
sabíamos, para ser sarga como todos nós, a ermesinda dos sargas,
mulher do baltazar sarga, o rapaz mais velho, um moço possante e
trabalhador. era como se esperava, revia eu esse futuro no meu
pensamento ávido. dom afonso estava de acordo, e temia eu que
estivesse também curioso por se ter perto de nova rapariga e assim
exercer o seu domínio sobre todos nós, ultrapassando os
mandamentos. mas nada era explícito, só a sua autorização que
fora dada para que nos casássemos e tivéssemos guarida a meias na
casa de meu pai. tudo se prepararia como estava planeado. a sarga
teria um coberto pequeno, feito por nós com umas madeiras velhas
dispensadas das necessidades dos senhores, e ali ficaria, bem ao lado
da nossa casa, encostada a uma das paredes. e era como eu temia que
enlouquecesse mais ainda, como ficaria pior protegida de tudo para as
noites de tempestade, agachada numas madeiras bichadas e velhas sem
proveitos para lutar contra águas e ventos. mas nada mais podíamos,
era preciso assim, para desgraça da vaca e do coração de todos
nós. já o aldegundes andava apertado sem acreditar que expulsávamos
a sarga de casa, metida para o campo como um objecto capaz de sofrer.
eu
explicava-lhe com cuidado que era para o meu bem, limpo o quarto onde
ela se metia à noite, desfeito de esterco e palhas, daria uma boa
sala para uma cama e uma arca onde guardaríamos corpos e roupa, eu e
a ermesinda. mais tarde veríamos o que fazer. assim que ermesinda
emprenhasse e os filhos viessem ocupar espaço, logo buscaríamos
auxílio, em troca das forças dos braços e horas, a dom afonso que
nos poria em lugar maior. estava falado com ele, conversa de meu pai,
a vir da casa com a cara brilhante de felicidade, dom afonso
autorizou, vamos ter casamento e desfazer a solidão do rapaz. vai
ser um homem, vamos ter um homem. ergui as mãos à cara e tentei
acreditar que casaria com a ermesinda, a bela rapariga a esconder os
olhos, e como dedicaria meus dias a enchê-los da minha imagem, para
que viesse a sua condição de mulher apenas da minha condição de
homem.
não
me era permitido saber exactamente quando teria casamento. passava
algum tempo desde que me fora comunicado o decidido, que eu estaria
já com dezassete anos e seria impossível continuar à
responsabilidade do meu pai, que permanecia ocupado com a criação
do meu irmão e com a aflição de minha mãe, mulher pior do que as
outras, incapaz de estabilizar por completo as suas falhas, tão
naturais. dessa ninguém o livra, é de lei, mas dos filhos pede deus
que se larguem os pais para que se multipliquem. assim como ter de ir
embora porque o tempo estava decorrido e nada mais faltava fazer. o
meu pai via a minha mãe de cangalhas e era como se explicava a
maravilha de finalmente despachar um filho por completo para a idade
maior. mas não ia eu embora de realidade. se ficava ali no lugar da
sarga, ainda estaria tão ligado aos pais. mas era por começo. por
começo a idade maior traria uma responsabilidade de imaginar que
viveríamos autónomos uns dos outros, por tanto que parecesse ficar
tudo no mesmo, mais uma mulher apenas.
o
aldegundes era que ficaria com a nossa cama só para ele, muito
apertada para dois, muito larga para um, como se contentaria ao menos
por isso. e ali se teria acordado melhor do que nunca, a reparar nos
gemidos dos nossos pais, cama ao lado, a entender como significariam
no meio da escuridão. e era sempre o mesmo, desde há tanto, o meu
pai deitando-se mais tarde, já a minha mãe adormecida de ressonar e
tudo, e ele, com um empurrão que se escutava, entrava nela a
acordá-la e, já hábito, a ela a surpresa não lhe trazia som à
boca nem contorção maior. era só um súbito silêncio no ronco que
dava lugar ao gemido, um pouco depois, para um alívio rápido do meu
pai. quantas vezes nos suspeitávamos acordados mutuamente, eu e o
aldegundes, quando no fim de tudo podíamos rebentar de desejo,
correndo no pensamento todas as raparigas solteiras e casadas da
terra, e forçando o sono a levar-nos a consciência como se
quiséssemos esconder a cabeça do seu próprio corpo. e assim era,
deitados de rabo para o ar, adormecíamos para longe dali.
o
aldegundes falava sobre o que seria o futuro dele, se igual ao meu,
preparado para casar-me, já um homem. por algum estranho motivo, os
seus doze anos não eram muito iguais aos meus. pertenciam-lhe
maiores fulgores de ideias, palavras mais vazias de realidade e muito
imaginadas, como se alguém lhe desse instrução de sonhos
secretamente. mas instrução nem uma seria a dele metido entre
animais e plantas, conduzido entre nós mais impertinente que muito
do que se lhe devia permitir. por isso, talvez não fosse estranho
lhe custassem mais as partes da natureza, penduradas entre as pernas
sempre a arder, ainda sem consequências líquidas, apenas comichões
constantes. é que lhe pertenciam também grandes consciências do
que seriam as mulheres, feitas de carne à nossa medida, como carne
feita às nossas necessidades, para serem espertas num ofício nosso.
nessa altura ele ansiava por se ter perto da nudez das raparigas, não
menos do que eu, mas a idade e o desajeito não lhe permitiam
estratégias plausíveis nem esperanças muito animadoras. sem alma,
era cabisbaixo que aparecia, entretido a conversar com a sarga como
se lhe perguntasse coisas de adultos que só ela escutasse sem se
enfurecer. constantemente era acusado de ser um moço esperto a optar
por ser burro. não te faças burro, rapaz, abre os olhos e cresce,
dizia-lhe o meu pai, quantas vezes a evitar acertar-lhe uma tareia.
passava-lhe a mão rente às orelhas e era de propósito que falhava.
dom
afonso achava que a minha irmã brunilde podia aprender a criar
trajes, agora já tão velha, catorze anos montados em cima dela, ele
achava que sim. pois se era meio de ela o agraciar com peças de
vestuário originais, era meio de se ter mais valiosa na sua
delicadeza e se furtar aos serviços duros a que estaria destinada
mal seu tronco e pernas endurecessem. assim, delicada se manteria,
garantida por mais tempo uma atraente amante para os anseios do
senhor. és uma servente cheia de sorte, dizia-lhe eu, aberta assim
ao meio por um velho tonto de amor. não sejas parvo, aquilo não é
amor, é do cheiro, a outra só lhe cheira a merda, a mim põe-me a
banhos constantemente para parecer que venho das nuvens como os
anjos. deve ser aborrecido. aborrecido é quando lhe dá para pôr
por trás, à frente já não me parece nada. a nossa brunilde estava
uma rapariga linda e donzelada de modos, cheia de vontade e com o
corpo habituado, não haveria de ser nada de insólito que se pusesse
de gabaritos, ensinada para o serviço dos homens com requintes que
lhe vinham de altos convívios. assim lho previ na altura, ainda
acabas viciada nessas sabedorias, que servir um senhor de grande
inteligência e linhagem há-de ser como criar vício de comer as
melhores coisas da mesa. ela abanava a cabeça e sorria, como se
sentisse calma e estivesse certa de que toda a vida lhe fossem
abundar os mais nobres senhores.
a
teresa diaba era quem vinha muito por mim. parecia uma cadela no cio,
farejando, aninhada pelos cantos das árvores e dos muros, à espera
de ser surpreendida por macho que a tivesse. era toda carne viva,
como ferida onde se tocasse e fizesse gemer. abria-se como lençóis
estendidos e recebia um homem com valentia sem queixa nem
esmorecimento. era como gostava, total de fúria e vontade, sem
parar, a ganir de prazer. não queria nada mais senão esses
ocasionais momentos, estropiada da cabeça, torta dos braços, feia,
ela só servia de mamas, pernas e buracos, calada e convicta, era
como um animal que fizesse lembrar uma mulher, servia assim como
melhoria de uma vez que tivéssemos de fazer com a mão. eu sabia que
mais do que dez se punham nela. só ali éramos cinco, que o meu pai
devia tê-la muito durante o dia, e o cristóvão das carroças, que
estava de viuvez há anos, diziam os atentos que se fazia dolorido
para se disfarçar das putas que rodavam por casa sua. também o
pedro das montadas, atacado de urticárias e tiques vários, estava
perdido de famílias e sozinho, mais feio que a teresa diaba, se a
comesse era refeição melhor do que merecia. e o teodolindo, meu
amigo, com quem aprendi muito sobre essas coisas de capturar
raparigas, sobretudo a diaba que, mais novos, partilhávamos para
vermos um no outro o que haveríamos de fazer.
a
teresa diaba era assim chamada porque fumegava das ventas quando
enervada. não era mentira nem conversa das pessoas, era mesmo assim,
inalava muito, bufava, encarnava-se de fúria com facilidade, assim a
víamos a encher a cara de sangue como vinho dentro de uma tigela. e
depois as narinas abriam-se para fumegarem como canais de vapor para
alívio às caldeiras do seu coração. eu dizia-lhe que parasse de
bater os cascos no chão, que fizesse pouco barulho ou viriam
descobrir-nos ali nas pedras, enganchados um no outro. dizia-me que
cascos tinha eu, o dos sargas, que afinal era o que diziam todos, que
éramos gado como a vaca com quem familiarizávamos. e eu retorquia,
ao menos os meus cascos são deste reino, os teus são do inferno,
onde tombarás a alma para pagares a cabeça que tens. e a cabeça
dela não dava para grandes pensamentos, queria só que lhe tomassem
de enchimento e a deixassem à deriva para recuperar o fôlego.
dispensava conversas, era mulher de maior burrice do que lhe
competia, e por isso animava-se de poucas lógicas, aflita só com
instintos e mais nada.
eu
retirava-me dela, molhado de líquidos, e recuperava as vestes no
lugar para regressar às vacas, ao leite, às leveduras e ao tempo do
queijo. não podia deixar de pensar em como seríamos esse gado. os
sargas, a vivermos com uma vaca, mas nada de ter uma vaca para que
nos trouxesse o leite, se era velha de mais, e nada para que nos
aquecesse a casa, se o aldegundes limpava o esterco constantemente e
entre a porta e a janela os buracos ventavam o mais que se
imaginasse, arrefecidos de interior. era uma vaca como animal
doméstico, mais do que isso, era a sarga, nosso nome, velha e magra,
como uma avó antiga que tivéssemos para deixar morrer com o tempo
que deus lhe desse.