sábado, 21 de dezembro de 2024

Real beleza | Giuliano Eriston

Maridos e Mulheres, de Woody Allen


Maridos e Mulheres de Woody Allen. A mesma história, os mesmos diálogos, os mesmos perdidos e achados, a mesma infalível previsibilidade. Uma câmara trémula, instável, como um vídeo de família, constantemente atrasada em relação ao princípio do plano, logo correndo para agarrar o tempo, dividida entre a ansiedade de registar integralmente o momento, antes de o deixar ir-se, e o impossível desejo de tornar atrás, à procura do gesto, do olhar, da palavra que ficaram por captar e sem os quais, agora, parece falto de coerência e de sentido o que se está contando. Estes homens e estas mulheres de Woody Allen, sempre idênticos nos encontros e desencontros das suas vidas, fizeram-me pensar nos átomos de Epicuro. Imersos no mesmo vazio, caindo, caindo sempre, mas subitamente derivando na direcção de outros átomos, de outros homens e mulheres, tocando-os ao de leve ou a eles se reunindo, e depois outra vez livres, soltos, solitários — ou caindo juntos, simplesmente…

José Saramago, em Cadernos de Lanzarote

Sou uma casa completa

Sou uma casa completa.
Tenho recantos em minhas
Dobras, lareira e um belo
Jardim de tulipas negras.

Também sou uma caravela
Que corre ruidosa e
Escorregadia sobre os oceanos
Que conduzem a novos
Continentes.

E uma caneta macia de um
Garçom orgulhoso; ele gosta
De ouvir: – Que caneta boa!
Quando assinam a conta.

Posso ser os elásticos de
Pompom nas chiquinhas de
Uma menina que chora,
Chata, no pátio ao lado.

Ou um simples copo de água
Oferecido a alguém que
Trouxe uma pesada
Encomenda.

Quiçá sou eu, sim, eu.
Eu mesma. Sofisticada e
Demencial. Essa que fala
Demais e diz que te ama,
Que não quer ir, e não quer
Ficar aqui.

Esse aqui que vaga e
Ressente.

Fernanda Young, em A mão esquerda de vênus

Cumpra o seu dever

Deve ordenar bem a sua vida mediante cada ato. Contente-se caso cada um, na medida do possível, cumpra o seu dever. Ninguém é capaz de obstruir tal cumprimento.
Mas um entrave obstruirá a travessia.”
Ora, nada o impedirá de proceder com justiça, sobriedade e consideração.
Mas, talvez, outras atividades minhas sejam obstruídas.”
Bem, ao aquiescer, contentar-se e redirecionar seus esforços para o que é realizável, um procedimento alternativo—oportuno e adequado à ordem mencionada—se revelará perante o obstáculo.

Marco Aurélio, em Meditações

A incrível pintura realista de Wanjin Gim








1553 – Tucapel

Valdívia

Há festa ao redor da árvore de canela.
Os vencidos, vestidos de tangas, assistem às danças dos vencedores, que usam elmo e couraça. Lautaro usa as roupas de Valdívia, o gibão verde coberto de ouro e prata, a fulgurante couraça e o capacete de viseira de ouro, cheio de plumas e coroado de esmeraldas.
Valdívia, nu, se despede do mundo.
Ninguém se enganou. Esta é a terra que há treze anos Valdívia escolheu para morrer, quando saiu de Cuzco seguido por sete espanhóis a cavalo e mil índios a pé. Ninguém se enganou, exceto dona Marina, sua esquecida esposa da Extremadura, que no fim de vinte anos decidiu cruzar o oceano e está navegando, agora, com bagagem digna do cargo de governadora, a poltrona de prata, a cama de veludo azul, os tapetes e toda sua corte de parentes e servos.
Os araucanos abrem a boca de Valdívia e a enchem de terra. Fazem com que ele engula terra, punhado atrás de punhado, incham seu corpo de terra do Chile, enquanto dizem:
Queres ouro? Come ouro. Farta-te de ouro.

Eduardo Galeano, em Os Nascimentos

O grande invento do nosso tempo




[…]

Desde os tempos da fundação, José Arcádio Buendía construía alçapões e gaiolas. Em pouco tempo encheu de corrupiões, canários, azulões e tiês-sangue não só a própria casa, mas todas as da aldeia. O concerto de tantos pássaros diferentes chegou a ser tão atordoante que Úrsula tapou os ouvidos com cera de abelha para não perder o senso da realidade. A primeira vez que a tribo de Melquíades chegou vendendo bolas de vidro para dor de cabeça, todo mundo se surpreendeu que eles tivessem conseguido encontrar aquela aldeia perdida no marasmo do pantanal, e os ciganos confessaram que tinham se orientado pelo canto dos pássaros.
Aquele espírito de iniciativa social desapareceu em pouco tempo, arrastado pela febre dos ímãs, dos cálculos astronômicos, dos sonhos de transmutação e das ânsias de conhecer as maravilhas do mundo. De empreendedor e limpo, José Arcádio Buendía transformou-se num homem de aspecto folgazão, descuidado no vestir, com uma barba selvagem que Úrsula conseguia aparar a duras penas com uma faca de cozinha. Não faltou quem o considerasse vítima de algum estranho sortilégio. Mas até os mais convencidos de sua loucura abandonaram trabalho e famílias para segui-lo quando jogou sobre os ombros suas ferramentas de desbastar matos e bosques e pediu a participação de todos para abrir uma picada que pusesse Macondo em contato com os grandes inventos.
José Arcádio Buendía ignorava por completo a geografia da região. Sabia que para os lados do oriente estava a serra impenetrável, e do outro lado da serra, a antiga cidade de Riohacha, onde em épocas passadas — segundo havia contado a ele o primeiro Aureliano Buendía, seu avô — sir Francis Drake se dava ao esporte de caçar jacarés a tiros de canhão, que depois mandava remendar e rechear de palha e despachava para a rainha Elizabeth. Na sua juventude, José Arcádio e seus homens, com mulheres e crianças e animais e todo tipo de utensílios domésticos, atravessaram a serra buscando uma saída para o mar, e ao cabo de vinte e seis meses desistiram da aventura e fundaram Macondo para não ter que empreender o caminho de volta. Era, pois, um caminho que não lhe interessava, porque só podia conduzir ao passado. Ao sul estavam as lagoas cobertas por uma eterna nata vegetal e o vasto universo do pântano grande, que de acordo com o depoimento dos ciganos carecia de limites. Esse pantanal se confundia ao ocidente com uma extensão aquática sem horizontes, onde havia cetáceos de pele delicada com cabeça e torso de mulher, que faziam os navegantes se perderem com o feitiço de suas tetas descomunais. Os ciganos navegavam seis meses por essa rota antes de alcançar o cinturão de terra firme por onde passavam as mulas do correio. De acordo com os cálculos de José Arcádio Buendía, a única possibilidade de contato com a civilização era a rota do norte. Por isso, entregou foices, machados, facões e armas de caça aos mesmos homens que o acompanharam na fundação de Macondo, enfiou numa mochila seus instrumentos de orientação e seus mapas, e lançou-se à temerária aventura.
Nos primeiros dias não encontraram obstáculo apreciável. Desceram pela pedregosa ribeira do rio até o lugar onde anos antes haviam encontrado a armadura do guerreiro, e por ali penetraram o bosque por uma trilha de laranjeiras silvestres. No fim da primeira semana mataram e assaram um veado, mas se conformaram em comer a metade e salgar o resto para os próximos dias. Tratavam de adiar com essa precaução a necessidade de continuar comendo araras, cuja carne azul tinha um áspero sabor de almíscar. Depois, durante mais de dez dias, não tornaram a ver o sol. O chão tornou-se mole e úmido, feito cinza vulcânica, e a vegetação ficou cada vez mais insidiosa e se fizeram cada vez mais distantes os gritos dos pássaros e a algazarra dos macacos, e o mundo ficou triste para sempre. Os homens da expedição sentiram-se angustiados por suas recordações mais antigas naquele paraíso de umidade e silêncio, anterior ao pecado original, onde as botas afundavam em poços de óleo fumegante e os facões destroçavam lírios sangrentos e salamandras douradas. Durante uma semana, quase sem falar, avançaram como sonâmbulos por um universo de desassossego, alumbrados apenas por uma tênue reverberação de insetos luminosos e com os pulmões agoniados por um sufocante cheiro de sangue. Não podiam regressar, porque a trilha que abriam enquanto caminhavam tornava a se fechar num instante, com uma vegetação nova que quase viam crescer diante de seus olhos. “Não importa”, dizia José Arcádio Buendía. “O essencial é não perder a direção.” Sempre atento à bússola, continuou guiando seus homens rumo a um norte invisível, até que conseguiram sair da região encantada. Era uma noite densa, sem estrelas, mas a escuridão estava impregnada por um ar novo e limpo. Exauridos pela longa travessia, dependuraram suas redes e dormiram pesado pela primeira vez em duas semanas. Quando despertaram, já com o sol alto, ficaram pasmos de fascinação. Diante deles, rodeado de samambaias e palmeiras, branco e empoeirado na silenciosa luz da manhã, estava um enorme galeão espanhol. Ligeiramente inclinado para estibordo, de seus mastros intactos pendiam fiapos esquálidos do velame, entre cordoalhas adornadas por orquídeas. O casco, tapado por uma resplandecente couraça de rêmoras petrificadas e musgo tenro, estava firmemente cravado num solo de pedras. Toda a estrutura parecia ocupar um âmbito próprio, um espaço de solidão e de esquecimento, vedado aos vícios do tempo e aos costumes dos pássaros. No interior, que os expedicionários exploraram com um fervor sigiloso, não havia nada além de um espesso bosque de flores.
Achar o galeão, indício da proximidade do mar, estraçalhou o ímpeto de José Arcádio Buendía. Considerava uma ironia de seu travesso destino ter buscado o mar sem encontrá-lo, ao preço de sacrifícios e penas sem conta, e ter encontrado o mar sem buscá-lo, atravessado em seu caminho como um obstáculo invencível. Muitos anos depois, o coronel Aureliano Buendía tornou a atravessar a região, quando já era uma rota regular do correio, e a única coisa que encontrou do galeão foi o esqueleto carbonizado no meio de um campo de amapolas. Só então, convencido de que aquela história não tinha sido uma artimanha da imaginação de seu pai, se perguntou como o galeão tinha conseguido entrar até aquele ponto na terra firme. Mas José Arcádio Buendía não teve essa inquietação quando encontrou o mar, depois de outros quatro dias de viagem, a doze quilômetros de distância do galeão. Seus sonhos terminavam diante daquele mar cor de cinza, espumoso e sujo, que não merecia os riscos e sacrifícios de sua aventura.
Caralho! — gritou. — Macondo está cercada de água por todos os lados.
A ideia de uma Macondo peninsular prevaleceu durante muito tempo, inspirada no mapa arbitrário que José Arcádio Buendía desenhou quando regressou de sua expedição. Traçou-o com raiva, exagerando de má-fé as dificuldades de comunicação, como castigando-se a si mesmo pela absoluta falta de noção com que escolhera o destino da sua marcha. “Nunca chegaremos a nenhum lugar”, lamentava-se para Úrsula. “Aqui vamos apodrecer em vida, sem receber os benefícios da ciência.” Essa certeza, ruminada vários meses no quartinho do laboratório, levou-o a conceber o projeto de levar Macondo para um lugar mais propício. Só que desta vez Úrsula se antecipou aos seus desígnios febris. Num secreto e implacável trabalho de formiguinha ela predispôs as mulheres da aldeia contra as veleidades de seus homens, que já começavam a se preparar para as mudanças. José Arcádio Buendía não soube em que momento, nem graças a que forças adversas, seus planos foram se enredando em um emaranhado de pretextos, contratempos e evasivas, até se converterem em pura e simples ilusão. Úrsula observou-o com uma atenção inocente e até chegou a sentir por ele um pouco de piedade, na manhã em que o encontrou no quartinho dos fundos comentando entre dentes seus sonhos de mudança, enquanto colocava nas caixas originais as peças do laboratório. Deixou que ele terminasse. Deixou que pregasse as caixas e com um pincel lambuzado de tinta pusesse suas iniciais em cima, sem fazer reparo algum, mas já sabendo que ele sabia (porque ouviu o que ele dizia em seus monólogos surdos) que os homens da aldeia não o seguiriam em sua aventura. Só quando começou a desmontar a porta do quartinho Úrsula se atreveu a perguntar por que estava fazendo aquilo, e ele respondeu com uma certa amargura: “Já que ninguém quer ir embora, vamos sozinhos.” Úrsula não se alterou.
Não vamos não — disse ela. — Nós ficamos aqui, porque aqui tivemos um filho.
Mas ainda não temos um morto — disse ele. — E a gente não é de lugar nenhum enquanto não tem um morto debaixo da terra deste lugar.
Úrsula replicou, com uma suave firmeza:
Pois se for preciso que eu morra para que vocês fiquem aqui, então eu morro.
José Arcádio Buendía não acreditou que fosse tão rígida a vontade da sua mulher. Tratou de seduzi-la com o feitiço da sua fantasia, com a promessa de um mundo prodigioso onde bastava jogar uns líquidos mágicos na terra para que as plantas dessem frutos de acordo com a vontade dos homens, e onde se vendia por quase nada todo tipo de artefato contra a dor. Mas Úrsula foi insensível à sua clarividência.
Em vez de andar pensando em suas maluquices fantasiosas, você devia é cuidar dos seus filhos — replicou. — Olha só como estão, largados de mão feito os burros.
José Arcádio Buendía tomou ao pé da letra as palavras de sua mulher. Olhou pela janela e viu os dois meninos descalços na horta ensolarada, e teve a impressão de que só naquele instante haviam começado a existir, concebidos pelo pedido determinado de Úrsula. Alguma coisa então aconteceu dentro dele; algo misterioso e definitivo que o desenraizou do tempo presente levou-o à deriva por uma região inexplorada de recordações. Enquanto Úrsula continuava varrendo a casa que agora tinha certeza de não abandonar pelo resto da vida, ele permanecia contemplando os meninos com um olhar absorto, até que os olhos se umedeceram e ele os secou com o dorso da mão, e exalou um profundo suspiro de resignação.
Bom — falou. — Diga a eles que venham me ajudar a tirar as coisas dos caixotes.
José Arcádio, o mais velho dos meninos, havia feito catorze anos. Tinha a cabeça quadrada, os cabelos espessos e emaranhados e a personalidade voluntariosa do pai. Embora tivesse o mesmo impulso de crescimento e solidez, já naquele tempo era evidente que carecia de imaginação. Foi concebido e dado à luz durante a penosa travessia da serra, antes da fundação de Macondo, e seus pais deram graças aos céus ao comprovar que não tinha nenhum órgão de animal. Aureliano, o primeiro ser humano que nascera em Macondo, ia completar seis anos em março. Era silencioso e retraído. Tinha chorado no ventre de sua mãe e nasceu com os olhos abertos. Enquanto cortavam seu umbigo movia a cabeça de um lado a outro reconhecendo as coisas do quarto, e examinava o rosto das pessoas com uma curiosidade sem assombro. Depois, indiferente aos que chegavam perto para conhecê-lo, manteve a atenção concentrada no teto de sapé, que parecia a ponto de desmoronar debaixo da tremenda pressão da chuva. Úrsula não tornou a se lembrar da intensidade daqueles olhares até o dia em que o pequeno Aureliano, na idade de três anos, entrou na cozinha no momento em que ela retirava do fogão e punha na mesa uma panela de barro com caldo fervendo. O menino, perplexo na porta, disse: “Vai cair.” A panela estava bem posta no centro da mesa, mas assim que o menino deu o anúncio, começou um movimento irremediável rumo à borda, como impulsionada por um dinamismo interior, e se espatifou no chão. Úrsula, alarmada, contou o episódio ao marido, que o interpretou como sendo um fenômeno natural. Assim foi sempre, alheio à existência de seus filhos, em parte porque considerava a infância um período de insuficiência mental, em parte porque estava sempre absorto demais em suas próprias especulações quiméricas.
Mas desde a tarde em que chamou os meninos para ajudá-lo a desempacotar as coisas do laboratório, dedicou a eles suas melhores horas. No quartinho afastado, cujas paredes foram se enchendo pouco a pouco de mapas inverossímeis e gráficos fabulosos, ensinou-os a ler e a escrever e a fazer contas, e falou a eles das maravilhas do mundo não apenas até onde iam seus conhecimentos, mas forçando a extremos incríveis os limites de sua imaginação. Foi assim que os meninos acabaram aprendendo que no extremo meridional da África havia homens tão inteligentes e pacíficos que sua única distração era sentar e pensar, e que era possível atravessar a pé o mar Egeu saltando de ilha em ilha até o porto de Salônica. Aquelas sessões alucinantes ficaram de tal modo impressas na memória dos meninos que, muitos anos mais tarde, um segundo antes que o oficial dos exércitos regulares desse a ordem de fogo ao pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía tornou a viver a tarde morna de março em que seu pai interrompeu a lição de física e ficou fascinado, com a mão no ar e os olhos imóveis, ouvindo à distância os pífanos e tambores e pandeiros dos ciganos que uma vez mais chegavam à aldeia, apregoando o último e assombroso descobrimento dos sábios de Mênfis.
Eram ciganos novos. Homens e mulheres jovens que só conheciam a própria língua, exemplares formosos de pele oleosa e mãos inteligentes, cujas danças e músicas semearam nas ruas um pânico de alvoroçada alegria, com seus papagaios pintados de todas as cores que recitavam romanças, e a galinha que punha uma centena de ovos de ouro ao som da pandeireta, e o mico amestrado que adivinhava o pensamento, e a máquina múltipla que servia ao mesmo tempo para pregar botões e baixar a febre, e o aparelho para esquecer as más lembranças, e o emplastro para enganar o tempo, e um milhar de invenções a mais, tão engenhosas e insólitas que José Arcádio Buendía bem que gostaria de inventar a máquina da memória para poder se lembrar de todas elas. Num instante transformaram a aldeia. Os habitantes de Macondo se encontraram de repente perdidos em suas próprias ruas, aturdidos pela feira multitudinária.
Levando um menino em cada mão para não perdê-los no tumulto, tropeçando com saltimbancos de dentes encouraçados de ouro e malabaristas de seis braços, sufocado pelo confuso bafo de esterco e sândalo que a multidão exalava, José Arcádio Buendía andava feito louco buscando Melquíades em todas as partes, para que lhe revelasse os infinitos segredos daquele pesadelo fabuloso. Dirigiu-se a vários ciganos que não entenderam sua língua. Finalmente chegou até o lugar onde Melquíades costumava plantar sua tenda, e encontrou um armênio taciturno que anunciava em castelhano um xarope para se tornar invisível. Havia tomado de um golpe só uma taça da substância ambarina, quando José Arcádio Buendía abriu caminho aos empurrões entre o grupo absorto que presenciava o espetáculo e conseguiu fazer a pergunta. O cigano envolveu-o no clima atônito de seu olhar, antes de se transformar num charco de alcatrão pestilento e fumegante sobre o qual ficou flutuando a ressonância de sua resposta: “Melquíades morreu.” Aturdido pela notícia, José Arcádio Buendía permaneceu imóvel, tratando de superar a aflição, até que o grupo se dispersou convocado por outros artifícios e o charco do armênio taciturno se evaporou por completo. Mais tarde, outros ciganos confirmaram que de fato Melquíades havia sucumbido às febres nas dunas de Singapura, e que seu corpo havia sido arrojado no lugar mais profundo do mar de Java. Os meninos não se interessaram pela notícia. Estavam obstinados em que seu pai os levasse para conhecer a portentosa novidade dos sábios de Mênfis, anunciada na entrada de uma tenda que, pelo que diziam, tinha pertencido ao rei Salomão. Tanto insistiram, que José Arcádio Buendía pagou os trinta pesos e os conduziu até o centro da tenda, onde havia um gigante de torso peludo e cabeça raspada, com um anel de cobre no nariz e uma pesada corrente de ferro no tornozelo, custodiando um cofre de pirata. Ao ser destapado pelo gigante, o cofre deixou escapar um hálito glacial. Dentro só havia um enorme bloco transparente, com infinitas agulhas internas nas quais a claridade do crepúsculo se despedaçava em estrelas coloridas. Desconcertado, sabendo que os meninos esperavam uma explicação imediata, José Arcádio Buendía atreveu-se a murmurar:
É o maior diamante do mundo.
Não — corrigiu o cigano. — É gelo.
José Arcádio Buendía, sem entender, estendeu a mão até o bloco de gelo, mas o gigante não deixou. “Para tocar, são mais cinco pesos”, disse. José Arcádio Buendía pagou, e então pôs a mão sobre o gelo, e a manteve por vários minutos, enquanto seu coração se inchava de temor e de júbilo graças ao contato com o mistério. Sem saber o que dizer, pagou mais dez pesos para que seus filhos vivessem a prodigiosa experiência. O pequeno José Arcádio se negou a tocar. Aureliano, porém, deu um passo adiante, pôs a mão e a retirou no ato. “Está fervendo”, exclamou assustado. Mas seu pai não prestou atenção. Embriagado pela evidência do prodígio, naquele momento esqueceu a frustração de seus empreendimentos delirantes e o corpo de Melquíades abandonado ao apetite das lulas. Pagou mais cinco pesos e, com a mão no bloco de gelo, como que prestando um depoimento e jurando sobre o texto sagrado, exclamou:
Este é o grande invento do nosso tempo.

Gabriel García Márquez, em Cem Anos de Solidão

quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

O Vento | Carlos Malta e banda Geleia Solar

A Menina e o Pássaro Encantado

Por vezes amamos a metáfora antes de amar a pessoa. Quando Fernando Pessoa escreveu “quando te vi amei-te já muito antes”, não era isso que ele estava dizendo? Antes que a tivesse visto, ele já a amava. Ele a amava numa estória escrita na sua alma. Aconteceu isso nesta estória que passo a contar: alguém amou antes, muito antes...

***

Era uma vez uma menina que tinha um Pássaro como melhor amigo. Era um Pássaro diferente de todos os demais – era Encantado. Os pássaros comuns, se a porta da gaiola ficar aberta, vão embora para nunca mais voltar. Mas o Pássaro da Menina voava livre e voltava quando tinha saudades. Suas penas também eram diferentes – mudavam de cor. Eram sempre pintadas pelas cores dos lugares estranhos e longínquos por onde voava.
Certa vez voltou totalmente branco, cauda enorme de plumas fofas como o algodão...
Menina, eu venho de montanhas frias e cobertas de neve, tudo maravilhosamente branco e puro, brilhando sob a luz da lua, nada se ouve a não ser o barulho do vento que faz estalar o gelo que cobre os galhos das árvores. Trouxe, nas minhas penas, um pouco do encanto que eu vi, como presente para você...
E assim ele começava a cantar as canções e as estórias daquele mundo que a Menina nunca vira. Até que ela adormecia e sonhava que voava nas asas do Pássaro.
Outra vez voltou vermelho como o fogo, penacho dourado na cabeça.
Venho de uma terra queimada pela seca, terra quente e sem água, onde os grandes, os pequenos e os bichos sofrem a tristeza do sol que não se apaga. Minhas penas ficaram como aquele sol, e trago as canções tristes daqueles que gostariam de ouvir o barulho das cachoeiras e ver a beleza dos campos verdes.
E de novo começavam as estórias.
A Menina amava aquele Pássaro e podia ouvi-lo sem parar, dia após dia. E o Pássaro amava a Menina, por isso voltava sempre. Mas chegava sempre uma hora de tristeza.
Tenho de ir — ele dizia.
Por favor, não vá. Fico tão triste. Terei saudades. E vou chorar...
E a Menina fazia um beicinho…
Eu também terei saudades — dizia o Pássaro. — Eu também vou chorar. Mas vou lhe contar um segredo: as plantas precisam de água, nós precisamos de ar, os peixes precisam dos rios... E o meu encanto precisa de saudade. É aquela tristeza, na espera da volta, que faz com que minhas penas fiquem bonitas. Se eu não for, não haverá saudade. Eu deixarei de ser um Pássaro Encantado. E você deixará de me amar.
Assim, ele partiu. A Menina, sozinha, chorava de tristeza à noite, imaginando se o Pássaro voltaria. E foi numa dessas noites que ela teve uma ideia malvada:
Se eu o prender numa gaiola, ele nunca mais partirá. Será meu para sempre. Não mais terei saudades. E ficarei feliz.
Com esses pensamentos, comprou uma gaiola de prata, própria para um pássaro que se ama muito. E ficou à espera. Finalmente ele chegou, maravilhoso com suas novas cores. Cansado da viagem, adormeceu. Foi então que a Menina, cuidadosamente, para que ele não acordasse, o prendeu na gaiola. E adormeceu feliz. Foi acordar de madrugada, com o gemido do Pássaro:
Ai, Menina... Que é que você fez? Quebrou-se o encanto. Minhas penas ficarão feias e eu me esquecerei das estórias... E, sem saudade, o amor irá embora...
A Menina não acreditou. Pensou que ele acabaria por se acostumar. Mas não foi isso que aconteceu. O tempo foi passando e o Pássaro foi ficando diferente. Caíram as plumas e o penacho. Os vermelhos, os verdes, os azuis das penas transformaram-se num cinzento triste. E veio o silêncio. Ele deixou de cantar.
Também a Menina se entristeceu. Não era aquele o Pássaro que ela amava. E de noite chorava, pensando no que havia feito ao seu amigo.
Até que não mais aguentou. Abriu a porta da gaiola e disse:
Pode ir, Pássaro. Volte quando quiser...
Obrigado, Menina... É, eu tenho de partir para que a saudade chegue e eu tenha vontade de voltar. Longe, na saudade, muitas coisas boas começam a crescer dentro da gente. Sempre que você sentir saudades, eu ficarei mais bonito. E, sempre que eu sentir saudades, você ficará mais bonita. E você se enfeitará para me esperar...
E partiu. Voou que voou para lugares distantes. A Menina contava os dias, e a cada dia que passava a saudade crescia.
Que bom, ela pensava. Meu pássaro está ficando encantado de novo... E ia ao guarda-roupa escolher os vestidos, penteava os cabelos e colocava uma flor na jarra... Nunca se sabe. Pode ser que ele volte hoje...
Sem que ela se apercebesse, o mundo inteiro foi ficando encantado, como o Pássaro. Porque em algum lugar ele deveria estar voando. De algum lugar ele haveria de voltar.
E era assim que ela a cada noite ia para a cama, triste de saudade, mas feliz com o pensamento: quem sabe ele voltará amanhã...

Rubem Alves, em Cantos do Pássaro Encantado

O impagável Laerte

Agitador

Em sentido literal correspondia no latim a “condutor de animais” ou “condutor de carros puxados a cavalos nos jogos públicos ou na guerra”, devendo esta origem ao verbo agitare, ou seja, “impelir com força, pôr em movimento”.
Foi palavra que se sinonimizou com “revolucionário”, “instigador de revolta”, a partir da Revolução Francesa.

Orlando Loureiro Neves, em Dicionário da origem das palavras

Manhã de abril

Toda cheia de bandeirolas e lanternas chinesas, Dona Briolanja atravessa o grupo amorfo dos transeuntes; parado na esquina, eu lhe ofereço a metade de uma laranja.

Mário Quintana, em Caderno H

o remorso de baltazar serapião | Três


essas coisas do sexo eram muito importantes, por isso parecia muito difícil conciliar uma fidelidade amorosa com a vontade tão desenfreada de entrar numa rapariga. e quantas técnicas poderiam ocorrer-me para que uma moça apreciasse o meu desejo, mijando nas ruas e tossindo alto para que não se desapercebessem da minha presença. e logo tão depressa se ruborizavam e deixavam apreender de suspiros, envergonhadas de vontade, muito atazanadas pelas carnes. e era tão mais simples quando pudessem escapar-se para fora dos caminhos que percorriam, corajosas e impensáveis a fugir dos trajectos, por um momento de volúpia em que se teriam conspurcadas na honra. mas nada para que eu contribuísse, calado de orgulhos, só aproveitando o que era dado sem vãs glórias, sem notícia que não a do segredo mais absoluto da memória. era como fazia, usando-as para belo prazer de ambos e emudecendo o orgulho que pudesse ter em contar o sucedido. depois do acto, honrados de novo os dois, éramos desconhecidos daquilo e ninguém que nos perguntasse, se pudesse desconfiar, teria resposta afirmativa, que convictamente lhe diríamos que não. que nunca o fizemos. e assim o dizia à brunilde, dizia que eu conhecera rapariga desta cor clara ou ruiva, ou morena, ou mamuda ou lisa, dentro ou fora das ruas, mas nunca que nome teria. soubesse eu muitas vezes os seus nomes, e nunca quem me pareciam ser, como se as olhasse e pudesse reconhecer-lhes as famílias, és dos sargas, cara chapada, como aliás algumas acabavam por dizê-lo de mim, e eu disfarçava, encolhia os ombros e saía ligeiro a pensar em mais nada.
a brunilde achava que dom afonso era pouco competente, e eu começara a desconfiar que alguém mais se punha nela, tão sabedora começava a soar. o meu pai arredava-me dela, talvez já consciente de que se deitava aos préstimos de puta para dom afonso. eu recolhia-me aos animais, a sonhar com a minha noiva. arranjado para a receber logo que pudesse, casado de igreja, autorizado para a ter só minha e a educar à maneira das minhas fantasias, como devia ser. como devia ser um pai de família, servido de esposa, a precaver tudo, a ter as vezes de responsável.
a minha mulher haveria de ser a ermesinda. eu sabia quem ela era, já a tivera perto por diversas vezes. era filha de um pobre homem que o meu pai conhecia da vida toda. mais nova do que eu dois anos, queriam casá-la para que se tivesse em honras antes que algum malandro lhe deitasse a mão. era muito bela, a mais bela das raparigas que existiam, diziam, e por isso os riscos de a levarem à força eram muitos, mais valia que um rapaz a tomasse em casamento e lhe ensinasse o de ser esposa, bem como aturasse ele as forças de a preservar em casa. era uma rapariga feliz, mostrava, muito rosada como as flores e, quando passava nas ruas a buscar coisas que os pais mandavam, era muito parecida com uma coisa branca que impressionasse a escuridão das casas e das outras pessoas. quantas vezes eu a ia ver de propósito a descer rua abaixo sem olhar para os lados, já os homens coçados dela, a ganirem alfabetos porcos para a encostarem de sexo às paredes e ao chão. mas ela descia e subia trajecto abaixo e acima sem abrir os olhos dos pés, calada sem nada, à espera de sobreviver virgem a uma beleza que se tornava famosa. e era como se metia em casa, ansiosa por sair, portadas das janelas abertas, a mãe espalmando-lhe a mão no rabo, não fosse ver à janela algum moço que a fizesse cair de perdição lá abaixo. caísse ela janela abaixo aos meus braços, esperava eu, e ela já me olhava por vezes, sem saber que era eu quem lhe rondava o destino, tido ali em sorte pelo facto de os nossos pais se identificarem em amizades antigas. era eu, por sorte ali distinguido, um moço como outro qualquer, mas dos sargas, sem estropios de corpo nem maleitas de cabeça, escorreito nos trabalhos e incumbências, ao serviço de um grande senhor, protegido assim por deferência divina, como garantido no tempo que me restasse de vida. e assim ela se teria, guardada em asa de grande senhor, para cumprir vezes de mulher pobre mas digna de carnes e direcção.
claro que me corria à cabeça a ideia de que abriria perigos novos por trazer a mim tão doce rapariga. como custaria manter o meu território em redor dela, fazer dela algo tanto meu que outros estafermos não se abeirassem para deitar mão do seu fruto apetecido. e como me seria impossível reconhecer o desgaste desse fruto se era virgem e tão cedo não se acusaria de marcas que o desfizessem aos meus sentidos. assim estava eu de ansiedades, a contar as épocas para que chegasse a promessa e logo o casamento, e entre os prazeres se conhecessem, enfim, as dificuldades. podia imaginar, assim eu o fazia às outras mulheres comprometidas, algumas profissionais de homens, juntas em casas deles após viuvez acumulada, como mulheres sem poiso, a viver de andar constantemente à procura de algo que não se encontrava. eu teria espírito para proteger a minha mulher e lhe pôr freios. ela haveria de sentir por mim amor, como às mulheres era competido, e viveria nessa ilusão, enganada na cabeça para me garantir a propriedade do corpo. invadirei a sua alma, pensava eu, como coisa de outro mundo a possuí-la de ideias para que nunca se desvie de mim por vontade ou instinto, amando-me de completo sem hesitações nem repugnâncias. e assim me servirá vida toda, feliz e convencida da verdade.
os pedidos estavam feitos. era tão simples quanto isso. que a filha deles precisava de homem para um nome que a assinasse, e eu, dos sargas, chamar-lhe-ia de pontes para a deixar a salvo de desonras por qualquer prenhez que lhe aparecesse na barriga. serapião, que era, sabíamos, para ser sarga como todos nós, a ermesinda dos sargas, mulher do baltazar sarga, o rapaz mais velho, um moço possante e trabalhador. era como se esperava, revia eu esse futuro no meu pensamento ávido. dom afonso estava de acordo, e temia eu que estivesse também curioso por se ter perto de nova rapariga e assim exercer o seu domínio sobre todos nós, ultrapassando os mandamentos. mas nada era explícito, só a sua autorização que fora dada para que nos casássemos e tivéssemos guarida a meias na casa de meu pai. tudo se prepararia como estava planeado. a sarga teria um coberto pequeno, feito por nós com umas madeiras velhas dispensadas das necessidades dos senhores, e ali ficaria, bem ao lado da nossa casa, encostada a uma das paredes. e era como eu temia que enlouquecesse mais ainda, como ficaria pior protegida de tudo para as noites de tempestade, agachada numas madeiras bichadas e velhas sem proveitos para lutar contra águas e ventos. mas nada mais podíamos, era preciso assim, para desgraça da vaca e do coração de todos nós. já o aldegundes andava apertado sem acreditar que expulsávamos a sarga de casa, metida para o campo como um objecto capaz de sofrer.
eu explicava-lhe com cuidado que era para o meu bem, limpo o quarto onde ela se metia à noite, desfeito de esterco e palhas, daria uma boa sala para uma cama e uma arca onde guardaríamos corpos e roupa, eu e a ermesinda. mais tarde veríamos o que fazer. assim que ermesinda emprenhasse e os filhos viessem ocupar espaço, logo buscaríamos auxílio, em troca das forças dos braços e horas, a dom afonso que nos poria em lugar maior. estava falado com ele, conversa de meu pai, a vir da casa com a cara brilhante de felicidade, dom afonso autorizou, vamos ter casamento e desfazer a solidão do rapaz. vai ser um homem, vamos ter um homem. ergui as mãos à cara e tentei acreditar que casaria com a ermesinda, a bela rapariga a esconder os olhos, e como dedicaria meus dias a enchê-los da minha imagem, para que viesse a sua condição de mulher apenas da minha condição de homem.
não me era permitido saber exactamente quando teria casamento. passava algum tempo desde que me fora comunicado o decidido, que eu estaria já com dezassete anos e seria impossível continuar à responsabilidade do meu pai, que permanecia ocupado com a criação do meu irmão e com a aflição de minha mãe, mulher pior do que as outras, incapaz de estabilizar por completo as suas falhas, tão naturais. dessa ninguém o livra, é de lei, mas dos filhos pede deus que se larguem os pais para que se multipliquem. assim como ter de ir embora porque o tempo estava decorrido e nada mais faltava fazer. o meu pai via a minha mãe de cangalhas e era como se explicava a maravilha de finalmente despachar um filho por completo para a idade maior. mas não ia eu embora de realidade. se ficava ali no lugar da sarga, ainda estaria tão ligado aos pais. mas era por começo. por começo a idade maior traria uma responsabilidade de imaginar que viveríamos autónomos uns dos outros, por tanto que parecesse ficar tudo no mesmo, mais uma mulher apenas.
o aldegundes era que ficaria com a nossa cama só para ele, muito apertada para dois, muito larga para um, como se contentaria ao menos por isso. e ali se teria acordado melhor do que nunca, a reparar nos gemidos dos nossos pais, cama ao lado, a entender como significariam no meio da escuridão. e era sempre o mesmo, desde há tanto, o meu pai deitando-se mais tarde, já a minha mãe adormecida de ressonar e tudo, e ele, com um empurrão que se escutava, entrava nela a acordá-la e, já hábito, a ela a surpresa não lhe trazia som à boca nem contorção maior. era só um súbito silêncio no ronco que dava lugar ao gemido, um pouco depois, para um alívio rápido do meu pai. quantas vezes nos suspeitávamos acordados mutuamente, eu e o aldegundes, quando no fim de tudo podíamos rebentar de desejo, correndo no pensamento todas as raparigas solteiras e casadas da terra, e forçando o sono a levar-nos a consciência como se quiséssemos esconder a cabeça do seu próprio corpo. e assim era, deitados de rabo para o ar, adormecíamos para longe dali.
o aldegundes falava sobre o que seria o futuro dele, se igual ao meu, preparado para casar-me, já um homem. por algum estranho motivo, os seus doze anos não eram muito iguais aos meus. pertenciam-lhe maiores fulgores de ideias, palavras mais vazias de realidade e muito imaginadas, como se alguém lhe desse instrução de sonhos secretamente. mas instrução nem uma seria a dele metido entre animais e plantas, conduzido entre nós mais impertinente que muito do que se lhe devia permitir. por isso, talvez não fosse estranho lhe custassem mais as partes da natureza, penduradas entre as pernas sempre a arder, ainda sem consequências líquidas, apenas comichões constantes. é que lhe pertenciam também grandes consciências do que seriam as mulheres, feitas de carne à nossa medida, como carne feita às nossas necessidades, para serem espertas num ofício nosso. nessa altura ele ansiava por se ter perto da nudez das raparigas, não menos do que eu, mas a idade e o desajeito não lhe permitiam estratégias plausíveis nem esperanças muito animadoras. sem alma, era cabisbaixo que aparecia, entretido a conversar com a sarga como se lhe perguntasse coisas de adultos que só ela escutasse sem se enfurecer. constantemente era acusado de ser um moço esperto a optar por ser burro. não te faças burro, rapaz, abre os olhos e cresce, dizia-lhe o meu pai, quantas vezes a evitar acertar-lhe uma tareia. passava-lhe a mão rente às orelhas e era de propósito que falhava.
dom afonso achava que a minha irmã brunilde podia aprender a criar trajes, agora já tão velha, catorze anos montados em cima dela, ele achava que sim. pois se era meio de ela o agraciar com peças de vestuário originais, era meio de se ter mais valiosa na sua delicadeza e se furtar aos serviços duros a que estaria destinada mal seu tronco e pernas endurecessem. assim, delicada se manteria, garantida por mais tempo uma atraente amante para os anseios do senhor. és uma servente cheia de sorte, dizia-lhe eu, aberta assim ao meio por um velho tonto de amor. não sejas parvo, aquilo não é amor, é do cheiro, a outra só lhe cheira a merda, a mim põe-me a banhos constantemente para parecer que venho das nuvens como os anjos. deve ser aborrecido. aborrecido é quando lhe dá para pôr por trás, à frente já não me parece nada. a nossa brunilde estava uma rapariga linda e donzelada de modos, cheia de vontade e com o corpo habituado, não haveria de ser nada de insólito que se pusesse de gabaritos, ensinada para o serviço dos homens com requintes que lhe vinham de altos convívios. assim lho previ na altura, ainda acabas viciada nessas sabedorias, que servir um senhor de grande inteligência e linhagem há-de ser como criar vício de comer as melhores coisas da mesa. ela abanava a cabeça e sorria, como se sentisse calma e estivesse certa de que toda a vida lhe fossem abundar os mais nobres senhores.
a teresa diaba era quem vinha muito por mim. parecia uma cadela no cio, farejando, aninhada pelos cantos das árvores e dos muros, à espera de ser surpreendida por macho que a tivesse. era toda carne viva, como ferida onde se tocasse e fizesse gemer. abria-se como lençóis estendidos e recebia um homem com valentia sem queixa nem esmorecimento. era como gostava, total de fúria e vontade, sem parar, a ganir de prazer. não queria nada mais senão esses ocasionais momentos, estropiada da cabeça, torta dos braços, feia, ela só servia de mamas, pernas e buracos, calada e convicta, era como um animal que fizesse lembrar uma mulher, servia assim como melhoria de uma vez que tivéssemos de fazer com a mão. eu sabia que mais do que dez se punham nela. só ali éramos cinco, que o meu pai devia tê-la muito durante o dia, e o cristóvão das carroças, que estava de viuvez há anos, diziam os atentos que se fazia dolorido para se disfarçar das putas que rodavam por casa sua. também o pedro das montadas, atacado de urticárias e tiques vários, estava perdido de famílias e sozinho, mais feio que a teresa diaba, se a comesse era refeição melhor do que merecia. e o teodolindo, meu amigo, com quem aprendi muito sobre essas coisas de capturar raparigas, sobretudo a diaba que, mais novos, partilhávamos para vermos um no outro o que haveríamos de fazer.
a teresa diaba era assim chamada porque fumegava das ventas quando enervada. não era mentira nem conversa das pessoas, era mesmo assim, inalava muito, bufava, encarnava-se de fúria com facilidade, assim a víamos a encher a cara de sangue como vinho dentro de uma tigela. e depois as narinas abriam-se para fumegarem como canais de vapor para alívio às caldeiras do seu coração. eu dizia-lhe que parasse de bater os cascos no chão, que fizesse pouco barulho ou viriam descobrir-nos ali nas pedras, enganchados um no outro. dizia-me que cascos tinha eu, o dos sargas, que afinal era o que diziam todos, que éramos gado como a vaca com quem familiarizávamos. e eu retorquia, ao menos os meus cascos são deste reino, os teus são do inferno, onde tombarás a alma para pagares a cabeça que tens. e a cabeça dela não dava para grandes pensamentos, queria só que lhe tomassem de enchimento e a deixassem à deriva para recuperar o fôlego. dispensava conversas, era mulher de maior burrice do que lhe competia, e por isso animava-se de poucas lógicas, aflita só com instintos e mais nada.
eu retirava-me dela, molhado de líquidos, e recuperava as vestes no lugar para regressar às vacas, ao leite, às leveduras e ao tempo do queijo. não podia deixar de pensar em como seríamos esse gado. os sargas, a vivermos com uma vaca, mas nada de ter uma vaca para que nos trouxesse o leite, se era velha de mais, e nada para que nos aquecesse a casa, se o aldegundes limpava o esterco constantemente e entre a porta e a janela os buracos ventavam o mais que se imaginasse, arrefecidos de interior. era uma vaca como animal doméstico, mais do que isso, era a sarga, nosso nome, velha e magra, como uma avó antiga que tivéssemos para deixar morrer com o tempo que deus lhe desse.

Valter Hugo Mãe, em o remorso de baltazar serapião

quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

Nós somos mesmos é um bando de ladrões

Admito que a afirmação acima é um tanto forte e pode indignar os leitores, que, em sua esmagadora maioria, tenho certeza, nunca furtaram nada na vida. Ao mesmo tempo, manda o diabinho que sopra besteiras nos ouvidos de escritores e malucos correlatos que eu pense duas vezes, antes de ter essa certeza toda. De perto, ninguém é normal, disse Caetano, não sem razão. E, segundo me contam, disse Nélson Rodrigues, coberto de razão, que, se todo mundo soubesse da vida sexual de todo mundo, ninguém se dava com ninguém. Não sabemos com certeza o que os outros fazem. Podemos saber ou achar que sabemos muito, mas geralmente não sabemos nada. É até bem frequente V e está aí a turma analisante/analisanda que não me deixa mentir – que nós mesmos não saibamos, ou não lembremos, o que fazemos ou fizemos.
Além disso, sempre me manifesto contra a mania – que parece que estamos perdendo um pouco nos últimos tempos, mas pode ser somente impressão – de nos referirmos a nós próprios na terceira pessoa: “os brasileiros” isso e aquilo, “o brasileiro” isso e aquilo. É como se não tivéssemos nada a ver com as barbaridades que costumamos denunciar ou ridicularizar. Trata-se de um povo do qual não fazemos parte. Não posso concordar com isso, ainda mais escrevendo para jornal. Não dá para me ver como um observador destacado de uma realidade à qual pertenço – e claro, não alego originalidade quando repito que serei sempre, ao mesmo tempo, de várias formas, sutis ou claríssimas, sujeito e objeto dessa observação.
E, vamos e venhamos, pode ser chato para nossa famosa autoestima, mas a sensação que dá, quando a gente fica a par do noticiário, não é a de que aqui absolutamente todo mundo rouba, de uma maneira ou de outra? Não vou hierarquizar, nem mesmo qualificar nada, vou só olhar aqui à toa. Mais um assalto na Lagoa, no Rio. Entre os assaltantes, um inspetor da Polícia Civil. Mais um assalto na madrugada, em São Paulo. Entre os assaltantes, um delegado. E o Tribunal de Contas da União? Está certo, seus quadros não são compostos de anjos tampouco, mas logo o Tribunal da Contas da União, uma espécie de símbolo institucional (pode até nunca ter passado muito de símbolo, mas é símbolo, isso tem valor) da seriedade com o dinheiro público?
De vez em quando fico pensando que há uma grande força-tarefa, ou uma vasta organização de forças-tarefas, dedicada em regime exclusivo à bolação e estruturação de falcatruas. Vamos pensar que seria possível para um governo, especialmente esse governo, conceber um mecanismo inteiramente novo de distribuição de benefícios para os carentes. No dia seguinte, já teria sido montado um esquema para fraudar tudo. Não existe área em que a roubalheira não funcione. Policial rouba. Juiz rouba. Deputado rouba. Senador rouba. Governador rouba. Prefeito rouba. Vereador rouba. Procurador rouba. Fiscal rouba. Jornalista (não sei de nenhum no momento, mas claro que não somos exceção) rouba. E não é só o dinheiro público que é abiscoitado, é o particular também, pois noticiaram qualquer coisa como um prejuízo médio de cinco por cento, nas empresas que funcionam no Brasil (agora se diz “corporações” – por que não trocam a língua de uma vez, em lugar de ficarmos nesta promiscuidade depravada?), causado por roubalheiras ou fraudes cometidas pelos empregados. E a solução é bem brasileira – esses brasileiros são muito criativos. A solução é incluir o prejuízo nos custos da empresa.
Ou seja, quem paga o roubo somos nós mesmos e, portanto, eu tinha razão. Pelo menos de nós mesmos somos todos ladrões, não há um só que escape. Como ícone nacional, não mais o Jeca Tatu, anquilosado e ultrapassado, mas Ali Babá, próspero e intimorato. Antigamente, eu achava exagero dizer-se que o dinheiro dos impostos no Brasil não dá para as despesas porque se rouba muito. Pensava que era uma taxa pequena, cifra relativamente marginal. Agora, me vejo obrigado a mudar de ideia. Os impostos obscenamente altos e abundantes que pagamos são insuficientes para a roubalheira. A reforma fiscal, que, como as outras, dizem que fizeram mas não fizeram, certamente empaca nesse gravíssimo problema. Abatendo-se da receita o que se rouba, a tendência é cada vez mais ficarmos no vermelho.
Gostaria de encerrar o papo com uma nota otimista, muito em voga entre intelectuais de todas as índoles. Aliás, o politicamente correto é terminar considerações como estas afirmando que, felizmente, o povo é honesto. O povo mesmo, esse é honesto por natureza e tradição, é só ver como se comporta a maioria. Receio, contudo, que no momento não me encontro muito propenso a concordar, eis que nem esmola a gente pode dar acreditando que está fazendo o bem, pois pode perfeitamente estar ajudando uma quadrilha que explora crianças, prostitui meninas na puberdade e comete outras coisas que “fazem muito no Brasil”, é um país tremendo esse Brasil e seus brasileiros. Até dar dinheiro a instituições de caridade a gente dá com um pé atrás, porque volta e meia aparecem casos de gente que enriqueceu com a grana que recebia para os necessitados. Eu mesmo já caí nessa diversas vezes, inclusive na inesquecível ocasião em que juntei dinheiro de que não podia dispor, para ajudar um “hanseniano” mineiro e descobrir depois que era uma quadrilha, especializada nesse golpe. Aqui tudo se falsifica, de remédios a pedidos e há inúmeros casos, sério mesmo, de falsificações falsificadas. É, no sentido lato e generalizando só um pouco, somos um povo de ladrões. Até porque aqui sempre valeu o latinzinho citado pelo bom Erasmo, em seus “Adágios: nullus mallus magnus piscis, nenhum mal vai ao peixe grande. Aí todo mundo acaba aprendendo e o peixe pequeno vem aprendendo bastante, ao longo dos séculos.

João Ubaldo Ribeiro, em O Globo (Rio de Janeiro) 12/12/2004

Mistérios | Milton Nascimento

O corvo e a raposa

É fama que estava o corvo
Sobre uma árvore pousado
E que no sôfrego bico
Tinha um queijo atravessado.

Pelo faro, àquele sítio
Veio a raposa matreira,
A qual, pouco mais ou menos,
Lhe falou desta maneira:

Bons dias, meu lindo corvo;
És glória desta espessura;
És outra fénix, se acaso
Tens a voz como a figura.

A tais palavras, o corvo,
Com louca, estranha afouteza,
Por mostrar que é bom solista
Abre o bico e solta a presa.

Lança-lhe a mestra o gadanho
E diz: – Meu amigo, aprende
Como vive o lisonjeiro
À custa de quem o atende.

Esta lição vale um queijo;
Tem destas para teu uso.
Rosna então consigo o corvo
Envergonhado e confuso:

Velhaca, deixou-me em branco;
Fui tolo em fiar-me dela;
Mas este logro me livra
De cair noutra esparrela.

Bocage, em Obras poéticas

À uma da madrugada


Enfim! sozinho! Só se ouve o rolar de alguns fiacres atrasados e derreados. Durante algumas horas possuiremos o silêncio, quando não o repouso. Enfim! a tirania da face humana desapareceu, e só sofrerei graças a mim mesmo.
Enfim! é-me permitido então relaxar num banho de trevas! Primeiro, uma volta dupla na fechadura. Parece-me que essa volta da chave aumentará minha solidão e fortalecerá as barricadas que me separam atualmente do mundo.
Horrível vida! Horrível cidade! Recapitulemos o dia: ter visto vários homens de letras, um dos quais me perguntou se se podia ir à Rússia por via terrestre (sem dúvida tomava a Rússia por uma ilha); ter discutido generosamente com o diretor de uma revista, que a cada objeção respondia: “Este é o partido dos cavalheiros”, o que implica que todos os outros jornais são redigidos por tratantes; ter cumprimentado umas vinte pessoas, das quais quinze me são desconhecidas; ter distribuído apertos de mão na mesma proporção, e isso sem ter tomado a precaução de comprar luvas; para matar o tempo durante uma chuvarada, ter subido até a morada de uma dançarina que me pediu para lhe desenhar um traje de Vénustre; ter cortejado um diretor de teatro, que me disse ao se despedir de mim: “O senhor talvez faça bem de se dirigir a Z.; é o mais pesado, o mais tolo e o mais célebre de todos os meus autores, com ele o senhor poderia talvez chegar a alguma coisa. Encontre-o, e depois veremos”; ter me gabado (por quê?) de várias baixas ações que nunca cometi e ter covardemente negado alguns outros malfeitos que realizei com alegria — delito de fanfarronada, crime de respeito humano; ter recusado a um amigo um favor fácil e dado uma recomendação escrita a um perfeito inescrupuloso; ufa! Acabou?
Insatisfeito com todos e insatisfeito comigo, eu queria redimir-me e orgulhar-me um pouco no silêncio e na solidão da noite. Almas daqueles que amei, almas daqueles que cantei, fortaleçam-me, apoiem-me, afastem de mim a mentira e os vapores corruptores do mundo, e vós, Senhor meu Deus! concedei-me a graça de produzir alguns belos versos que provem a mim mesmo que não sou o último dos homens, que não sou inferior àqueles que desprezo!

Charles Baudelaire, em O spleen de Paris – Pequenos poemas em prosa

What?!

Primeiro examinar-nos a nós mesmos

Sêneca | VI

1. Devemos, no entanto, primeiro examinar-nos a nós mesmos, depois o negócio que nos propomos a realizar, depois aqueles para os quais ou em cuja sociedade o realizamos.
2. É, sobretudo, necessário formar uma verdadeira estimativa de si mesmo, porque, em regra, achamos que podemos fazer mais do que somos capazes: um homem é levado longe demais pela confiança em sua eloquência, outro exige mais de seu patrimônio do que ele pode produzir, outro sobrecarrega um corpo fraco com algum trabalho pesado. Alguns homens são demasiado envergonhados para a condução dos negócios públicos, que exigem uma atitude de descontração: o orgulho obstinado de alguns torna-os impróprios para os tribunais: alguns não conseguem controlar sua raiva, e rompem em linguagem descontrolada com a mais leve provocação: alguns não conseguem conter sua espirituosidade ou resistir a fazer piadas arriscadas: para todos esses homens o ócio é melhor que o trabalho: uma natureza ousada, altiva e impaciente deve evitar tudo o que possa levá-la a usar de uma liberdade de expressão que a arruinará.
3. Em seguida, devemos fazer uma estimativa do assunto que queremos tratar, e comparar nossas forças com a façanha que estamos prestes a empreender: pois o portador deve ser sempre mais poderoso do que sua carga: de fato, cargas que são pesadas demais para o portador necessariamente o devem esmagar.
4. Alguns assuntos também não são tão importantes em si mesmos, pois são prolíficos e conduzem a muito mais trabalho, o qual, por envolver-nos em novas e variadas formas de atuação, convém que sejam recusados. Também não se deve engajar em nada de que não seja livre para recuar: apegue-se a algo que possa terminar, ou, pelo menos, que acredite poder terminar: é melhor não se intrometer naquelas operações que crescem em importância, enquanto estão sendo transacionadas, e que não vão parar onde você pretendia que fossem interrompidas.

Sêneca, em Sobre a Tranquilidade da Alma

Sobre a terra somos belos por um instante - Parte I


[...]
A vez em que você, enquanto descascava uma cesta de vagens na pia, disse, do nada: “Eu não sou um monstro. Eu sou uma mãe.”
O que a gente quer dizer quando fala sobrevivente? Talvez um sobrevivente seja o último a chegar em casa, a última monarca que pousa num galho já pesado de fantasmas.
A manhã se fechou à nossa volta.
Larguei o livro. As cabeças das vagens continuaram estalando. Elas caíam na cuba de aço da pia como dedos. “Você não é um monstro”, eu disse.
Mas eu menti.
O que eu quis dizer de verdade é que não é tão terrível ser um monstro. Da raiz latina monstrum, um mensageiro divino da catástrofe, depois adaptado pelo francês antigo para se referir a um animal de origens múltiplas: centauro, grifo, sátiro. Ser um monstro é ser um sinal híbrido, um farol: ao mesmo tempo um farol e um alerta.
Leio que pais que sofrem de Síndrome do Estresse Pós-Traumático têm maior probabilidade de bater nos filhos. Talvez isso tenha uma origem monstruosa, no fim das contas. Talvez bater no seu filho seja prepará-lo para a guerra. Dizer que temos batimento cardíaco nunca é tão simples quanto a tarefa do coração de dizer sim sim sim para o corpo.
Eu não sei.
O que eu sei é que naquele dia no mercado você me entregou o vestido branco, teus olhos vítreos e arregalados. “Você consegue ler isso”, você disse, “e me contar se é à prova de fogo?” Procurei a barra, estudei o impresso na etiqueta e, sem conseguir ler, disse: “É sim.” Disse mesmo assim. “É sim.” Menti, segurando o vestido na altura do teu queixo. “É à prova de fogo.”
Dias depois, um garoto da vizinhança, andando de bicicleta, me viu usando aquele mesmo vestido – eu pus imaginando que ia ficar mais parecido com você – no jardim de casa enquanto você estava no trabalho. No recreio no outro dia, os meninos me chamavam de aberração, fadinha, bicha. Soube muito depois que essas palavras também eram repetições de monstro.
Às vezes, imagino as monarcas fugindo não do inverno, mas das nuvens de napalm da tua infância no Vietnã. Imagino as borboletas voando de explosões de fogo, incólumes, suas minúsculas asas negras e vermelhas tremendo como escombros que continuassem explodindo, por milhares de quilômetros no céu, de um jeito que, ao olhar para cima, você já não consegue descobrir de qual explosão elas vieram, apenas uma família de borboletas flutuando no ar límpido, gelado, suas asas, depois de tantas conflagrações, finalmente à prova de fogo.
Muito bom saber isso, querido.” Você desviou o olhar, rosto impassível, olhando por cima do meu ombro, o vestido preso a teu peito. “Muito bom.”
Você é uma mãe, Mãe. Você também é um monstro. Mas eu também sou – e é por isso que eu não posso me afastar de você. E é por isso que eu peguei a mais solitária criação de deus e te coloquei dentro dela.
Veja.

Ocean Vuong, em Sobre a terra somos belos por um instante