sexta-feira, 10 de março de 2023

“Você é pedante, sabia?"

Maya nunca viu A.J. tão ocupado. “Papai, por que tem tanta tarefa?”
Algumas são extracurriculares”, ele responde.
O que é ‘extracurricular’?”
Se eu fosse você, iria olhar no dicionário.”
Ler uma lista inteira, mesmo a lista de uma editora modesta como a Pterodactyl, é um enorme comprometimento para uma pessoa com uma criança falante e um pequeno negócio. A cada título que termina, envia um e-mail para Amelia, contando o que achou. Nesses e-mails, não consegue usar o apelido “Amy”, embora tenha tido permissão. Às vezes, quando realmente gostou de algo, liga. Se odiou, envia uma mensagem: Não é pra mim. Da parte dela, nunca recebeu tanta atenção de um cliente.
Não tem outra editora pra ler?, Amelia responde.
A.J. pensa um tempão sobre a resposta. Nenhuma com um representante de quem eu goste tanto é o primeiro rascunho, mas decide que é presunçoso demais para uma garota noiva de um herói americano. Reescreve Essa lista está muito interessante.
A.J. encomenda tantos títulos da Pterodactyl que até o chefe de Amelia repara. “Nunca vi uma conta tão pequena quanto a Island pedir tantos livros. Novo dono?”
Mesmo cara”, responde Amelia. “Mas ele mudou.”
Bem, você deve ter feito um estrago nele. Aquele cara não pega o que não vende, Harvey nunca chegou perto de tudo isso.”
Por fim, A.J. chega ao último. É uma memória encantadora sobre maternidade, álbuns de fotos e a vida de escritora de uma poeta canadense que ele sempre gostou. O livro tem apenas cento e cinquenta páginas, mas leva duas semanas para terminar. Não consegue finalizar um capítulo sem cair no sono ou ser distraído por Maya. Quando acaba, não consegue redigir uma resposta. A escrita é elegante o suficiente, e acha que as mulheres que frequentam a loja podem gostar. O problema, claro, é que, assim que mandar a resposta, terá acabado o catálogo de inverno da Pterodactyl, e não vai ter motivo para entrar em contato com Amelia até a chegada da lista de verão. Gosta dela, e acha possível que ela goste dele, apesar da péssima primeira reunião. Mas… A.J. Fikry não é o tipo de cara que acha legal tentar roubar a noiva de outro. Não acredita em “alma gêmea”. Há zilhões de pessoas no mundo; ninguém é tão especial. Além disso, mal conhece Amelia Loman. E se, digamos, conseguir roubá-la e eles forem incompatíveis na cama?
Amelia manda uma mensagem: O que foi? Não gostou?
Não é para mim, infelizmente, ele responde. Ansioso pela lista de verão da Pterodactyl. Atenciosamente, A.J.
Amelia acha a resposta formal demais, desdenhosa. Pensa em ligar, mas não liga. Manda uma mensagem: Enquanto espera devia assistir a TRUE BLOOD. True Blood é o seriado preferido de Amelia. Virou uma piada interna que A.J. iria gostar de vampiros se assistisse ao programa. Amelia se identifica com a Sookie Stackhouse.
Não vai rolar, Amy. Te vejo em março.
Março está a quatro meses e meio de distância. Até lá, A.J. acha que sua paixonite já vai ter passado ou ao menos entrado em uma dormência tolerável.
Março está a quatro meses e meio de distância.
Maya pergunta o que foi, e ele conta que está triste, pois vai ficar um tempo ser ver uma amiga.
A Amelia?”, pergunta Maya.
Como você sabe?”
Maya revira os olhos, e A.J. se pergunta quando e onde ela aprendeu esse gesto.
Lambiase recebe o Clube do Livro Escolhido do Delegado na loja aquela noite (escolha: Los Angeles: Cidade proibida), depois, como já é a tradição, divide uma garrafa com A.J.
Acho que conheci uma pessoa”, A.J. diz depois de a taça lhe ter amolecido.
Que bom”, diz Lambiase.
O problema é que ela está noiva.”
Timing ruim”, proclama Lambiase. “Sou policial há vinte anos e vou te contar, quase tudo de ruim na vida é resultado de timing ruim, e tudo de bom é timing bom.”
Isso me parece reducionista demais.”
Pensa. Se o Tamerlane não tivesse sido roubado, não teria deixado a porta aberta, e Marian Wallace não teria deixado o bebê na loja. Isso aí foi um bom timing.”
Verdade. Mas eu conheci Amelia há quatro anos”, argumenta A.J. “Eu só não me dei ao trabalho de reparar nela até dois meses atrás.”
Ainda assim, timing ruim. Sua mulher tinha acabado de falecer. E depois você teve a Maya.”
Não serve de consolo”, A.J. fala.
Mas, ei, é bom saber que seu coração ainda funciona, certo? Quer que eu arrume alguém pra você?”
A.J. balança a cabeça.
Qual é”, Lambiase insiste. “Conheço todo mundo nessa cidade.”
Infelizmente, é uma cidade muito pequena.”
Como aquecimento, Lambiase arranja um encontro para A.J. com uma prima sua. O cabelo da prima é loiro com raízes escuras, tem sobrancelhas tiradas demais, um rosto em formato de coração e uma voz aguda como a do Michael Jackson. Ela veste uma blusa decotada e um sutiã push-up, que ergue uma pequena e deprimente prateleira onde pousa um pingente com seu nome. Seu nome é Maria. No meio do aperitivo de muçarela, a conversa acaba.
Qual seu livro preferido?”, ele tenta arrancar dela.
Ela mastiga o pão coberto de muçarela e aperta o colar de Maria como se fosse um rosário. “Isso é um tipo de teste, né?”
Não, não tem resposta errada”, diz A.J. “Só tô curioso.”
Ela dá um gole do vinho.
Ou poderia falar que livro mais te influenciou. Quero te conhecer melhor.”
Ela dá outro gole.
Ou que tal a última coisa que leu?”
A última coisa que li…” Ela franze a sobrancelha. “A última coisa que li foi o cardápio.”
E a última coisa que li foi seu colar”, ele diz. “Maria.”
A refeição segue perfeitamente cordial depois disso. Ele nunca vai descobrir o que Maria lê.
Em seguida, Margene, da loja, arranja um encontro com sua vizinha, uma bombeira animada chamada Rosie. Ela tem o cabelo preto espetado, com uma mecha azul, braços excepcionalmente musculosos, uma bela risada e unhas curtas pintadas de vermelho com pequenas chamas cor de laranja. Rosie é ex-campeã universitária de corrida com obstáculos e gosta de ler sobre história de esportes, principalmente memórias de atletas.
No terceiro encontro, ela está no meio de uma descrição de um trecho dramático das memórias de Jose Canseco, quando A.J. a interrompe: “Você sabe que é tudo escrito por ghost-writer?”.
Rosie diz que sabe e não se importa. “Esses indivíduos de alta performance viveram ocupados com treinos. Quando teriam tempo de aprender a escrever livros?”
Mas esses livros… Meu ponto é: são, basicamente, mentiras.”
Rosie inclina a cabeça na direção de A.J. e bate na mesa com as unhas em chamas. “Você é pedante, sabia? Sendo assim, perde muita coisa legal.”
Já me falaram isso antes.”
Tudo sobre a vida está em memórias de esportistas”, ela diz. “Você treina duro, alcança o sucesso, mas, no fim, seu corpo cede e fim.”
Parece um romance recente do Philip Roth.”
Rosie cruza os braços. “Essa é uma das coisas que fala pra parecer inteligente, certo? Mas, na verdade, só está querendo fazer que outra pessoa se sinta burra.”
Na mesma noite, na cama, depois de um sexo que mais pareceu uma arte marcial, Rosie vira para o outro lado e fala: “Não sei se quero sair com você de novo”.
Desculpa se te magoei”, ele fala ao vestir a calça. “O negócio das memórias.”
Ela balança a mão. “Não encana. É só o seu jeito.”
Ele suspeita que ela tem razão. É um pedante, não serve para relacionamentos. Vai criar sua filha, cuidar da loja, ler seus livros e isso, decide, é mais do que o suficiente.

Gabrielle Zevin, in A vida do livreiro A. J. Fikry

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